^ Pancas depois da chuva. À direita, a famosa Pedra do Camelo.
Na semana passada, enquanto repetia a via “Onde os fracos têm vez” na Pedra do Córrego em Pancas, com um olho ficava procurando as agarras da via e com o outro, “namorando” uma linha paralela à via. Ficava imaginando: “caramba, ali sai uma linha perfeita, por que não tem nada ali?”
E agora, no último final de semana, resolvi voltar lá para tirar a limpo essa história e abrir uma via ao lado.
Sábado, primeiro dia
Como de praxe, choveu no dia anterior e tudo estava bem molhado. Então, no sábado de manhã, usando a mesma estratégia da outra vez, resolvi sair mais tarde do Camping Cantinho do Céu para deixar o sol secar melhor a pedra.
Por volta das 9h30 fui até a pedra para começar os trabalhos. Como estava sozinho novamente e não estava a fim de carregar 30kg de equipamento morro a cima, resolvi dividir o “porteio” em duas partes. A estratégia era subir primeiro levando as duas cordas e a furadeira para achar a base da via e depois levar o haulbag com o resto das coisas.
Usei a mesma aproximação da via “Onde os fracos têm vez”, mas logo descobri que a pedra tinha pregado uma peça em mim. A pedra deu uma falsa sensação de que a base era logo ali, quando na verdade, ela estava bem mais longe do que o esperado. Estava tão além que resolvi descer novamente, pegar o carro, dar a volta e estacionar num outro ponto do cafezal. E tudo isso sob um sol típico de Pancas.
Melhorei o acesso e dessa vez resolvi ir cortando por um costão, assim não teria que abrir mato no peito. Estudei de longe a via e logo descobri que ao lado a linha que estava imaginando tinha uma linha melhor ainda, passando por um sistema de fendas mais interessante.
Fiz o primeiro porteio, achei a base e voltei para o carro para pegar o resto do material. O que era para ser uma coisa tranquila, no fim das contas se mostrou bastante exaustiva, pois a aquela altura já tinha subido e descido três vezes em função de achar a base e levar as coisas para cima. E quando começou a melhor parte do dia, a minha bateria já estava pela metade e para piorar, o calor estava ficando cada vez mais forte. Nada de nuvens para fazer uma sombra ou uma brisa para refrescar um pouco o melão.
Comecei a conquista esticando 60m de corda, abrindo uma enfiada muito bonita e variada com direito a escalada em “agarrência”, proteção mista, fenda e coroando com uma bela chaminé no final.
Deste ponto para cima, ou seguiria por uma fenda de punho frontal ou voltaria para chaminé. É claro que não pensei duas vezes e segui pela fenda, mas como alegria de escalador dura pouco, 5m a cima a fenda acabou e tive que voltar para chaminé! Logo acima, na primeira oportunidade que tive pulei fora daquele esfrega-esfrega e toquei em diagonal à esquerda em direção ao cume de um pequeno totem onde bati a P2 da via. Essa enfiada acabou ficando um pouco mais curta, 30m, mas por causa do atrito, acho que ficou bom assim.
Bati a parada por volta das 13h30, ou seja, na pior hora do dia para estar em qualquer lugar de Pancas. A essa altura, a minha bateria estava entrando na reserva, assim como a minha água. Para piorar, não tinha uma única sombra no totem onde pudesse me refugiar por alguns instantes.
Cansado e mentalmente perturbado, tive dificuldade para escolher uma linha a seguir. A linha mais natural pela fenda levava para um beco sem saída, num lance bem vertical e sem fenda que teria que ser passado em artificial. A linha da esquerda pela face parecia que ia bem, mas mais acima também ficava bem vertical e sem agarra.
Na dúvida, escolhi o meio termo, fui pela face, bati uma chapa, dei um esticão irresponsável, bati outra chapa e cai para fenda. A cada metro que subia, a minha reserva de energia baixava mais um pouco. Aquele sol estava me castigando brutalmente! Mesmo sabendo que a fenda iria sumir logo a cima, fui tocando por ela “na espera de um milagre”. Milagrosamente no trecho mais vertical havia exatamente as agarras necessárias para fazer a virada e seguir em diagonal por um misto de oposição com chaminé. Na viradinha crux bati uma chapa e quando fui fazer “o movimento”, a agarra do pé direito explodiu e fiquei só pelas mãos! Senti o gosto do coração na boca!
Aquilo me deixou com nervos à flor da pele e fiquei bastante abalado emocionalmente. Perdi toda confiança que eu tinha e escalei o resto da enfiada com “aquilo” na mão! Agora, parecia que todas as agarras iriam quebrar e para piorar, nenhuma peça que eu colocava na rocha me transmitia confiança. Para complicar, nos metros finais, um platô altamente suspeito crivado de cactos me separava do platô onde poderia ser a P3 da via. Não aguentei a pressão e tive que bater uma chapa para fazer esse lance protegido. Mesmo assim, eu sabia que se eu caísse iria voar muito, pois já está tinha esticado quase 50m de corda.
Passei os cactus e o que sobrou de mim chegou à P3. Olhei para cima e vi o que seria a cereja do bolo da via, um grande teto em diagonal com uma fenda na base a sumir de vista. O lado ruim dessa brincadeira era que a parede era mais vertical do que o esperado, mas era bem “escalável” e “protegível”.
Segundo os meus cálculos, era “só” vencer essa diagonal de uns 50m e tocar outros 50m em rampa que estaria feito. Mas o meu corpo estava um bagaço só que achei prudente descer e deixar o resto para o dia seguinte.
A essa altura do dia, por todos os lados que eu olhasse na região, havia uma meia dúzia de foco de chuva e era apenas uma questão de tempo (e azar) para que um desses me pegasse de jeito. Resolvi desequipar toda via, sem deixar nenhuma corda fixa para o dia seguinte. Apenas peguei todo material e escondi num lugar protegido da chuva para não fazer todo porteio no dia seguinte.
Desci da montanha e fui direto a um posto de gasolina me abastecer de água, Cola-Cola, isotônico, enquanto via de camarote a chuva cair com força na região.
A segunda noite no Cantinho foi com a galera da “Ilha” que se reuniu para fazer uma reunião sobre o Festival de Montanhismo que irá acontecer em setembro e com um alemão perdido (Cris) que foi caminhar na região.
Como de praxe choveu bem na região durante o início da noite, logo se eu quisesse fazer qualquer coisa no dia seguinte, teria que fazer o mesmo esquema do dia anterior.
Domingo, a volta dos mortos vivos
Acordei no domingo e parecia que um caminhão tinha passado por cima de mim. Levantei um caco de pessoa. Da sola do dedão até o último fio de cabelo doia. A aquela altura, já não estava achando ruim a pedra estar molhada, pois era a desculpa que estava precisando para não ter que voltar aquele campo de batalha.
Tranquilamente, ou me arrastando, tomei um café da manhã preguiçoso, arrumei as coisas e por volta das 9h fui ver a pedra na esperança de encontra-la molhada, sqn…
Aquela pedra parecia o Calogi! E lá estava ela, sequinha da Silva, só me esperando. Fiz todo processo do dia anterior e repeti as três enfiadas até a P3. Como estava me sentindo cansado emocionalmente, escalei com um pouco de medo e sem muita confiança. Além disso, a minha movimentação estava bem lenta, como se eu estivesse fugindo daquela escalada.
Por volta das 13h30 iniciei a quarta enfiada pelo grande teto. A movimentação inicial na fenda foi para acabar com a lombar de qualquer um. Quem já escalou uma oposição em diagonal sabe o que é não conseguir respirar direito naquela posição. Logo acima, vi um um pequeno escorrido, um olhar mais minucioso e descobri que um trecho de quase 5m estava totalmente molhado, pois vertia água por baixo da fenda. A contragosto, tive que entrar em artificial nesse trecho. Aquilo foi a gota d’água que me botou para baixo. Dei uma brochada geral na via. E para piorar, começou a chover! Fiquei um bom tempo parado sem me mexer, só pensando em tudo que estava fazendo e acontecendo. A chuva também se tornou uma preocupação real, pois a media ia fazendo a travessia, estava complicando a minha volta caso fosse necessário bater em retirada. Além disso, o meu estoque de chapeletas também estava bem baixo. Não teria chapas suficientes para descer abrindo uma linha de rapel em fuga.
Depois de esticar uns 25m, as minhas peças acabaram e tive que fazer uma parada no meio do teto para recolher as peças (P4). Limpar aquela diagonal foi, com certeza, o crux da enfiada. Quando retornei à P4, arrumei uma injeção de ânimo e botei na cabeça que se continuasse nesse ritmo não chegaria ao cume hoje. Enchi-me de motivação e acima de tudo, de coragem e parti para abrir a 5a enfiada com sangue nos olhos. Fui tão determinado que conquistei a próxima enfiada em menos de 30 minutos, finalizando a enfiada ao final do grande teto, num platô relativamente confortável.
Eu sabia que dali para cima era só tocar uma corda cheia em diagonal que encontraria a parada final da via “Onde os fracos têm vez” e poderia usa-la para descer, em vez de descer pela via que estava conquistando. Se já estava motivado, agora, vendo a luz no fim do túnel fui mais focado ainda e sai atropelando os últimos 60m até encontrar a parada da via.
Nunca foi tão bom ter chegado no cume de uma montanha! Que alívio, quanta alegria! Mas a luta ainda não tinha acabado. Já eram 16h30 e tinha apenas mais uma hora de luz para descer 200m e caminhar até o carro que a essa altura estava na casa do caraio. Apressei o passo e desci sem perder tempo pela via e caminhei varando o mato no peito como um trator com todo equipamento nas costas até o carro.
A via ficou com 240m de extensão e predominantemente protegida com material móvel (friends = amigos). A via possui apenas 6 proteções fixas (tirando as paradas), e pelo fato de estar ao lado de uma via chamada “Onde os fracos têm vez”, batizei a nova via de “Onde os amigos têm vez”.
Na minha humilde opinião, a via ficou muito legal por ser uma escalada bem variada e com uma boa dose de escalada aventura, mas sem muitos perrengues.
Agora é esperar a época da estiagem para secar os 5m do teto e liberar a via na íntegra, pois a única enfiada que não ficou com cadena foi a 4a enfiada.
2 respostas em “Onde os amigos têm vez”
Que via massa!!!
“Conquista em solitário” Incrível o feito e o relato prende nossa atenção rs.