Bicuda Bitela, a conquista da maior via em livre do Espírito Santo

^Nascer do sol no cume da Pontuda de Arapoca, Castelo – ES.

Histórico

Em 2014, o escalador Roney “DuNada” se mudou para cidade de Castelo/Cachoeiro, à trabalho, e começou a desbravar a região em busca de “sarna para se coçar”. Em novembro daquele ano, juntamente com Eduardo Casteletti, os dois deram o ponta pé inicial na conquista da Pontuda de Arapoca na região de Estrela do Norte, conquistando três enfiadas na primeira investida. Semanas depois, na segunda investida, dessa vez com o escalador local Taffarel Pariz, o trio conquistou mais cinco enfiadas, totalizando 480m de via.

Por uma série de questões, o projeto ficou parado por alguns anos, até que em maio do ano passado, numa permuta idiota, acabei aceitando o convite do DuNada para dar continuidade à via. Tudo isso está registrado neste post.

Naquela investida tocamos mais cinco enfiadas em dois dias de trabalho com direito a bivaque improvisado na chuva num platô descaído. Essa experiência vou levar para vida!

Encerramos a investida na P13 e descemos com a certeza de que voltaríamos logo para encerrar a conquista o mais breve possível, afinal de conta estava faltando “só” mais uns 150m até o cume.

A investida final

O tempo passou e o projeto acabou ficando de lado por uma série de “desculpas”, mas a lembrança e a curiosidade de saber o que nos aguardava depois da virada da P13 nos assolava constantemente.

No último final de semana, finalmente voltamos à pedra para matar a saudade e encerrar essa jornada que já perdurava a quase quatro anos.

O plano era bem simples. Repetir as 13 enfiadas num dia, achar um lugar para bivacar, no dia seguinte fazer o ataque final e descer a montanha. Falar assim é fácil, mas a logística por trás era bem complicada e trabalhosa, então resolvemos convidar o Afeto, amigão de longa data e parceiro de roubadas épicas! Além disso, convidamos também o novato “Leiteira”, um escalador novo com menos de meio de altura, mas com uma incrível capacidade de  infernizar as nossas vidas.

Separando os equipos.

Sábado, o primeiro dia

Chegamos na região na sexta-feira à noite e nos reunimos na casa do Felipe, um morador da região que possui uma infra bem legal para receber os basejumpers que saltam das pedras da região. As pedras como a do Fio e a Pedra do Cabrito são consideradas atualmente o que há de melhor em termos de basejump no Brasil e atraem dezenas de pessoas à região.

Felipe mostrando onde as cabras se escondem.
A imponente Pedra do Fio.

No sábado de manhã, às 5 horas acordamos ao som do maldito despertador, tomamos um café da manhã “mandraque” e fomos para pedra ainda na penumbra. Por volta das 6h com as primeiras luzes da manhã iniciamos o longo processo de repetir as 13 enfiadas com um haulbag e uma Leiteira cheia de água e chapeleta.

Afeto nas primeiras enfiadas da via.

Aqui cabe fazer uma explicação da tal “Leiteira”. Pensando em investidas que exigissem levar muito material parede à cima, no ano passado comprei uma leiteira de plástico de 30L para usa-la como haulbag, já que os haulbags de tecido não aguentam a abrasividade da rocha do Espírito Santo. Não preciso nem dizer que um latão cheio de água e chapa parede acima é um karma. E de fato foi! Principalmente para o DuNada que ficou de babá da lata.

Árduo trabalho de içar a leiteira.
Trabalho pesado.

Começamos os trabalhos com o Afeto guiando as enfiadas na segue do DuNada e eu com a parte do içamento. Levava um haulbag nas costas pela corda fixa e depois içava a leiteira  parede acima com um sistema de redução. Na P4, o DuNada assumiu os pesos e eu fiquei descansando na segue até a P8. A partir da P8 assumi o trecho que tinha conquistado na investida anterior e fui tocando até a P12, liberando todas as enfiadas.

Pelas cordas fixas. Foto: Caio Afeto.
Nona enfiada, a enfiada mais bonita e continua da via. Foto Caio Afeto.

Como a via faz um grande balão à esquerda a partir da P10, deixamos os haulbags e o DuNada ali e nós seguimos a escalada até a P13 que fica a exatos 120m acima da P10. Da P13 descemos até a P10 para recuperar o DuNada e os haulbags, assim evitamos de leva-los para dar um passeio em duas travessias horrendas.

Afeto liberando a décima terceira enfiada.

É claro que quando chegamos na P13 as nossas baterias já estavam bem baixas. Já eram 16h e estávamos na labuta a 11h. Assumi a ponta da corda para continuar a conquista e rapidamente me equipei para o trabalho. Olhei para cima e fixei uma meta: Ir até o alvo sem bater nenhuma chapa para ganhar tempo! Ninguém estava a fim de dormir na P13. Toquei um rampão e assim que virei para o outro lado, descobri que o trecho seguinte estava molhado. Molhado não, encharcado! Escorria tanta água que formava uma cachoeira em alguns trechos. Vale lembrar que na semana anterior, só na cidade de Vitória tinha chovido mais do que o esperado para o mês inteiro em apenas duas horas de chuva. Aquilo era muito surreal! Passei quase um ano pensando o que estava depois da P13, mas jamais imaginaria que tivesse uma cachoeira! Mas vi que tinha algumas agarras boas perdidas no meio do rio, então resolvi tocar assim mesmo. Bati uma chapa por garantia e fui! No meio do rampão molhado me dei conta que estava usando magnésio para secar as mãos nas agarras que vertiam água. Achei aquilo engraçado! Era a força do hábito, mas àquela altura só estava jogando magui fora e embatumando o saquinho. Desisti de tentar secar as mãos e fui tocando até achar um grande tufo de mato onde seria o nosso bivaque! No meio daquele lamaçal, com o sol se pondo e todo mundo cansado, acabei esticando toda corda de 70m na ânsia de chegar naquele platô seco. Depois, durante a descida, acabamos dividindo essa enfiada em duas partes para cortar o atrito brutal e permitir que a via pudesse ser repetida com uma corda de 60m.

P14 no no lugar menos molhado do rampão.

O platô da P15 era imenso, um grande capão de mato bem confortável com muitas árvores para montar uma rede (para quem levou) e dormir confortavelmente sem precisar ficar encordado.

Chegamos no platô com as últimas luzes do dia e ali nos acomodamos confortavelmente na medida do possível. A cena era muito hilária: Eu montei uma rede entre duas árvores com um toldo por cima para o caso de uma chuva, a final de conta, o tempo estava bem deteriorado. Nível Nutella Master; o Afeto, que não levou a rede, resolveu improvisar uma rede com o saco de dormir prendendo as extremidades com uma corda. Nível Professor Pardal Sem Sucesso; já o DuNada, simplesmente jogou o saco de dormir no chão, sem isolante, e em menos de 5 minutos estava roncando. Root Master!

Nosso bivaque na P15.

Fizemos uma pequena “boquinha” e fomos nos deixar um pouco, pois estávamos uma bagaça só. Após apagar por umas 3h, acordamos novamente, jantamos um arroz com lentilha e sanduíche e voltamos para “cama” novamente.

Como a previsão do tempo estava prometendo chuva para o dia seguinte e o tempo não estava lá grandes coisas, planejamos acordar novamente às 5h da manhã para dar continuidade à conquista. Do platô, o cume parecia logo ali, mas nós não iríamos cair nessa pegadinha, então resolvemos não baixar a guarda.

Domingo, o ataque final

Acordamos no domingo às 5h da manhã e ainda no escuro arrumamos as coisas e tomamos um café da manhã reforçado. A primeira luz da manhã iniciei a conquista por entre as bromélias em direção ao cume. Como o trecho final era bem fácil, bati apenas uma proteção para servir de orientação para repetições posteriores.

Bati a parada um pouco antes do cume e chamei os meninos, menos a Leiteira que dessa vez ficou de castigo no platô. Por sorte, o cume realmente estava logo ali. Seguimos o resto em direção ao cume caminhando entre as bromélias e trilha de cabra até um grande lajão onde concluímos a conquista. A sorte de ter saído cedo foi que ainda conseguimos curtir o amanhecer de um dos lugares mais bonitos que já vi no Espírito Santo. Com certeza foi a nossa maior recompensa por todos esses anos de trabalho para conquistar essa via. De um lado do vale, a imponente Pedra do Fio com a Pedra do Cabrito ao lado, ao centro o vale de Estrela do Norte com suas montanhas de granito e no outro lado do vale a montanhas dos Pontões de Castelo. Ao fundo, era visível o sempre imponente Pico do Forno Grande com suas nuvens fumegantes no topo.

Visão panorâmica do cume.

Sem pressa, gastamos um bom tempo ali até os mosquitos começarem a nos devorar vivos. Acho que por volta das 8h da manhã iniciamos o longo processo de rapelar 16 enfiadas até a segurança da base. Como tínhamos tempo e bateria, na volta ainda corrigimos dois trechos bem expostos adicionando chapas extras e por volta das 11h da manhã já estávamos na casa do Felipe devorando um pratão de arroz com feijão e frango! Uma delícia!

Curtindo o cume.
Bromélias.
Assinando o livro de cume.
Curtindo a paisagem. Foto: Caio Afeto
Selfie no cume!
Rapelando.

Como estávamos com energia de sobra, mentira, à tarde ainda fomos dar um rolé até o cume da Pedra do Cabrito para ver o Afeto mandar um jump e fechar o final de semana com chave de ouro.

Rampa da Pedra do Cabrito.
Afeto descendo pelo caminho mais fácil.
A natureza exuberante da região da Pedra do Cabrito.
Orquídeas.
E graminhas.

A via ficou com 900m de extensão e segundo consta no meu banco de dados, essa é a segunda maior via do Estado, ficando apenas atrás da via “Tempo e o Vento” que tem 1150m em Afonso Cláudio. Quanto a qualidade, a via é dividida em duas partes bem claras, a primeira parte até a P8 e da P8 até o cume. A primeira parte é bem tranquila com bastante agarras, já a segunda parte carece de agarras. Inclusive há bons trechos de aderência stricto sensu.

NomePedraCidadeExtensãoAno
O tempo e o VentoLajinhaAfonso Cláudio1150m2015
Bicuda BitelaPedra da ArapocaCastelo900m2018
Nada é o que parece serPedra PaulistaItaguaçu800m2010
Expresso LunarPedra da OnçaÁguia Branca740m2015
No fio da navalhaPedra do FioCastelo700m2015
NormalPedra do FioCastelo700m1972
Paredrão Carlos BernardoPedra da GavetaPancas700m2002
Vento dos RomaisPedra da GavetaPancas700m2016
Cruzeiro das LoucasPedra do LeitãoPancas675m2017
Amigos da CachaçaPedra Sombra da TardeCastelo665m2016
Lista das maiores vias do Espírito Santo.

Eu acho que uma boa cordada é capaz de repetir a via em menos 8h de escalada, mais 4h de rapel até a base, totalizando 12h na montanha.

Quanto a dificuldade e exposição, os trechos mais difíceis estão na nona e décima segunda enfiada com lances que chegam a 6º grau. Já a exposição, a via não passa de um E3 básico. Agora que os trechos mais expostos foram eliminados a escalada está bem agradável.

No fim, depois que tudo acabou, me sinto lisonjeado pelo convite do DuNada para essa conquista. Em dez anos de Espírito Santo essa foi a maior conquista que já participei e com certeza foi um grande aprendizado, do tamanho da montanha.

Agora é descansar um pouco para voltar à via novamente para fazer a repetição integral em uma única esticada! Que venha a temporada!

Estado final da Leiteira!
Foto abstrata.

Vídeo

O Afeto ainda fez algumas tomadas durante a escalada que virou um filme. Irado!

Para ler mais sobre a via, clique aqui!

Croqui

Croqui final da via.

Comentários

2 respostas em “Bicuda Bitela, a conquista da maior via em livre do Espírito Santo”

Iraaado demais parabéns conquistadores!! Agora aderência strictu sensus foi ótimo kkkk

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