Tribo Invicto

Enquanto estava parado num engarramento gigantesco na altura de Baunilhas, a caminho de Pancas, fiquei pensando sobre os planos para o final de semana.

As condições climáticas não estavam favoráveis, o inverno seco e quente deste ano está sendo absolutamente fora do padrão. A própria cidade de Pancas está com vários focos de queimada, coisa que nunca havia visto ou ouvido falar antes.

Por outro lado, fazendo as minhas contas, essa seria a última oportunidade para ir para os lados de Pancas este ano, antes da chegada do período das chuvas. Por isso, estava rumando a Pancas num sábado quente com o termômetro marcando 34° Celsius.

A ideia era repetir a via “A Tribo” com o Iury no final de semana. Devido ao tamanho da encrenca e principalmente pelo calor, resolvemos dividir a escalada em duas partes. No sábado, ao entardecer, esticaríamos 4 enfiadas. No domingo mais 6 e depois emendaríamos na via “Sol Invicto” para fazer o cume da Pedra Cará, totalizando 13 enfiadas.

Imponente Pedra Cará ao centro.

A via “A Tribo” foi conquistada em 2022 pelos escaladores cariocas Chermont, Adildo e Ariel após duas investidas e se tornou a terceira via da Pedra Cará. Para quem frequenta a área do camping do Fabinho, a Pedra Cará é um símbolo do Vale do Palmital que chama a atenção pela imponência e verticalidade.

O engarrafamento me consumiu 4h de estrada. Em geral, levo 2h30 de Vitória até o camping do Fabinho, mas, mesmo com o atraso, ainda estávamos no cronograma de sábado.

Chegamos no camping por volta das 14h e logo iniciamos os trabalhos separando o material necessário para investida de sábado. O Fabinho nos ajudou mostrando o melhor caminho e logo estávamos na mata batendo facão para encontrar a base da via.

Achar a base não foi muito fácil. Esperávamos ver a P1 do chão, mas foi preciso olhos de águias para encontrar uma Bonier Dupla no mar de rocha negra.

O croqui fala que as duas primeiras enfiadas são III. No meu imaginário vislumbrei solar esse trecho de tênis e nem fixar corda para ganhar tempo e corda, mas quando vi, não parecia nada trivial. Ali comecei a entender que os cariocas usaram o grau do Rio para graduar a via daqui. Aqui, em geral, III grau subo de tênis, sem muita dificuldade.

Com isso, já tivemos que gastar duas cordas para encordar esse rampão inicial. 

A terceira enfiada seria uma enfiada chave para a nossa escalada, pois a enfiada é graduada em V, um grau bem comum em várias enfiadas da via. O V grau é um grau bem lazarento. É tipo o 5.9 de Yosemite. Tudo é V, ou 5.9. Tem V com cara de IV e também V com cara de VI. Então calibrar o V dos cariocas era importante para ter um termômetro da via.

O V da terceira enfiada foi, no mínimo, bem adrenante. Quatro proteções em 55m, a matemática não fechava e sobrava muito espaço para esticão. Além disso, a parte superior da enfiada era mais vertical, exigindo uma boa leitura para encontrar o melhor caminho entre as proteções espaçadas.

Na P3.
Iury subindo a 3a enfiada.

Já a quarta enfiada era para ser mais difícil que a anterior, mas para mim, me pareceu aquele saco do V grau. E por sorte, essa enfiada era bem menos exposta e rapidamente cheguei na P4, onde fixei a última corda que tínhamos. 

Finalizando a 4a enfiada.

Como entramos na via depois das 15h, a escalada fluiu agradavelmente bem. Escalada na sombra, vento constante e rocha seca foram a tônica do primeiro dia.

Passamos a noite no camping do Fabinho, onde conhecemos uma turma de Itatim, Minas e Ibiraçu que também estavam na região escalando.

No domingo, acordamos às 4h e às 5h30 já estávamos nas cordas fixas. 

Subimos os primeiros 200m ainda sob a luz das lanternas. Chegamos na P4 bem na hora que o dia clareou totalmente. 

A próxima enfiada era outro V grau, mas, pelo menos, dessa vez tinham 8 proteções em 55m. Pela inclinação da parede já ficou claro que seriam 55m de pura emoção. Além disso, esse trecho era tomado de bromélias que dificultavam a visualização das chapeletas. Logo na saída da enfiada, já tomei um choque de realidade e depois segui até não encontrar mais a próxima chapa que presumi ser da parada. O croqui me jogava para cima, mas me pareceu estranho. Tentei pela esquerda, mas não achei nada. Tive que desescalar e tentar pela direita. Bingo, achei a parada.

Iury no final da 5a enfiada.

O Iury subiu limpando a enfiada. Nessa escalada, ele veio de segundo em toda via, sempre escalando. 

A nossa estratégia para o segundo dia foi a mesma de sempre. Escalada rápida e leve. Levamos 3L de água para cada. Sem subir com os tênis que deixamos na P4; alguns géis de energia, frutas secas e pastilha de isotônico. De material, levamos 12 costuras, 2 jogos de Camalot do #.5 ao #4 e mais um jogo de nut offset, além de várias fitas. E escalamos de corda dupla.

A sexta enfiada era o crux da via, um VI sup, antes de chegar nas fendas. O lance de VI sup me pareceu mais um VI e era bem protegido e divertido. A única coisa ruim dessa enfiada, e de várias outras, é que a via tem vários zig-zagues, exigindo muito trabalho de fita para minimizar a arrasto. 

As próximas 4 enfiadas seriam pelo lado direito do grande totem que fica no meio da parede, ou seja, a cereja do bolo da via!

A 7a enfiada começa com um diedro de mão perfeito de uns 15m de lamber os beiços. No finalzinho rola um trepa mato maroto e desgostoso, mas não chega a tirar o brilho da enfiada.

A 8a enfiada começa num diedro meio cego, difícil de proteger. Por sorte havia levado um jogo de nut offset que fez a diferença. Depois, a enfiada muda de cara e entra num diedro maior, meio assustador, mas que só assusta mesmo, até chegar na P8.

A nona enfiada era uma coisa estranha. A linha natural seguia pela fenda, mas o croqui indicava que a via seguia em proteções fixas. Três chapas em 45m. As chapas que conseguia ver estavam bem para fora da fenda, na face. Acho que esse foi o único trecho da via que não consegui entrar na mente dos conquistadores para fazer a leitura.

Em menos de 15m encontrei as 3 chapas que me jogaram de volta para o diedro que vínhamos subindo. Como o croqui dizia chapas, deixei parte das peças com o Iury. Tivemos que fazer um malabarismo com as cordas duplas para lançar uma alça para puxar as peças e seguir a enfiada. Conclusão, o croqui oficial tem um erro nessa enfiada. Essa enfiada é mista, com três chapas na saída para contornar a vegetação e depois segue em móvel até a parada. Aliás, na 7a enfiada também tem um pequeno erro no croqui oficial ao não indicar uma chapeleta no final da enfiada. Mais para baixo fiz um croqui atualizado colocando essas infos com a graduação sugerida.

A 10a enfiada seria a última enfiada da via “A tribo” que termina no topo do totem, juntando com a via Sol Invicto que vem pelo lado oposto do totem. Mais uma vez, o croqui ficou um pouco diferente da realidade e tivemos dificuldade para entender a enfiada. A coisa só ficou mais clara quando achei a proteção fixa na virada da fenda.

Essa enfiada está graduada em V, mas na minha opinião é mais dura que o crux da 6a enfiada. Pessoalmente acho que a 6a enfiada é um VI e a 10a, um VI sup, de boulder, bem maroto e protegido em peça.

Chegamos no cume do totem por volta do meio-dia. A primeira parte da missão havia terminado. Confesso que cheguei bem cansado. Além do esforço físico, a parte mental foi bem cansativa, principalmente pela leitura da via. 

Fizemos um breve descanso, mas o sol, a essa altura do dia, estava nos castigando em banho-maria. Por sorte, havia uma brisa constante que ajudava a disfarçar o calor.

No cume do totem.

Dali para cima, a via segue pela Sol Invicto, por mais três enfiadas até o cume.

A 11a enfiada começa em livre e depois segue em furo de cliff até a P11. Após passar aperto nos esticões dos cariocas, encontrar uma enfiada in house com proteções mais regulares foi um alento para minha cabeça. A minha única preocupação eram os furos de cliff. Uma das repetições da Sol Invicto baixou desse ponto porque não encontraram os furos. De fato, os furos são minúsculos, sendo preciso subir até o último degrau para encontrar o próximo furo de 6mm.

Nessa enfiada, o Iury subiu de segundo e conseguiu liberar de primeira o trecho do artificial. Segundo ele, deve ser um VI sup. Para fazer em livre guiando, talvez seja interessante ter mais uma chapa intermediária por serem 6 furos em sequência.

A enfiada seguinte, a 12a, começa novamente em furo e depois segue em livre até um platô, onde dá para sentir o cheiro do cume. Mais uma vez, o Iury subiu de segundo liberando a enfiada de primeira. Acho que se adicionar uma chapa, para tirar o fator de queda, dá para escalar totalmente em livre com uma boa margem de segurança.

No final da 12a enfiada.

A última enfiada foi só um protocolo e às 14h batemos no cume da Pedra Cará. Descansamos um pouco, bebemos um pouco de água, procuramos o livro de cume que não achamos e tratamos de iniciar a descida, pois ainda tínhamos 13 rapéis pela frente.

Cume!

Descemos a via em 2h30, e por volta das 17h já estávamos caminhando no cafezal, ainda sob a luz do sol.

Assim que chegamos no carro, sim fomos de carro até o cafezal, fomos surpreendidos por um influenciador digital com um celular apontado para nós fazendo várias perguntas sobre a escalada. Por um breve instante me senti o conquistador do Everest voltando da escalada e sendo cercado por repórteres.

Passado o momento de fama, fomos correndo atrás de um copo de água no Fabinho!

Deixo registrado os meus parabéns aos conquistadores pela coragem e audácia em abrir essa bela linha nessa pedra icônica. Meus agradecimentos sinceros ao Iury, que mais uma vez, teve que topar uma escalada além do desejado. Mesmo indo de segundo, Iury mandou muito bem escalando todas as enfiadas e principalmente por ter liberado os dois trechos de artificial.

E também faz se necessário agradecer o Fabinho por sempre nos receber de braços abertos no camping. Esse ano dei muito trabalho a ele! 

Comentários

4 respostas em “Tribo Invicto”

Baita rolê hein dupla!
O relato dessa escalada me inspirou mais ainda em querer entrar nessa pedra, quando escalei a supercanaleta, na pedra ao lado, fiquei o tempo todo espiando a pedra Cará e sonhando em escalar ela um dia, pelo que percebi exige muita preparação e planejamento para essa escalada mas deve valer muito a pena, essa pedra é fabulosa, um dia…
Parabéns pela escalada!

Obrigado mais uma vez Japa, foi incrível escalar essa via, me faltou coragem pra guiar essas enfiadas depois de ver o nível da exposição, um pouco acima da média principalmente nos lances de difícil leitura, mas sai feliz por ter conseguido acompanhar sem precisar usar meu par de jumar (onde não tinha corda fixa), ainda posso dizer que passei em livre onde o Japa usou cliff (nao preciso contar que foi de top kkkk). Subir essa pedra vai ser uma daquelas experiencias que vou levar pra minha vida toda.

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