“Entre a cruz e o tubarão”

^ As montanhas da região de Afonso Cláudio ao entardecer.

O princípio “romântico” da escalada solitária é muito bonito! É uma luta entre você e a montanha e mais ninguém. Mas a realidade é que, na prática, as coisas não são bem assim. A escalada solitária é bruta, árdua, suada e sempre muito sofrida. Não há nada de “romântico” nisso. Isso sem contar o desgaste psicológico, que torna, às vezes, um simples lance de 5º grau num bicho de sete cabeças. No entanto, mesmo com todos esses percalços, ainda gosto desse sofrimento e da “fritura mental”, pois ainda me considero um velho escalador “romântico”.

No mês passado, dei um rolé pela região de Afonso Cláudio e comecei uma conquista em solitária numa pedra anexa à Pedra do Tubarão, mas tive que abortar a empreitada na P2 por causa da chuva.

Naquela investida, a chuva não foi o maior dos problemas, para mim, o que realmente me deixou chateado foi a minha “performance” na pedra. Senti-me demasiadamente cansado ao logo de todo processo, tudo não fluía num bom ritmo por falta de condicionamento físico. Por isso, desci da via decidido a focar os meus treinos nessa parte por um mês para voltar novamente à via.

O tempo passou, fiz o dever de casa e agora estava na hora de voltar lá para enfrentar a pedra.

Temido haulbag com todo material de conquista.
Primeiro desafio, carregar quase 30kg de equipo.

O mês de março é bem complicado por aqui. Muita chuva, tempo instável, uma verdadeira loteria. Passei a semana estudando as previsões e conclui que no domingo, dia 25, teria alguma chance.

Acordei às 4h30 de domingo e pé na estrada. Assim que sai de casa, eu vi uns carros molhados na rua. Pensei comigo: é comum chover de madrugada nessa época do ano por aqui. Peguei a estrada rumo ao norte e o asfalto estava encharcado. Ok, é comum chover, ainda mais perto do mar. Olhei para o céu, e com as primeiras luzes da manhã vi um cúmulo-nimbo! Normalmente esse tipo de nuvem aparece mais para o final do dia, após um dia muito quente, mas de manhã cedo foi a primeira vez. Mal sinal…

Em Fundão, virei para oeste e segui em direção a Santa Teresa. Agora quem estava molhado era eu: chuva!! Mas ok, vamos manter as esperanças, afinal de conta, sempre chove nessa região.

A minha esperança era de que quando passasse pela cidade de Itarana o tempo fosse melhorar, mas não melhorou. Na verdade, não estava chovendo, mas parecia que a qualquer hora iria cair o mundo.

Tempo estranho em Itarana.

Virei para o sul rumo à cidade de Afonso Cláudio e para lá o tempo estava perfeito! Céu azul e sem nuvens! Perfeito, fiquei um pouco aliviado!

Passei na casa do proprietário da pedra, pedi permissão e fui até o final da estrada. Quando sai do carro, senti o ar pesado, um ar abafado e estranho. Para o lado norte as coisas não estavam muito boas, mas mesmo assim segui o planejamento.

Botei o haul-bag de quase 30kg nas costas e fui decidido a fazer a aproximação com estilo, sem sofrimento como da última vez. Entrei na mata e quando vi a pedra entre as árvores, ela não estava mais lá! A pedra ficou encoberta por uma espessa nuvem branca. Logo em seguida começou a ventar e assim que botei o primeiro pé no costão começou a chover com vontade.

Chuva!!!!! No início do costão que leva à base da via.

Eu simplesmente não estava acreditando naquilo. Acordei às 4h30, viajei 3h de carro, carreguei esse lastro nas costas e quando ia começar a melhor parte do dia, chuva! Na hora não tive muito tempo para frustrações, tive que montar um abrigo de emergência para não me molhar e molhar os equipos. A chuva não durou mais do que 10 minutos, mas foi o suficiente para molhar a pedra e começar a formar algumas cachoeiras.

Abrigo de montanha improvisado.

Esperei mais 30 minutos para deixar a pedra “secar” e resolvi adiantar a aproximação pelo costão. A via começa ao final de uma travessia por um costão de aproximadamente 100m. Subi uns 5m e logo descobri que a pedra não estava seca o suficiente. Tentei voltar e não consegui, tentei prosseguir, mas também não consegui. A pedra tinha um limo que o meu tênis não conseguia aderir. Achei uma laquinha e ali fiquei imóvel, esperando a pedra secar mais um pouco. Meia-hora depois, tentei novamente. Dessa vez, resolvi levar só uma retinida, ir até um lugar seguro e içar o haul-bag. Como a pedra estava mais “seca” consegui seguir a aproximação pelo costão com muito cuidado.

Esperando a pedra secar no meio do costão. Nem parece que choveu.

Cheguei na base da via por volta das 9h30. Agora a minha preocupação era em relação ao horário, pois estava bem atrasado no meu cronograma. Fiquei um pouco receoso quanto a isso, mas botei na cabeça que iria subir sem compromisso, sem atropelos, afinal de conta estava sozinho no meio do nada.

Repeti a 1ª e a 2ª enfiada sem problemas. A essa altura a pedra já estava com uma boa aderência e me senti bem confortável. Da P2 estiquei uma travessia à esquerda por um veio de cristal para buscar um grande diedro e seguir por ele até esticar a corda. Por sorte consegui fechar a enfiada toda e móvel, limitando a 2 chapas para fazer a parada. Desci para recolher o material e quando cheguei de volta à P2, chuva!

Inacreditável! Parecia que a pedra estava me testando. Olhei para o entorno e vi que a chuva era bem localizada, então puxei o anorak e fiquei esperando.

P2. Esperando a chuva passar.
Mais uma selfie enquanto a pedra dá uma secadinha básica.

Assim que a chuva parou e o sol voltou, continuei a escalada. A 4ª enfiada foi uma longa diagonal à esquerda para buscar outro diedro. Toquei uns 40m sem proteção até a base da fenda onde fiz uma parada móvel.

A 5ª enfiada parecia ser muito boa, um diedrão de uns 30m até um platô. Toquei curtindo a escalada, cheguei no platô e como ainda tinha corda, resolvi tocar pela calha d´água até esticar a corda.

Início da 5a enfiada.

Repeti o Mantra da escalada solitária rapelar, limpar, jumarear… A essa altura, o sol estava a pino. As nuvens de chuva sumiram e a chapa estava ficando cada vez mais quente.

A 6ª enfiada parecia ser a mais desafiadora e bonita. E de fato foi! A enfiada começou por uma fenda até a mesma sumir, depois passei para uma fenda do lado e fui até ela acabar novamente. Pulei para 3ª fenda da direita e fui até não ter mais opção. Um lance bem interessante na vertical e ganhei uma agarra. Por prudência bati uma chapa, não queria quebrar os pés novamente. Mais um lance e outra fenda! Que maravilha! Toquei até a cereja do bolo, onde um pequeno lance de boulder me esperava. Viradinha marota protegida com um cam #2 e feito! Estava ganho.

No meio da 6a enfiada, a mais bela e vertical de todas.

Da P6 já dava para sentir o cume. Faltava uns 60m ou 80m. Conforme previsto anteriormente sabia que o final seria por um longo costão.

A essa altura a minha água estava no fim. Para poupar peso, tive que abrir mão de alguns mL e agora estava pagando o preço. Além disso, por causa do calor, os meus pés estavam esturricando dentro da sapatilha. A vontade era conquista a última enfiada de tênis.

Toquei sem proteger para ganhar tempo, mas tinha uma muralha me separando do cume. Procurei uma linha aleatória e toquei para cima. Bati uma chapa no crux da enfiada (V) e subi voando até esticar a corda. Cume!

Dei uma volta pelo cume para curtir a vista e fazer umas fotos. Também tentei procurar por passagem humana, mas não encontrei nada. Achei que pudesse ser um cume virgem, mas na face oeste vi uma linha de escalaminhada que poderia ser vencida por um morador local mais corajoso. Depois, conversando com um “local” fiquei sabendo que tem como subir caminhando, provavelmente por esta face.

Do cume, a Pedra do Cruzeiro e os Três Pontões ao fundo.

Iniciei a descida por volta das 15h30, abrindo 7 rapeis até a base. Rapelar sozinho é tão cansativo quanto escalar. Você precisa fazer tudo: abrir o rapel, puxar a corda, montar a parada, enrolar a corda… E ainda por cima levar todo material para baixo.

Cheguei no carro ainda com luz e feliz da vida com o resultado. Mesmo com todos os percalços, no fim deu tudo certo. Além disso, fiquei feliz com o meu desempenho, mesmo não sendo o ideal.

Mais chuva na volta para Vitória, mas agora pode chover!

Batizei a via de “Entre a cruz e o tubarão”, pois ela fica entre a Pedra do Tubarão e a Pedra do Cruzeiro. No guia do Baldin, ele chama a Pedra do Tubarão de Pedra do Cabrito, mas os moradores locais a conhecem como Pedra do Tubarão. Quanto à via, é uma excelente escolha para quem busca escalada de aventura em terreno relativamente fácil com uso constante de proteção móvel.

Segue o croqui!

Leia mais sobre a via, aqui!

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