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Valorizando as coisas simples da vida

Pico do Itabira no final do dia.

Ontem à noite, dormi na mesma cama que sempre durmo e sob o mesma lençol, mas foi especial porque descobri como é boa a minha cama…

Tudo começou com esse e-mail do Afeto:

Naoki, estou querendo escalar a Via Chaminé Cachoeiro no Itabira no sábado domingo, vai querer fechar essa barca comigo? Sei que não é uma escalada muito fácil para fazer em 1 dia, mas estou afim de tentar. Se tiver afim dá um toque!!!

É claro que respondi sim, mesmo sem ter muita noção e dimensão da coisa. Enfim, escalada a gente não nega, né?

Tudo começou no sábado à noite, durante o 5o Encontro Capixaba de Escalada, com a palestra do Panela (Patrick White) sobre a conquista da via Chaminé Cachoeiro em 1958. A palestra foi incrível porque tivemos  a oportunidade de ouvir toda a história da via contada por uns dos conquistadores. E o mais incrível de tudo, depois de ouvir toda a história iríamos entrar na via e sentir na pele tudo que eles passaram há mais de 50 anos atrás usando equipamentos “extremamente rudimentares” comparados aos que nós usamos nos dias atuais.

Após a palestra fui cumprimentar o Panela pela excelente palestra e pegar uma benção! E assim que o resto da galera foi para a Esbórnia, saímos de fininho e fomos dormir mais perto do Itabira para ganhar tempo no dia seguinte.

No domingo de manhã, o despertador tocou às 4h30 e às 4h45 já estávamos varrendo pasto acima feito um trator sob as luzes dos headlamps. Chegamos na base da via após 1h 15 de caminhada morro acima, descansamos um pouco, tomamos o “café da manhã” e pedi ao Afeto a ponta da corda para poder abrir a primeira enfiada.

Tamanho da encrenca… A via fica à direita, por um sistema de fendas e chaminés que leva ao cume.

A primeira enfiada começa numa canaleta que vai ficando cada vez mais vertical até uma árvore. O lance é todo protegido em móvel. Alias, toda a via é protegida em móvel. Na conquista original foram batidos apenas 8 grampos!!! Impressionante!!! Hoje a via conta com mais alguns grampos extras que algumas pessoas andaram batendo sem autorização, inclusive há vários grampos que foram amassados por não fazer parte da via original.

A passada da P1 para a P2 é feita com um pêndulo do primeiro sistema de chaminé/fenda para o segundo. Tentamos otimizar toda passagem para ganhar tempo. Da P2 para a P3 o mesmo esquema, uma escalada pela segunda chaminé até um grampo e mais um pêndulo à direita para chegar ao terceiro sistema de fendas/chaminé.  “Batemos” a P3 no início da chaminé que leva diretamente ao cume e o Afeto assumiu novamente a ponta da corda para fazer a 4a enfiada.

A 4a enfiada é um dos cruxs da via (VI), chaminé estreita e mal protegida com um tufo gigante de galhos, folhas e terra no meio. Passar aquele mato foi de matar. Nenhum manual de escalada explica como passar aquilo. Foi muito mais vontade e desprendimento do que qualquer outra coisa.

Assim que o Afeto chegou na P4, subi recolhendo as peças e pensei: putz, ainda bem que não fui eu que entrei guiando nessa desgraça mal-protegida e cheia de mato.

Chegamos tão exauridos na P4 que tivemos que dar um tempo nela. Cheguei a dormir alguns instantes e logo em seguida, assumi a ponta novamente para encarar a quinta enfiada.

No meio da enfiada, mordi a língua por ter falado mal da 4a enfiada. A enfiada era mais protegida, mas em compensação tinha uma sessão de galhos e terra duas vezes maior que a anterior… Não sei como passei… Só sei que aquela frase, “se passar a cabeça passa o resto não funciona…” Tudo, absolutamente tudo trancava nos galho. Eu acho que se eu me soltasse da pedra não ia cair por estar tão emaranhado nos galhos…

Após alguns percalços, bati na P5! Ufá, finalmente um platô decente. Nesse ponto estava exaurido e saturado de tanto mato, galho, folha e terra. Após mais um breve descanso, o Afeto deu sequência na via e abriu a 6a enfiada. Ufa! Finalmente uma enfiada sem “muitos” galhos.

Subi o mais rápido que pude e pulei para a 7a enfiada. Segundo um croqui que tínhamos, essa enfiada seria o segundo crux da via com lances de 6o grau. A enfiada era vertical a negativo em alguns trechos com uma movimentação bem atlética. Depois de encarar tanto mato e chaminé estreito um 6o grau ganhou novos ares e exigiu mais gana que a média. No meio do perrengue da via, achei umas cunhas de madeira da conquista original e fiquei pensando como esses caras passaram por aqui há mais de 50 anos atrás… Eu aqui com uma corda feita com o nylon de última geração, uma sapatilha mega colante, um jogo de friends que gruda em qualquer fenda… E Panela e CIA com um pedaço de sisal e essas cunhas de madeira… É de tirar o chapéu. Alias, a cada lance difícil da via, a primeira coisa que pensava era: como eles passaram por aqui há 50 anos atrás? Está certo que eles escalaram vários trechos em artificial e nós estávamos passando em livre, mas mesmo assim é muito desconcertante.

O lance da P7 para a P8 é igualmente aéreo e vertical. Assim que colei na P8, a nossa segunda corda prendeu numa árvore e não havia força no mundo que fizesse ela se soltar. Resultado, tive que descer, soltar o galho e voltar escalando. Praticamente refiz a enfiada a la The Nose speed climb.

A essa altura já estava ficando tarde e nós estávamos muito cansados. O cume parecia ainda bem distante e acima de nós uma chaminé cheia de árvores e blocos soltos. O Afeto tocou a enfiada seguinte até um grampo quase perto do cume. Como ele não sabia se saia pela esquerda ou pela direita montou uma parada mista nesse grampo e me chamou. Pensando bem agora, o ideal seria fazer a parada um pouco antes, numas árvores, antes da chaminé lisa, e não no grampo.

Subi feito um macaco com sangue nos olhos até o grampo. Olhei para cima e nem perdi muito tempo e toquei pela esquerda em direção ao cume. Mais um lance atlético e quando olhei para cima não tinha mais nada para ser escalado!!! Cume!!! Chamei o Afeto e batemos no cume por volta das 19h após mais de 12 horas de ralação.

Ok, primeira metade vencida! Assinamos o livro de cume e ficamos contemplando a noite com a lua amarelada no horizonte. Foi o lugar mais sublime que já estive. Era um misto de alegria, exaustão, medo e ansiedade. Com certeza não consegui curtir o cume 100%, pois ainda estava focado na escalada e muito preocupado com a descida a noite.

Seguindo as dicas da galera, fomos em busca dos grampos de rapel pela face nordeste. Pegamos mais algumas dicas com o Sandro via celular e acabamos achando os grampos. Como o tempo estava virando, ventava bastante na face nordeste. Abri o primeiro rapel de 30m no meio do vento e não achei a próxima parada… Putz… Interpretei como um mal presságio que me acompanhava desde a chegada ao cume e resolvi voltar para o cume prussikando!!! Putz, ninguém merece prussikar 30m a essa altura do campeonato…

Voltei para a parada e decidimos que era melhor ficarmos pelo cume mesmo e descer só no dia seguinte. Eu estava extremamente cansando e mentalmente esgotado. O Afeto estava apático e por vezes não seguia algumas instruções básicas. E como a história do montanhismo mostra que a grande maioria dos acidentes acontece durante a descida, resolvemos optar por um bivaque forçado no cume a fazer parte da estatística.

Jogamos -nos num canto qualquer, fizemos algumas ligações (santo celular, viva a tecnologia!!!) e em menos de 5 minutos simplesmente apaguei. No meio da madrugada começou a ventar mais forte, ameaçou chover e o tempo fechou no cume. Por sorte, havia levado um cobertor de emergência que me salvou um pouco do frio e do desconforto, mas mesmo assim foi uma noite muito mal dormida, numa base inclinada, cheia de terra úmida e pedras pontudas.

No dia seguinte, assim que amanheceu  começamos a descer pela via que tínhamos subido. Como estava ventando muito ficamos receosos em descer pela face nordeste e correr o risco de prender a corda e ficarmos presos lá…

Após 2h e meia de rapeis intermináveis, chegamos à base da via, sãs e salvos. Mais 1h de descida pela trilha, mais 2h de carro e estávamos de volta à Babilónia.

Com certeza foi uma grande experiência. Uma escalada que lembraremos pelo resto de nossas vidas. Aprendi a valorizar mais ainda as coisas simples da via (a começar pela minha cama e o lençol que não sai voando com o vento à noite), o valor da amizade e do companheirismo. O Afeto foi um grande parceiro de cordada e um guerreiro que se portou digno de um grande escalador.

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que ficaram lá embaixo curtindo a nossa escalada ao lado da piscina bebendo uma ceva gelada e dando a vide; Ao Panela pela conquista da via. Ao Zé, Baldin, Sandro e PA pelos betas; Ao Sertã pelo C#4 extra que foi de grande valia; E é claro, a dona patroa pela compreensão!

Missão cumprida! 

Tentei fazer uma descrição sucinta para não me estender muito, mas também não deixar muito resumido.

Como tivemos bastante dificuldade para encontrar um bom croqui da via na internet, estarei disponibilizando ainda essa semana uma croqui mais completo com detalhes pertinentes.

De antemão  recomendo que para fazer a repetição da via é preciso:

2 jogos de friend  (usamos 2x Camalot 0.3 ao 4);

Não usamos nuts nem micro-friends;

2 cordas de 60m (o ideal seria subir com uma corda dupla);

Bastante fita para diminuir o atrito, laçar os grampos velhos e as árvores (+ 10 fitas)

Água (3-4L por pessoa)

Considerar que:

A escalada dura em média 10 a 12h somente para subir;

Há possibilidade de ter que bivacar no cume (outras repetições tiveram que pernoitar no cume);

Na maioria das vezes o pessoal sobe até a P3 num dia, desce 50m até a base e sobe o resto no dia seguinte.

Em todas as enfiadas há longos lances em chaminé, por isso o ideal seria levar apenas uma mochila enxuta. Com exceção da última e da penúltima enfiada, sempre içamos a mochila para ganhar mobilidade.

Vou ficar devendo várias fotos da escalada. Como estávamos frenéticos na via não tivemos muito tempo para ficar fotografando a paisagem ou fazendo pose na via.

Foto by Afeto na P6. Powered by Gopro  and Carbup.

Se você achou o relato muito mentiroso ou quiser ter uma segunda versão, acesse o blog do Afeto para ler o relato!

Comentários

3 respostas em “Valorizando as coisas simples da vida”

Grande Naoki ,

Parabéns pela repetição da via. Li sobre ela no livro Horizontes Verticais do Jean Pierre (um dos conquistadores também) e fiquei encantado pela mística que envolveu essa conquista. Quem sabe um dia role pra mim também. Valeu

Obrigado Naoki pela parceria…Sem dúvida uma escalada extrema, só experimentando para sentir um pouco na pele o que esses conquistadores passaram para vencer o desafio dessa via, agora entendo a emoção do Panela ao contar sobre a conquista!!!

Abração…

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