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Anos 90, segunda parte

Se você não leu a primeira parte sobre os “Anos 90”, clique aqui para se contextualizar, pois este post é uma continuação.

No início de 1998, me mudei para capital do mundo, Porto Alegre, para cursar a faculdade de Geologia na UFRGS. Com isso, se antes eu tinha que pegar três ônibus para ir ao “Ita”, agora estava a apenas um ônibus da “Meca da escalada esportiva gaúcha”. Além disso, essa mudança trouxe novas oportunidades para aprimorar os meus treinos, que era uma coisa que estava começando a implementar na minha rotina. Naquela época, não havia ginásios de escalada em Porto Alegre. Só algumas pessoas tinham muros privados, como o Duca e o Guili. E também tinha o muro do Danilo na Serraria (Serraria é um bairro de Porto Alegre, quase em Itapuã)!!!! Esse era o único espaço privado, que mediante ao pagamento de uma diária, eu poderia treinar durante a semana. O problema era que eu morava no Bairro Anchieta, lá pelos lados do Aeroporto, ou seja no extremo oposto. Isso dava umas 2h de ônibus para ir, mais 2h para voltar. Passava mais tempo no ônibus do que treinando. E para testar mais ainda a minha tenacidade, eu só conseguia ir pela manhã, depois da aula, e o pessoal que frequentava o muro só ia a noite, então eu acabava treinando sozinho. Mas pior do que isso era o rottweiller do Danilo. O bicho dava medo, era um cachorro gigante que ficava solto na casa. E ele não era muito chegado num japonês. Várias vezes tomei “carreira” dele…

Treinando no muro do Danilo. Foto: Lair Jr. (?)

Já aos finais de semana, ao invés de estudar, ia para o “Ita” ou Pudim. Se o “Ita” era a Meca, o Pudim era a “pedra desejada”. Sempre teve fama de só ter vias duras. Era comum as pessoas falarem:

Um dia vou escalar no Pudim!

Mas naquela época, eu achava que poderia dominar o mundo, então eu queria ir no Pudim e conhecer as famosas vias de lá. Mas antes, no Ita tinha uma via que era (e ainda é) a menina dos olhos dos escaladores: a via Triton, graduada em 8c. Se tivesse que escolher uma via que melhor representasse a escalada esportiva gaúcha, seria essa via! A via é relativamente curta, não tem mais do que 12m, mas todos os movimentos são únicos. Possui um dos botes mais “tecnik” que já fiz, além de um “le parkour 3D” para entrar embaixo do teto. É um daqueles 8c* que você faz sem tijolar os braços se conseguir levar tudo nos encaixes.

*Na época, havia dúvida sobre a graduação da via, se era 8c ou 9a, mas hoje ela é considerada 9a. A primeira ascensão foi realizada pelo escalador Guilherme Zavaschi em 1994.

Escalador local “Nativo” repetindo a via Triton.

Já naquela época, a Triton tinha uma áura e todos queriam provar, escalar, encadenar… Sempre que íamos no Ita tinha um top rope com corda náutica instalado na via, poucas pessoas ousavam guiá-la, e a maioria não passava nem do bote. É claro que eu tinha muita curiosidade para provar essa via, mas ao mesmo tempo sentia muita vergonha. Afinal de contas, eu era um novato no meio das lendas. Um dia, Daiti e eu tivemos uma ideia para entrá-la: iriamos para o Ita num sábado, escalaríamos o dia inteiro e no final do dia, quando todos fossem embora, iríamos montar um top rope para malhar a via. Assim, esperamos todos irem embora e entrei pela primeira vez na via. Naturalmente não mandei, nem consegui tirar todas as passadas, mas eu consegui armar o bote (que é difícil)! Fiquei mais feliz do que no dia que mandei a via! À noite, acampamos no Ita e no dia seguinte, antes dos primeiros escaladores chegarem, ainda malhamos mais uma vez na “camufla”. É claro que a cadena ainda demorou um bom tempo, mas em agosto de 1998 finalmente consegui mandar esse clássico. As fotos que ilustram esse post são de uma sessão de foto pós cadena. Pelo estilo das fotos, foram tiradas pelo Antonio Nery.

Famoso bote da Triton com a segue do Bazotti.

Depois da Triton, o caminho natural foi desbravar o Pudim que fica ali pertinho. As vias no Pudim são, em geral, bem curtas, menos de 10m, e sempre bem boulderísticas. São vias bem específicas que exigem técnica e força ao mesmo tempo. Inclusive o termo “estilo gaúcho” deve ter nascido nessas vias. Dentre as várias vias de lá, duas são marca registrada: A Coisa (9a) e Filhote de Moso (9c). “A Coisa” é uma via de 3 proteções, mais a parada que não existe… Quem chegasse no final da via, tinha que se jogar da última agarra e descer. Tudo isso porque no top, a rocha é muito podre para aceitar uma proteção fixa. De todas as vias complexas de Pudim, “A Coisa” talvez seja a mais completa por exigir movimentações muito específicas, sendo o entalamento de joelho final o mais bizarro e famoso de todos. Esse entalamento final, descoberto pelo Fabrício “Piu-Piu”, foi “a salvação da lavoura” para os menos mortais como nós, pois o Guili que fez o FA e passou sem entalamento…

Cena clássica na “A coisa” (9a). Foto: John.

Já o “Filhote de Moso”, é uma via que difere um pouco do estilo Pudim, pois ela transcorre por um pilar negativo de aproximadamente 20m, com uma sequência de 3 crux’s, sendo o último o mais instável e famoso de todos. Uma vez conversei com o Duca sobre a história dessa via e ele me contou que esse era um projeto futurístico. Na época, eles nem equiparam toda via, pois achavam que era viagem do Guili. No início tinha apenas algumas chapas e ali ficaram malhando, ou melhor, tentando descobrir toda a sequência de movimentos da saída. Para se ter uma ideia, para fazer a saída tinha que fazer um entalamento duplo de joelho. Imagino que esse tipo de movimentação era tão fora de época que nem constava nos manuais de escalada. Quando finalmente descobriram a saída, a via foi totalmente equipada e a primeira ascensão ficou à cargo do Guili em 1995 (se não me engano).

Entalamento de “toe” antes do crux final da via Filhote de Moso (9c). Foto: Samuel.

Na época, botei na minha cabeça que eu tinha que mandar essa via antes de completar 20 anos, por isso fui com certa frequência para conseguir mandar a tempo. Na minha 7a entrada consegui mandar o 3o crux e caí mais acima nos lances de remada que exigem certa vontade, pois as agarras ficam mais longe. A frustração de não ter mandando naquela entrada tomou conta de mim e entrei num bloqueio mental profundo e foi preciso mais 7 entradas para conseguir dar a volta por cima e mandar a via. Naquela época, e ainda hoje, me importo muito com o número de tentativas. Não bastava mandar a via, tinha que mandar com o mínimo de entradas. Mandei a via no dia 23/03/1999, faltando 7 dias para completar 20 anos! E se não me engano foi a 1a repetição (guiando) da via.

Em paralelo as minhas idas ao Ita e Pudim, em alguns finais de semana também subia a Serra Gaúcha para escalar na Gruta e no Salto Ventoso. Diferentemente do Ita e do Pudim, a escalada na Gruta é muito diferente. Vias negativas, atléticas e exigentes são o estilo predominante. Para mim, aquilo era a materialização das vias nas gringas que olhava nas revistas. Mas tinha um problema: eu não conseguia escalar esse tipo de via! Não tinha a força necessária para fazer aqueles movimentos atléticos. Nessa época, na Gruta só havia as vias: Animal (8b), Diedro (8a), Lesão Cerebral (7c), O herege (8c) e Utensílios da Igreja (7c). Hoje, tem mais de 40 vias! Então não tinha muita opção, ou tomava sova ou chorava num cantinho.

A combinação entre a dificuldade das vias, o fanatismo e doutrinação do Jimão fizeram com que nos anos seguintes, Caxias do Sul fosse o “celeiro” de uma nova geração de escaladores muito fortes.

Na saída da via “O Herege” (8c) com segue do Balen. Foto: Jimão.

Eu era tão fanático que subia sozinho de ônibus até Caxias, o Jimão me pegava na rodoviária e íamos para Gruta. Também foi nessa época que o Jimão adotou um menino prodígio da escalada, o Thiago Balen. Lembro que, com frequência, íamos à Gruta nós três para malhar “O herege”. O Jimão, já naquela época, mandava a via de bota para colocar as costuras para nós e eu tentava chegar na 2a costura…

Eu nunca vou me esquecer do dia que entre pela primeira vez no “O Herege” sob tutoria do Jimão. Ele tinha uma corda roxa de 9mm da Bera (9mm não era padrão na época, e não havia corda nacional homologada e ainda por cima tava bem velha). Encordei me naquele barbante e ele deve ter me dito:

Vai loko!

Naquela época também não tinha essa de primeira costurada ou entrar com a segundo. Pelo menos ele colocava as costuras para dar uma “ajuda”. Consegui chegar na 1a costura me peidando de medo, mas quando chegava na 2a costura não tinha força para costurar e caia!!! Não era muito bonito de se ver…

Também foi nessa época que o Salto Ventoso ganhou novas vias que foram conquistadas pelo Duca, Careca, Léo, Cony e Guili após voltarem da Europa. Naquela época, todas as vias estavam concentradas no setor do “Sexo Algema” e todas as vias, com exceção da “Sá” (7c), eram acima do sétimo, sendo a via “Homem não chora (9b/c), a via mais dura. Escalar no Salto era duro, pesado, parecia que cada agarra consumia mais energia do que a média, mas é nas dificuldades que nós aprendemos. Aliás, naquela época, todos nós aprendemos muito com aquelas vias. Com certeza foi um trampolim muito importante para a evolução pessoal e nível da escalada esportiva gaúcha.

Na clássica “Sexo Algemas e Cinta-liga” (8c).

Já em 2000, no final da década e virada da milênio, fiz a minha primeira trip mais importante para Serra do Cipo (MG), mas isso é assunto para o próximo post (se essa quarentena continuar…). Por hora é isso!

PS: lembrando que as graduações das vias são da época. Muitas vias, com o tempo, foram recalibradas, para cima ou para baixo.

Caderninho original onde anotava todas as ascensões. Ainda hoje continuo anotando todas as escaladas, mas numa tabela Excel.

Comentários

7 respostas em “Anos 90, segunda parte”

Muito bacana, eu que to começando fico inspirado vendo esses relatos, muito legal mesmo.

Muito legal essa retrospectiva…faz com também lembre de muitas coisas. Aliás, minha primeira ida ao Itacolumi foi no dia da tua cadena na Triton. Eu ainda nem sabia guiar uma via, me arrastava nos 5º, foi marcante ver alguém escalando uma via daquelas!

Caraca Torres, não sabia dessa história. Eu não lembro bem desse dia. Massa ir resgatando fragmentos da história!

Sensacional essas lembranças Japa, mesmo sem quarentena continue que você nos inspira demais!!!

Você é o cara japonês!
Quero ver se essa retrospectiva vai continuar até os tempos do ES…
Ia ser massa!

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