^ A imponente Pedra da Bandeira, Castelo, ao entardecer.
Lá em casa, desde muito pequeno, os meus pais nos ensinaram, entre outras coisas, que a gente não deve mexer nas coisas dos outros. Se alguma coisa está lá é porque tem um dono e se você não for o dono, deixe quieto. Isso se chama “educação de berço” coisa que se aprende com os pais, não se aprende na escola, nem com os amigos. Coisa que atualmente está em falta nesse Brasil, onde os princípios básicos de boa conduta estão se perdendo…
Todo esse desabafo inicial é para tentar explanar um pouco a decepção que tivemos no último domingo em Castelo (ES) durante a continuação da conquista da via “Na flor da idade”, Pedra da Bandeira.
Tudo começou no sábado, quando eu e o Afeto partimos de Vitória rumo ao Vale da Prata em Castelo para resolver uma pendenga de 2 anos e meio, o projeto “Na flor da idade”.
Iniciamos esse projeto em outubro de 2013, exatamente no dia do aniversário do DuNada. Inclusive o nome da via é em homenagem a ele.
Tamanho da encrenca. A linha da via transcorre bem pelo meio da parede. Vide croqui no final.
Naquela época nós (eu, Afeto e DuNada) estávamos atrevidos, vínhamos de uma série de conquistas incríveis e a cada via conquistada, puxávamos mais os nossos limites, pois queríamos saber até onde seríamos capazes de ir. E assim surgiu a Pedra da Bandeira, uma parede imponente e acima de tudo muito vertical que coroa, junto com a Pedra do Dedo, o Vale da Prata em Castelo.
Foto panorâmica do Vale da Prata visto do Patrimônio do Ouro com a Pedra da Bandeira (à esquerda) e a Pedra do Dedo (à direita).
Lembro claramente que, o que matou a gente na 1a investida não foi a dificuldade, mas sim o calor, pois a face da rocha fica voltada para norte, com sol o dia inteiro. Aquela experiência foi tão traumática que por 2 anos e meio não queríamos saber dela, mas sabíamos que precisávamos voltar lá para acabar com aquela pendência e também porque sabíamos que a linha ficaria incrível.
Às 8h da manhã de sábado, o trio estava completo novamente com a chegado do DuNada (com 30 minutos de atraso) na base da trilha para dar continuidade à conquista interrompida.
Repetimos as enfiadas da primeira investida e logo descobrimos que a pedra sofreu algumas alterações durante a nossa longa ausência. Na 2a enfiada, descobrimos que por causa do calor, a rocha “expanou” em alguns trechos, inclusive na linha da via. Uma das chapas chegou a expanar junto com a rocha e tivemos que recolocar a proteção num local mais adequado. Também constatamos que o platô da P2 foi para o espaço. A já desconfortável parada ficou mais incômoda sem o matinho que nos protegeu do sol durante a primeira investida. Por outro lado, isso expôs algumas agarras escondidas do crux, ufa!
Afeto na travessia de 7o grau da terceira enfiada. O segredo está nas agarras escondidas… Ao fundo, a Pedra da Onça.
Continuamos a conquista a partir do último ponto, a P3, por um incrível veio de cristal numa rocha imaculadamente vertical. Aquele veio de cristal foi, sem dúvida, a salvação da via, pois para onde se olhava, só se via um granito vertical e liso.
Tive o privilégio de conquistar essa enfiada de aproximadamente 40m e posso garantir que foi uma das melhores conquistas da minha vida. Ela só não foi a melhor de todas porque mais uma vez, o sol estava lá, imponente e implacável sugando todas as nossas energias. Tentei conquistar o mais rápido que pude na esperança de chegar logo num platô arborizado que parecia ser promissor. Mas quando cheguei nele, logo descobri que as árvores em volta não eram páreos para o sol e não tivemos outra opção, senão fritar mais uma vez naquele calor escaldante.
Conquistando, sob um sol escaldante, a 4a enfiada da via pelo veio de cristal. Foto: Caio Afeto.
O veio de cristal da salvação seguia em diagonal à esquerda. E dessa vez, o Afeto assumiu a ponta da corda para dar sequência à conquista. Por um capricho da natureza, o veio nos levava diretamente para a base de um grande diedro em arco que parecia ser fendada.
O Afeto tocou mais uns 25m pela sequência de cristal até chegar na base do grande diedro. Logo de cara, o diedro se mostrou mais difícil e mais inclinado do que o esperado. A fenda não era tão boa assim e da metade para cima ela ficava “cega”. Devido a dificuldade da fenda, aliado ao calor implacável, achamos por bem encerrar as atividades do dia por ali mesmo, mesmo ainda estando cedo (15h20).
Como tínhamos apenas duas cordas, uma estática e uma dinâmica, resolvemos deixar uma corda fixa da P4 até a P2 e da P2 até a base.
Encarando a sequência de rapeis vertiginosos até a base da via para escapar do calor.
E assim saímos daquele calor o mais rápido que pudemos e fomos nos refrescar no Lazer Furlan! Nada como uma Coca, um prato de feijão e algumas boas risadas para repor das energias.
Entardecer no Fazer Furlan. Ao fundo, a Pedra São Cristóvão sob o olhar atento da lua.
No domingo, acordamos às 4h30 e às 5h40 já estávamos fazendo a aproximação final para subir pelas cordas fixas.
Assim que chegamos na base da via, olhei para cima e não vi corda fixa deixada no dia anterior. Na hora pensei que estivesse no lugar errado, mas após me certificar que eu realmente estava no lugar certo, procurei melhor a corda e nada. Logo, descobri que a ponta não estava no chão, mas sim num platô logo acima. Na hora pensei que durante a noite, o vento acabou jogando a corda para o lado.
Internamente fiquei com muita raiva ao ver aquilo e tive vontade de xingar os meninos por não terem amarrado a corda na base. Como no dia anterior, a nossa saída foi um pouco tumultuada achei por bem guardar isso para mim e não falei nada.
O Afeto calçou a sapatilha e solou um bom trecho para ganhar o platô e buscar a ponta da corda. Assim que ele chegou na corda gritou:
– A corda está cortada! Alguém cortou a corda!
Como assim? Quem faria isso?
Confesso que fiquei muito abalado com isso. Por um instante fiquei totalmente sem reação. A minha mente foi invadida por milhares pensamentos. Aos poucos fui me recompondo e organizando as ideias. Ficou claro que depois que nós descemos da parede no sábado, alguém subiu pela corda fixa, cortou uns 30m de corda e com a corda cortada, desceu até a base! E nós ficamos na mão, por causa de um ladrãozinho de meia-tigela…
Aquilo foi muito revoltante, nós nos planejamento para entrar muito cedo na parede para fugir do sol, deixamos as cordas fixas justamente para isso. Isso sem contar o prejuízo que eu tive. Perdi uma corda de escalada de 60m. Aqui no Espírito Santo não se faz nada com 30m de corda.
Por ironia do destino, a duas semanas, conheci um vaqueiro muito simpático na base da Parede dos Sonhos em Itarana e dei a ele de presente uns 10m de corda estática para ele usar nos afazeres do dia-a-dia. E duas semanas depois acontece isso…
Abalados, mas sem se deixar vencidos, partimos para um plano B. Ligamos para o Taffarel em Castelo e conseguimos outra corda. Descemos a trilha, fomos até Castelo de carro (15km), pegamos a corda e voltamos até a via. Emendamos a corda cortada e voltamos aos trabalhos. O problema é que só nessa brincadeira perdemos preciosos 2h de trabalho (e de sombra).
Rapidamente subimos pelas cordas fixas até a base do diedro, onde paramos no dia anterior (P5). Só de raiva, subi 120m de corda fixa sem parar um minuto para ganhar tempo.
Dei sequência na conquista pelo diedro usando móvel até a fenda ficar cega para finalizar pela face até ganhar um platô a uns 40m.
Dali para cima, tudo indicava que seria por dentro de uma grota vertical com vegetação e rocha. Como a grota ficava protegida, pelo menos conseguimos escapar do sol implacável que a essa altura já estava à mil. E assim conquistamos mais 3 enfiadas de uns 30m cada por dentro dessa canaleta, protegendo em móvel, árvores e batendo chapa nas paradas.
Após a P9, saímos da canaleta e o terreno ficou mais ameno. A essa altura já estávamos sentindo o cheiro do cume.
Subimos o resto em simultâneo por mais uns 90m até finalmente bater no cume da pedra às 16h!
O nome Pedra da Bandeira se deve ao fato de, um dia, algum morador da região ter hasteado uma bandeira no cume após escalar pelas “costas” da pedra.
Por sorte encontramos a tal bandeira jogada no chão, ainda que um pouco desbotada, e tratamos de hastea-la de volta para que todos pudessem ver ela novamente.
É cume!!!! E a bandeira recuperada que dá nome à pedra. Foto: Caio Afeto.
Foto para posteridade!
Vale da Prata rodeada por montanhas a perder de vista, a partir do cume da Pedra da Bandeira.
Re-hasteada a bandeira, só nos restou iniciar o longo rapel de volta, numa clássica corrida contra a noite que se aproximava. Imprimimos um bom ritmo de rapel e conseguimos chegar na base da via ainda com a luz do dia e só fomos ligar os headlamps na trilha.
Considerando tudo que aconteceu, desde a primeira investida, passando pelo roubo da corda fixa e pelos perrengues que passamos na via, confesso que chegamos muito aliviados no carro. Com certeza, essa foi uma escalada épica que lembraremos com muito carinho por um bom tempo.
E que começa a temporada e escalada 2016!
É por essas e outras que nós escalamos montanhas. Vale da Prata com a Pedra da Onça (à esquerda) e a Pedra do Dedo, à direita.
Croqui
Traçado da via.
Para ler mais sobre a via, clique aqui!
Uma resposta em “Sangue, suor e lágrimas na “Flor da Idade””
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