Em 2015, os escaladores Fabrício Amaral, Fábio Fábre “Chuck”e Léo Baião iniciaram a conquista de uma via numa parede que fica na descida da serra para Venda Nova do Imigrante (ES). Na ocasião, conquistaram duas enfiadas e assim que iniciaram a terceira enfiada foram surpreendidos pela chuva e tiveram que abandonar a conquista.
Desde então, o projeto ficou parada. Em 2019 perdemos o Amaral e o que ficou parada, estava fadado a cair no esquecimento, mas o Chuck sempre quis finalizar essa via, principalmente depois do que aconteceu com o Amaral.
No início da temporada, Chuck e eu fizemos um acordo: ele me auxiliaria nas conquistas e eu o ajudaria a terminar essa via.
Temporada chegando no fim e nada mais justo do que cumprir o acordo. Assim, no último domingo fomos até Venda Nova do Imigrante para fechar a temporada em chave de ouro e tentar finalizar a via iniciada há quase oito anos.
Na semana anterior, o Chuck já tinha ido até a região para “refazer” o reconhecimento da via e acertar o acesso. Assim, quando fui com ele no domingo, tudo ficou muito mais fácil para mim.
Sempre que descia essa serra, meus olhos se voltavam para essa parede. Para quem escala e/ou conquista é algo muito natural, mas sabia que ali o páreo seria duro, pois tudo indicava que o granito era fino e bem homogêneo, ou seja, sem muitas agarras. A única forma de abrir uma via em livre seria aproveitando algum sistema de fraturas, ou nada feito. E sempre que passava ali procurava alguma dessas linhas, mas nunca a chegava a uma conclusão. Sabia que o Amaral tinha uma conquista iniciada, mas sempre achava que era um devaneio por parte dele.
Uma pedra é como uma grande tela onde nós, conquistadores, aproveitando o esboço deixado pelo Criador e pintamos uma linha de escalada. Cada pessoa tem uma visão, um entendimento do esboço. A maioria não vê nada diante de uma pedra, mas um olhar mais apurado consegue imaginar uma linha, um traçado, por onde possamos ganhar a pedra. Ter esse olhar exige tempo, paciência e acima de tudo, experiência que vem apenas com o tempo e muita ralação.
O Amaral foi um grande escalador ativo do Estado, com muitas contribuições para o esporte. Ele foi responsável por difundir o esporte em Venda Nova do Imigrante (Parede de Uliana) e criar a primeira geração de escaladores locais, além de construir um muro de escalada nas instalações do IFES. Mas ele ainda tinha pouca experiência na arte de “pintar pedras grandes”. Na verdade, essa linha foi a primeira incursão nesse mundo. Conquistar via tradicional é algo muito oneroso que requer investimento pesado e tempo disponível, coisa que Amaral, na época de universitário, não dispunha.
Chegamos na base da pedra por volta das 9h50, após uma rápida aproximação. O Chuck tinha uma certa dúvida em relação ao início da via, pois não lembrava com exatidão os detalhes da conquista. Rodamos um pouco a base e para mim não tinha nada mais óbvio do que a fenda que subia a perder de vista.
A primeira enfiada parecia muito tranquila, mas logo acima a parede ganhava inclinação parecia intransponível. Fiquei pensando o que o Amaral viu ali para seguia a linha por aí. Será que ele não tinha pretensões de subir tudo? Será que ele achava que aquela calha que eu estava vendo era fenda de verdade? Será que ele pretendia sair pela face? Será?
Comecei a escalada pegando a primeira enfiada que segue por uma bela e fácil fenda frontal. Uns 20m acima vi a parada e ficamos aliviados em saber que estávamos no caminho correto.
Estabeleci a parada num lugar desconfortável e fiquei pensando: por que a parada estava ali e não 2m abaixo, num platô mais confortável?
Olhei para cima e vi a linha seguindo por uma chaminé bem óbvia que naquele dia estava úmida e com musgos verdes devido às chuvas dos últimos dias.
Confesso que senti um certo conforto em saber que a próxima seria do Chuck. Como essa enfiada foi conquista por ele há 8 anos, seria um bom “revival”.
Pela primeira vez vi o Chuck escalar com gana, botou para jogo em vários momentos e mesmo caindo nas peças na seção final do trepa mato tocou firme até a parada.
A próxima enfiada seguia por uma laca cega que virava uma grande oposição negativa. Da parada, vi duas chapeletas bem oxidadas pelo tempo junto a laca. O Amaral era um amante das escaladas em fenda, então sabia que só bateria uma chapa em último caso. Por isso, já sabia que a fenda não era “protegível”.
Segundo o Chuck, durante a conquista, o tempo começou a virar nesse ponto e resolveram descer dali, no início da terceira enfiada, após bater duas chapas.
Peguei a ponta, até porque o Chuck estava um trapo após lutar no trepa mato. Mal conseguia dar segurança. Cheguei rapidamente na 2a chapa velha e olhei para cima para ver o que Amaral estava vislumbrando. A fenda cega seguia e depois virava um belo diedro. Parecia que ele estava no caminho certo. A linha era ousada, mas era bem coerente. Bati mais duas chapas e ganhei a base do diedro. Logo constatei que a fenda não era lá grandes coisas. Subi em artificial limpando para deixar pronto para passar em livre.
Ao fazer a virada do diedro consegui ver o que me aguardava para cima. Essa era uma parte que nem o Amaral havia visto e não sabia o que o aguardava. A linha seguia por uma laca cega até sumir na base do segundo headwall. Parecia fácil, parecia que dava para proteger, mas eu estava errado. Tive que subir numa mescla de artificial com livre até o final da laca. Estabeleci uma parada num lugar bem desconfortável após puxar 30m de corda.
Dali, a única opção seria sair em diagonal à direita com os pés num friso que saia em diagonal, apoiando as mãos num segundo friso que subia paralelamente ao primeiro.
Será que o Amaral havia visto tudo isso de longe?
Olhei para o Chuck, mas ele ainda seguia sem condições.
Fizemos uma recontagem das chapas e vimos que o estoque estava um pouco apertado em relação ao que estávamos vendo para cima.
Toquei a diagonal achando que ia “tirar de letra”, mas acabei gastando 5 chapas para vencer esse trecho, com direito a queda com furadeira na mão. Do final da diagonal já dava para ver o cume, ou a primeira linha de vegetação. No rack tinha mais 5 chapas, ou seja, teria 3 chapas para chegar o cume e mais duas para parada.
Toquei o trecho final por um terreno no mínimo “aventuroso” e estabeleci a parada na base da vegetação mais densa.
Enquanto esperava o Chuck subir, fiquei pensando na conquista e vi como a linha tinha a cara do Amaral. Ficou uma escalada relativamente curta, mas muito diversificada, onde tem um pouco de tudo. Na verdade, tem a assinatura do Amaral. Com certeza ele teria se amarrado em escalar essa via!
O Chuck chegou no cume por volta das 16h e aproveitamos para fazer um lanche antes de iniciar a descida.
Na volta ainda nos “atracamos” num pé de jabuticaba enquanto pensávamos em um nome para via. Batizamos de “Se nada der errado, tudo vai dar certo”, uma frase muito proferido pela Amaral!
Agradecimento ao Chuck por ter me chamado para terminar esse projeto. Confesso que não vejo a hora de voltar lá para liberar as enfiadas!
3 respostas em ““Se nada der errado, tudo vai dar certo””
Boaaa, o texto ficou incrível, que homenagem bacana ao Amaral. Parabéns aos conquistadores.
Obrigado Japa!!!
Em memória do nosso grande irmão Fabrício Amaral.
Viva Amaral, que bela conquista!