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De volta a Afonso Cláudio

Depois de “bater” dois pratos de comida do tamanho do Monte Everest eu estava jogado numa confortável cama, olhando para o teto do chalé e pensando em tudo que aconteceu no dia. Agradeci a mim mesmo por ter reservado um chalé no Cantinho dos Três Pontões e ficava pensando: por que eu não fiz isso nas outras vezes que estive aqui? Por que eu acampava, dormia na rede ou dentro do carro toda vez que vinha aqui?

Lá fora, a chuva caia despretensiosamente, bem diferente de algumas horas atrás quando a chuva “descia em balde” sob as nossas cabeças enquanto corríamos pelo cafezal.

Biscoito Sortido

O dia estava abafado, quente e com uma cara de que no final do dia viria uma bomba d’água. O tempo não estava para parede, mas nós, Lissandro e eu éramos teimosos e estávamos na região de Afonso Cláudio procurando “sarna para se coçar”.

Pela manhã, fomos direto a um totem que eu tinha achado no ano passado, mas tinha desistido de conquistar pela dificuldade da linha. O tempo passa e nós revemos conceitos, e aquele totem que me pareceu impossível começou a ficar mais factível mentalmente. Às vezes, o impossível é apenas momentâneo. 

Nós tínhamos duas ideias em mente: primeira era fazer o cume do totem e depois uma ideia mais “hero plan” que era subir o restante da parede pela face mais vertical, sem fenda, só nos cristais, totalizando quase 200m de escalada.

Totem da Lajinha. Olhando assim parece fácil, mas essa pedra tem mais de 200m!

A metade superior do totem tinha uma leitura bem fácil, pois era cortado por uma fenda frontal. O problema era que a fenda nascia no meio da parede. A parte inferior era sem fenda e acessá-la parecia bem complicada. Visualizei uma linha pela aresta do totem até chegar mais perto da fenda para ganhar o sistema. Nesse tipo de ambiente, além da escalada ter uma movimentação bem específica, bater uma proteção fica mais complicado ainda, pois é difícil conseguir uma boa posição para bater uma chapa numa aresta.

Varremos um mato crivado de espinho e conseguimos acessar a aresta pelo lado direito. Limpei bem a base, me equipei e ensaiei uma saída bem técnica para ganhar um degrau e consegui bater a 1a chapa. Depois, bati mais 2 chapas em artificial e consegui ganhar a fenda com certa facilidade. Agora eu estava em casa, dali para cima seria fácil. O interessante é que a medida que ia progredindo na fenda, ela ia ficando progressivamente mais larga. A primeira proteção foi um #.4 e a última um #6 e depois, eu estava com a metade do meu corpo dentro de uma chaminé apertada para vencer os metros finais e ganhar o cume do totem. Inclusive, o nome da via “Biscoito Sortido” vem exatamente por causa dessa variação de estilo e fenda.

Parte inicial da aresta.

Fiz um furo no topo do totem para fazer a parada e chamar o Lissandro, mas assim que coloquei o chumbador, ele saiu na minha mão! A rocha era podre demais! Subi, mais um pouco e fui procurar uma rocha mais sã na parede principal e finalmente consegui fazer uma parada decente.

O Lissandro subiu limpando a enfiada e provando linha de 40m até se juntar a mim. A essa altura, o Sol estava fritando os nossos melões. A pedra estava tão quente que eu tive que dar segue com os pés sob a corda para não queimar a sola.

Olhamos para segunda parte e não pensamos duas vezes, descemos para nos refugiar do Sol e fugir daquela parede vertical.

Quem sabe no futuro, assim como foi da outra vez, retornaremos à pedra para encarar a segunda parte? O impossível é uma questão de tempo!

Croqui da via “Biscoito Sortido”.

Para saber mais sobre a via, clique aqui!

Como saímos da parede mais cedo do que o planejado, ainda tínhamos a tarde livre para tentar escalar alguma coisa naquele calor dos infernos.

Tubarão na Lagoa “unlock”

Lembrei que a via “Tubarão na Lagoa” na Pedra do Tubarão ficava com a face voltada para nordeste com sombra à tarde. Bebemos uma Coca-cola em Serra Pelada para matar a sede e um pouco o tempo, por volta das 13h, fomos em direção à via.

Essa via foi conquista pelos escaladores locais em 2006 e a última repetição que se tem registro foi em 2012 pelo escalador Oswaldo Baldin e companhia. E desde então, parece que ninguém mais animou a entrar na via. 

Uma das características desta via é que ela não finaliza no cume, mas sim num pequeno buraco que fica no meio da parede. Na verdade, a via está inacabada, mas foi acabada por ali mesmo porque viram que a metade superior seria bem trabalhosa. Além disso, a via conta com uma longa travessia em artificial de grampo sobre grampo na 5a enfiada.

Chegamos na base da via por volta de 13h30 e após uma rápida aproximação de 2 minutos, estávamos iniciando a escalada. Pelo horário, a parede ainda estava com bastante Sol, mas como dava para ver que em pouco tempo a via ficaria na sombra resolvemos adiantar o serviço, afinal de contas, tínhamos 170m de parede pela frente.

Iniciamos a escalada por uma variante que transcorre por uma enorme laca de 40m toda protegida em móvel. A saída original, além de exposta, transcorre paralelo a fenda por uma face em aderência.

Lissandro na 1a enfiada da variante.

Assim que chegamos na P1, a parede já entrou na sombra e assim conseguimos escalar toda via na sombra, uma verdadeira dádiva para um dia quente como aquele.

O Lissandro tocou a próxima enfiada em aderência e eu a seguinte. Aproveitei que a linha dava possibilidade e juntei as próximas duas enfiadas para ganhar tempo. 

Início da 2a enfiada.

Até ali a escalada estava bem interessante. Parede mais vertical, bons lances de boulder que exigiam uma boa leitura e alguns platôs eram a tônica da escalada. 

O Lissandro voltou a assumir a ponta da corda para pegar a 4a enfiada que começa com um boulder de envergadura e depois segue em agarras boas até o início da travessia em artificial.

Como os grampos da travessia estão bem próximos, resolvi tentar passar a enfiada em livre. Travessias são sempre muito legais. Ainda mais depois da famosa travessia do Dawn Wall. A gente se sente meio Tommy Caldwell quando vê uma oportunidade assim. Embora bem vertical, de cara já dava para ver que seria factível liberar, pelo menos a primeira parte que dava para ver da parada. Fui tocando a travessia me achando o Tommy Caldwell, inclusive no final da travessia tem um lance de desescalada em chaminé, onde se senti no filme. Segundo o croqui, a travessia tem 35m, mas na realidade, ao final da desescalada, tem uma parada num platô que foi fundamental para quebrar e enfiada e tirar o atrito, pois a enfiada, além de contornar a pedra faz uns zigue-zagues estranhos para cima e para baixo.

Lissandro no artificial da via “Tubarão na Lagoa”.

Assim que chegamos na P5, notamos que o tempo estava virando rapidamente. O céu azul começou a dar lugar a nuvens carregadas e o vento começou a ficar cada vez mais forte. Como a virada do tempo estava chegando por trás da montanha, não dava para ver a massa negra vindo em nossa direção. Para o lado que conseguíamos ver o céu ainda estava Ok, tirando alguns bolsões de chuva.

Como estava falando apenas uma enfiada, o Lissandro tocou a última enfiada em livre até o buraco e ali finalizamos a escalada.

Não encontramos o livro de cume, mas sim uma Bíblia com um papel dentro escrito pelo Baldin em 2012 e só.

Final da via.

Embora a via seja relativamente curta, por ter muitos lances em travessia, a descida parecia bastante trabalhosa, por isso não ficamos muito tempo no buraco curtindo a vista. Sem contar que a essa altura estava bem claro que, em breve, iríamos tomar chuva na cabeça.

Mesmo levando 2 cordas, uma de 10mm e outra de 6mm, resolvemos fazer rapéis curtos com apenas uma corda, pois temíamos que a corda prendesse com o vento e/ou ficasse difícil de puxar por causa das paradas posicionadas em locais complicados.

Descemos da P6 até a P2 com apenas uma corda e da P2 fizemos um rapel de 60m até a base. Assim que nós dois colocamos os pés no chão, a chuva nos pegou com toda força e acabamos tendo que enrolar a corda e descer até o carro na chuva.

Chuva!!!
Correndo para o carro!

A chuva não durou mais do que 20 minutos, mas foi o suficiente para nos deixar encharcados e mudar toda paisagem do entorno.

Dali fomos direto para o Sítio Cantinho dos Três Pontões onde no dia anterior tinha reservado um chalé para passarmos a noite e voltar para Vitória no dia seguinte.

Para saber mais sobre a via, clique aqui!

Jabuticaba.

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