Este texto foi publicado inicialmente na extinta revista Universo Vertical. Os autores deste texto são os escaladores Nello Aun e Pedro Latorre que conquistaram a via Vândalos Inocentes nos Três Pontões de Afonso Cláudio em 2004. Achei uma cópia desta revista num ginásio de escalada no Rio de Janeiro. Tirei fotos das páginas e transcrevi aqui. Para deixar mais ilustrativo, peguei algumas fotos de minha autoria para fazer este post.

O estado do Espírito Santo já é famoso por suas incontáveis possibilidades de aventura e escaladas. A cidade de Afonso Cláudio é uma de suas maiores referências, com muitas paredes, falésias e cachoeiras, ou seja, tudo que os escaladores gostam. Está localizada a 136km de Vitória, na região serrana do Espírito Santo, e possui uma população de 43 mil habitantes. A economia da cidade é baseada na agricultura, principalmente no café, do qual já foi a maior exportadora no Brasil. Num rápido passeio pelas estradas de terra de Afonso Cláudio já se percebe o grande potencial para escalada ainda inexplorado: Pedra da Lajinha, Pedra da Lagoa, Hangar, Pedra do Frade e seu maior desafio, Três Pontões.

Os escaladores da cidade são poucos e, como eles mesmos repetem, se ficassem a vida toda conquistando as paredes da cidade, não dariam conta de escalar tudo. De fato, as paredes oferecem uma gama enorme de desafios: aderências, lances em agarras, fendas, chaminés, esportivas, tradicionais e até big walls.
Três Pontões
Cápsula do tempo é o que melhor define o pico dos Três Pontões.
Nele ocorreram conquistas e histórias que ajudaram a construir e enchem de orgulho o montanhismo brasileiro. Escaladores como Ricardo Menescal, Sílvio Mendes e Jean Pierre estiveram em suas paredes e atingiram seus cumes.
Existem três vias conquistadas no maciço e uma no Dedinho, formação atrelada aos Três Pontões. A primeira via foi conquistada em julho de 1959 por Drahomir Vrbas (Jimmy), Hamilton
Maciel, Patrick White e Ricardo Menescal. A linha inicia-se na face sul, por uma série de lances de caminhada e costões que levam ao colo entre o Dedinho e o pontão maior.
Até aí, era um caminho seguido pelos exploradores e caçadores da região. Os conquistadores seguiram adiante, subindo a chaminé que se segue, cortando pontão grande de leste a oeste. A chaminé larguíssima termina em tesoura, foi um lance de extrema dificuldade dos conquistadores.

No alto desta, uma das paredes termina no ante cume, separado do cume principal pela chaminé e um lance vertical de cerca de três metros.
Os conquistadores levaram uma vara de taquara, com a qual improvisaram uma escada que permitiu vencer a parede. Contam os moradores do local que foram necessárias duas tentativas para passar o lance. Na primeira, partiu-se apoio com a queda do guia, para grande susto daqueles que torciam pelo sucesso da equipe lá na várzea.
O cume é singelo e elegante, com pouco espaço e todo liso, sem vegetação ou grandes pedras. A vista é magnífica, sobre os outros cumes do maciço e as montanhas da Mantiqueira e da Serra dos Cinco Pontões.
Chaminé Afonso Cláudio
A segunda via conquistada na parede foi a Chaminé Afonso Cláudio em 1970, em somente um dia de escalada, com poucas proteções móveis (cunhas de madeira) nas passagens-chave. Ela corta a montanha de norte a sul e após leste a oeste, possuindo passagens interessantes. É uma bela opção de escalada além da via normal. Os conquistadores foram Carlos de Almeida Braga, Jean Pierre von der Weid, José Carlos Almeida da Silva, Luís Penna Franca e Rodolfo Chermont de Miranda.

O Dedinho
O Dedinho impressiona pela verticalidade e largura, é um pilar de pedra de cerca de 90 metros de altura por 10m de largura que se desprende dos Três Pontões a cerca de 200 metros da face sul. A única via conquistada na formação contorna o pilar até alcançar o cume, conquistada em 1996 por Roberto Tristão e Gilberto Azevedo. A via Inferno na Torre começa na base do pilar e se inicia na P6 da via normal. Sua maior dificuldade fica logo depois da base do dedo, onde é mais fina do que no cume, em um leve negativo de V grau onde se utiliza um friend #3 e um piton da conquista como proteção. Nesta via, deve-se ter atenção redobrada com relação à corda, pois as quinas do dedo são famosas pelos estragos que causam.

Tubarão da Lagoa

No bairro da Lagoa, poucos quilômetros após o pico dos Três Pontões está a Pedra da Lagoa. Uma bela formação que lembra a cabeça de um tubarão com a boca aberta.
No meio da formação, duas cavernas sempre geraram lendas na comunidade local. Esta parede encantou os escaladores Wilson Trindade e Silvestre Araújo, moradores de Afonso Cláudio. Quando faziam uma ronda na região à procura de novas paredes para escalada, eles decidiram ser os primeiros escaladores a chegar nas cavernas.
A via Tubarão da Lagoa (4o, Vsup A0 E2) foi conquistada em dez investidas feitas aos domingos. Eles já alcançaram a primeira caverna depois de 150 metros, agora pretendem terminar a via até o final do ano quando alcançarem a segunda caverna uns 50 metros acima da primeira.

O cume está a cerca de quatro enfiadas acima da última caverna, mas eles não pretendem fazê-lo, pois a parede, quanto mais alta, mais cheia de espinhos e sujeira fica. Durante a conquista, eles evitaram passar por fendas, pois não dispunham de equipamento móvel, assim eles preservaram estes trechos para futuras conquistas.
Vândalos
Em nossa viagem à região, resolvemos experimentar a pedra, conquistando uma via com acesso ao cume pela Face Leste.
Esta face foi escolhida por ser mais baixa que as outras, não ter nenhuma via e apresentar uma bela fenda a partir dos 35 metros, em forma de arco.
Iniciamos a aproximação da parede às oito horas da manhã do dia 13 de outubro. A trilha de acesso começa no mirante da antena, bem conhecido pelos moradores da cidade. Ela atravessa duas matinhas e segue por alguns costões com trepa-pedra. O acesso na ida se dá por um rapel de 25 metros. Na volta, é necessário contornar o morro com uma caminhada técnica, ou deixar uma corda fixa para a volta e jumarear.
Esta face dos pontões é cheia de gravatás, bromélias e cactos. Escolhemos uma linha um pouco mais limpa e, às nove horas, iniciamos a escalada. Iniciei a guiada em livre até passar um pequeno trecho vertical e bati o primeiro grampo aos seis metros. Com mais um grampo, estava no primeiro platô a doze metros da base. Do platô para cima, a situação se complica um pouco, com lances de sétimo grau em agarras quebradiças.
Depois de muitas lacas quebradas, passei com furos de cliff e dois grampos. O lance ainda não foi repetido, mas as passadas isoladas giram em torno de VIIb.
Passei uma fita em um belo cristal, mas ele não aguentou o peso e arrebentou quando ia iniciar o quinto furo.
Foi um voo de oito metros e, com o peso da furadeira, virei de cabeça para baixo, por pouco não atinjo o platô.
Depois do susto, foi a vez de Wilson assumir a guiada e chegar com facilidade à fenda, depois de mais dois grampos e uma vaca nos mesmos moldes da minha. Voltei à ponta da corda e dominei o platô que leva ao início da fenda. Mais um grampo em um lance delicado de equilíbrio e estava na fenda. Com três friends médios, cheguei à primeira parada que foi batida na munheca. Terminamos o dia neste ponto: a fenda ia dar muito trabalho, pois não havíamos trazido peças grandes e estávamos sem grampos.
No outro dia, iniciamos a escalada com Nello e Wilson jumareando e eu descansando na base. O artificial é lento e a fenda cheia de cracas quebradiças.
Nello foi obrigado a bater dois grampos nos 45 metros de fenda para poder pegar as peças de baixo e utilizar em cima. O artificial foi graduado em A2 com dois friends #2, dois friends #3, um friend #4 e um nut #5. Nello ficou das 10 às 15 horas escalando até dominar o platô, onde bateu a segunda e mais bonita parada da via.
Neste ponto, assumi a ponta da corda novamente e continuei pela fenda contornando a parede em uma diagonal. O vento era tanto que nos comunicávamos através da fenda, que é larga e funda, funcionando como um telefone, ou fendafone, como chamamos na hora. Às cinco horas da tarde, descemos com um rendimento de mais 60 metros de via, porém era o trecho que parecia o mais demorado, o que nos dava esperanças de alcançar o cume no dia seguinte.
Tão Perto…
No terceiro e último dia de escalada, estávamos decididos a fazer o cume, por isto acordamos bem mais cedo. Continuei o trecho com uma boa limpeza da fenda e decidi descer para um trepa-mato depois de mais dez metros de escalada para ganhar tempo.
Após muito mato, formigas e um diedro muito sujo, travei em um lance por não ter as benditas peças grandes.
Passei com dois furos de cliff e bati o grampo da outra parada. Nello continuou a empreitada, enfrentando mais mato ainda, por cerca de 30 metros, por um diedro.
Passou uma chaminé de IV grau e montou uma parada em móvel para que eu pudesse levar mais equipamentos, pois era impossível içar qualquer coisa naquele mato. Cheguei no local e conquistei os últimos cinco metros da enfiada contornando um grande bloco de pedra, chegando na quinta parada da via em uma árvore. Todos subiram, mas tínhamos um problema: Wilson estava sofrendo de dor nas costas devido à queda que levou no primeiro dia de escalada, e seu quadro era de inflamação, mas ele insistia em não descer, pois queria o cume também.
Após uma rápida exploração dos corredores de pedra que cortam todo o local, decidimos escalar por uma face de pedra e alcançar uma chaminé a cerca de quinze metros de altura. Wilson tentou o lance, bateu um grampo e desceu devido à dor. Entrei na parede e cheguei no platô com mais dois grampos e dois furos de cliff. Entrei na chaminé cantando vitória, mas era bem mais difícil do que imaginamos. Não tínhamos peças móveis suficientes, então decidi bater mais um grampo. Desci e o Nello resolveu tentar.
A esta altura já eram cinco horas da tarde; o vento e o frio estavam pegando pesado. Wilson já não estava aguentado de dor e desceu até a P2. Nello progrediu mais dez metros, utilizou dois grampos e desceu às seis da tarde, faltando uns 30 metros para o cume.
Rapelamos com muito peso, deixando cordas fixas até a P3 para tornar a descida mais rápida, pois o Wilson estava com muita dor. Chegamos à base às sete horas, cansados e derrotados pela montanha. Como nosso ônibus saía às 11 horas de Venda Nova, cidade a 40km de Afonso Cláudio, corremos para a trilha.
No caminho, o Silvestre, que nos acolheu tão bem em todos os dias na cidade, preparou mais uma surpresa.
Um belo pedaço de picanha assada com refrigerante gelado… Comemos rapidamente e continuamos a trilha, já pensando na volta.
Na casa do Silvestre separamos o equipamento em 15 minutos e entramos no carro para Venda Nova sem nem tomar banho. No ônibus, dormimos profundamente até chegarmos em Belo Horizonte, às cinco e meia da manhã.
A Volta
Na segunda-feira, o Nello me liga propondo uma volta para Afonso Cláudio na mesma semana. Ligamos para o Silvestre e agendamos para a semana seguinte, na quinta-feira. E assim aconteceu. Uma pesquisa trouxe-nos a informação de que talvez a última chaminé que estávamos fazendo era a que foi conquistada por Jean Pierre. Um grampo no final dela confirmaria a informação. Isso nos deixou preocupados, pois já tínhamos colocado grampos em parte dela. O croqui que tínhamos da via de Jean Pierre não estava claro.
A viagem para Afonso Cláudio foi tensa, pois chovia muito no Espírito Santo inteiro. Mas confiamos na sorte e continuamos. Para nossa surpresa, a menos de cinco quilômetros de nosso destino, a chuva cessou. Na manhã seguinte, o tempo estava fechado, mas não chovia. Fomos para a antena e demos de cara com uma cerração contínua e o solo encharcado. Resolvemos dar um tempo e passar na casa da Dona Eliete, que abrigou os escaladores nas primeiras conquistas dos Três Pontões. Vimos fotos e um pequeno acervo sobre os Três Pontões e conversamos um pouco até abrir uma janela no tempo.
Corremos para a trilha, mas próximo da parede a situação ainda estava muito ruim. Esperamos por lá até que o tempo melhorasse.
Ao meio-dia partimos para a base; a trilha estava muito molhada e difícil. Chegamos na base meio-dia e meia.
Wilson foi jumareando na frente, seguido por mim. Fomos até P3 e de lá, seguimos repetindo até P5. Wilson seguiu a repetição até o ponto onde paramos e guiou com facilidade o resto da chaminé, um grampo no final confirmava que este trecho já havia sido escalado. De lá, ele foi até o cume, e fixou a corda para subirmos.
O cume, com poucos metros quadrados, é um pouco mais baixo do que o principal. Nello resolveu laçar um dos velhos grampos batidos no cume maior.

Enquanto eles subiam, eu desci de rapel para retirar o lixo, ou seja, os grampos que havíamos colocado na fenda conquistada pelo Jean Pierre em 1978.
Cheguei na P5 uns 40 minutos depois, retirando todos os grampos, menos um que estava muito arrochado, mas foi inutilizado. Para a repetição da chaminé final, aconselhamos o uso de camalots #3,5, #4 e #5. A falta de informações consistentes sobre as vias da parede e a grampeação da chaminé final nos levaram ao nome da via: Vândalos Inocentes 5° VIIb(A0) A2 E3.

Eram seis horas da tarde e nossa aventura nos Três Pontões ainda não havia acabado. Faltava limpar a via e descer com todo o peso, e, para piorar, começou a chover e ventar forte. Chegamos na base ensopados, com muito frio, fome e às escuras.
A trilha de volta estava exaustiva pelo peso e por estar molhada. Demoramos duas horas para atravessar todo o percurso. Paramos na casa do Wilson às 11 horas da noite para separar o equipo e comer um belo jantar preparado por sua mulher. De lá, direto para o hotel, tomar banho e dormir, voltando para Belo Horizonte no dia seguinte.
Conquistadores: Nello Aun, Pedro Latorre e Wilson Trindade.
Agradecemos ao Silvestre, ao Wilson e ao Hotel Três Pontões por todo apoio prestado em nossa estadia em Afonso Cláudio,
A numeração dos friends citados na matéria são referentes a peças Wild Country.