Senta que vem história!
Na semana passada, enquanto fuçava uns croquis, achei uma via bem interessante que nunca tinha dado atenção em Água Branca: Menina da Roça, uma conquista dos escaladores cariocas de peso de 2007, provavelmente sem repetição até hoje.
Achei o grau de dificuldade interessante e fui atrás de mais informações no intuito de repetir a via. Como a via possui grampo simples nas paradas, resolvi consultar um dos conquistadores, o Miguel Monteza, para saber se poderia, pelo menos, duplicar as paradas para não precisar descer em grampo simples. A partir de uma troca de e-mails, consegui a liberação para fazer essa melhoria e fui ver a previsão do tempo para o final de semana.
As previsões não eram das melhores, pois uma frente fria estava a caminho do Espírito Santo e iria chegar com força na noite de sábado. Para o sábado, a previsão estava boa, mas com muito calor e o “Chuck” que iria comigo, tinha compromisso nesse dia. No domingo, a temperatura estava perfeita. Havia a possibilidade de chuva no sábado a noite, mas coisa de 10mm em algumas regiões de Águia Branca. Em geral, as frentes frias de inverno chegam com pouca chuva no Espírito Santo, então sabia que poderia dar certo, desde que não fosse em ano de El Ninõ.
Partimos no sábado às 4h30 de Vitória. Pelo caminho muitas poças de água indicando que a chuva foi intensa durante a madrugada, mas o céu estava sem nuvens, prometendo um belo domingo. Na altura de Colatina, mergulhamos numa neblina surreal. Por vezes, a visibilidade estava na ordem de 10m. Atenção redobrada ao volante! A densa neblina nos acompanhou até a entrada de Pancas. Mau presságio.
Assim que passamos por Governador Lindemberg vimos muita lama e areia na pista, indicando que choveu muito mais do que os 10mm previsto. Ali ficou claro para nós que a nossa escalada estaria comprometida, pois sabíamos que as pedras também estariam encharcadas.
Como já tínhamos rodado 180km, não custava rodar mais 20km para ter certeza do inevitável.
Como a via fica na beira da estrada conseguimos avaliar dali mesmo que não teríamos a mínima chance de escalar a via naquelas condições. Assim, partimos para o plano B.
Plano B
Em 2018, andei pela região com Rodrigo e na ocasião vi que na ponta da Pedra Torta, havia um pequeno totem fendado que poderia dar alguma coisa. Provavelmente não daria cume em livre porque o totem vai apenas até o primeiro quarto da parede. Para cima, a parede segue vertical e sem agarras.
Rodeamos a pedra e escolhemos uma casa para solicitar passagem. Na primeira casa, a moça disse que teria que falar com o vizinho. No vizinho, o senhor disse: não vou autorizar! Explicou que a pedra era sagrada, que tinha gado e tudo mais. Respeitamos a decisão, agradecemos a atenção e fomos embora.
Confesso que fiquei bem chateado com a situação. Sei que é um direito do proprietário escolher quem pode e quem não pode entrar nas terras, mas sempre é difícil quando isso acontece. Aliás, isso é uma coisa bem incomum por esses lados. Em geral, as pessoas são sempre bem receptivas e acolhedoras, mas vez ou outro acontece algo assim.
Tentamos uma 3a casa, a mesma por onde entramos em 2018, mas o dono já tinha mudado e o atual informou que a base da pedra não estava nos terrenos dele, mas sugeriu uma 4a casa.
Seguimos a peregrinação e fomos até a 4a casa, onde encontramos o proprietário e explicamos as nossas intenções. Ele explicou que o ponto, onde queríamos ir, ficava no vizinho do lado. Àquela altura estava totalmente incrédulo com a situação. Por uns 10m não era possível acessar a pedra. E ele disse:
– Por mim, vocês podem passar pelo meu pasto, mas a pedra fica no terreno da minha irmã e acho mais correto conversar com ela.
Explicou que a irmã morava em Governador Lindemberg (15km), perto de um posto de gasolina, mas que a essa hora estaria na igreja.
Sem muita opção rodamos até a cidade a procura da proprietária. No meio do caminho perguntei para o Chuck:
– Chuck, esqueci o nome da pessoa, você lembra?
– Vixe, esqueci também!
Agora estávamos indo até a cidade a procura de uma pessoa que não lembrávamos o nome… Chegamos na cidade e fomos atrás da igreja. Achamos a igreja e abordamos uma pessoa na entrada e perguntamos se ele conhecia uma senhora que tinha uma casa na base da Pedra Torta! E ele falou!
– Acho que sei, espera um pouco!
Coisa de cidade pequena! Bingo, em minutos apareceu uma senhora e nós explicamos as nossas intenções. E ao final ela disse:
– Vocês vão ter que falar com meu marido que está em casa!
Sabe quando você acha que não é pra ser?
Fomos com ela até a casa, mas acabamos não encontrando o marido, então ela disse:
– Como ele não está aqui, então eu autorizo a passagem de vocês!
Eu não sei se fiquei feliz, na verdade, fiquei apreensivo. Fiquei pensando: será que depois de tudo isso, a pedra ainda vai ser boa? Pois só nessa brincadeira gastamos mais de 2h rodando e conversando com as pessoas. Entretanto, isso faz parte do montanhismo. Se você quiser escalar montanhas, precisa, antes de mais nada, respeitar os moradores locais e sempre pedir passagem, mesmo que não seja conquista. Isso é lei!
Voltamos à pedra e fomos até a casa do meeiro para explicar que conseguimos a autorização para, finalmente, colocar as mochilas nas costas e partir para conquista.
A aproximação foi relativamente rápida. Tirando o pasto alto molhado com carrapatos e o ganho de elevação, o resto foi tranquilo!
Chegamos na base do totem e vimos que o mesmo tinha uns 10m de largura por uns 60m de altura, quase um pilar mal escorado prestes a desmoronar.
No lado esquerdo do totem vimos um belo diedro aberto fendado que subia majestosamente até sumir de vista. Pareceu um início bem promissor, mas tinha um detalhe: estava úmido!
A essa altura, isso era o menor dos problemas, depois de tudo que passamos, não seria uma pedra úmida que faria nos desistir.
Tirando o trecho úmido da saída, o diedro era perfeito! Entalamento de dedo, mão, double… Fiz a festa em quase 20m de escalada! Ao final, o diedro ficou sujo e tive que passar para fenda da direita até ganhar um pequeno platô, onde estabeleci a P1 e chamei o Chuck.
Dali para cima, o totem seguia e parecia que eu estava diante de um menu de restaurante de fenda. Eu tinha 3 opões de fenda a escolha.
Fiz uma travessia à direita novamente para ganhar uma bela fissura frontal de dedo e subi até o ponto que eu teria que escolher uma das 3 fendas. Tentei o mais óbvio, pelo meio, mas a fissura ficou dura e eu não tinha levado meus micro-friend, então tive que desistir. Fui para fenda da esquerda, mas descobri que era uma fenda de meio corpo numa laca fina. Fiquei com medo da laca e fui para última opção, a fenda da direita.
Mais uma travessia entre fendas e cheguei num pilar vazado que formava um diedro de mão que ia progressivamente diminuindo até sumir.
Sem muita opção, subi pelo diedro rezando para que o pilar aguentasse o meu peso. Tirando isso, a fenda era perfeita com bons entalamentos e bem aéreo.
Subi até a fenda sumir. Logo acima vi que tinha um platô onde poderia estabelecer a P2. Bati uma chapa para ganhar o platô, mas logo descobri que tudo era instável demais.
Ai o Chuck sugeriu que eu fosse pela fenda da esquerda, a continuação da fenda do meio.
Pensei: fala isso porque não é ele que está na ponta da corda! Olha essa fenda, mal cabe o dedo!
Fiz mais uma travessia e voltei à fenda do meio que seguia fina, mas com algumas agarras suspeitas por fora.
Toquei pela fissura frontal até chegar num outro platô onde estabeleci a P2.
Chamei o Chuck que subiu limpando a enfiada. Dali para cima, a fenda seguia mais uns 5m por uma rocha bem instável e depois entraria no headwall. Eu acho que daria pra ganhar mais uns metros em chapa, mas como a ideia era escalar a fenda, resolvemos encerrar a via por ali mesmo.
Como ainda tínhamos um tempo, perguntei para o Chuck se eu poderia tentar a cadena da segunda enfiada, pois na conquista tive que parar para bater uma chapa.
Assim, descemos até a P1 e entrei para liberar a 2a enfiada sacando as peças.
Confesso que me senti aqueles escaladores “pros” que escalam liberando as enfiadas.
Logo na saída da enfiada, uma agarra de pé quebrou e voei na parada. Assim, como o Chuck brincou comigo, mandei a via na 3a entrada…
Liberada a via, descemos sob um vento gélido que jogava a corda para fora da via e após 2 rapéis estávamos na base da via em segurança.
Pensando em tudo que aconteceu e pensando na via que acabamos abrindo, acho que valeu todo esforço. Sem dúvida é uma das melhores vias em móvel que temos por aqui. Eu colocaria a via, batizada de “Fissura dos Milagres” por tudo que aconteceu, no mesmo patamar da “Super Trunfo”, outra via clássica em móvel que transcorre por uma bela fissura de dedo.
Obrigado ao Chuck que entrou nessa furada e foi até o fim. Graças a insistência dele abrimos mais uma gema da escalada Capixaba!
Para ler mais sobre a via, clique aqui!
2 respostas em “O milagre”
Que isso ein japa, parece ser muito boa!
D+! Pilho voltar!