Um sonho, um plano

Esses dias li uma frase do famoso escalador suíço Ueli Steck, que numa tradução livre para o português seria algo como:

“… um sonho sem um plano é apenas um desejo. ”

Isso é a mais pura verdade, pois todo mundo tem sonhos, mas poucos têm um plano para torna-los realidade. E foi exatamente isso que aconteceu com uma montanha chamada Pedra da Andorinha em Cachoeiro de Itapemirim.

Eu conheci essa agulha pela primeira vez em 2009 quando me mudei para o Estado e fiz uma trip de reconhecimento pela região. E desde então, almejei escala-la, mas sempre acabou ficando no campo do “sonho”, sem um “plano” concreto.

Em meados do mês passado, o “sonho” começou a deixar ser apenas um “desejo” e começou a ganhar “plano” quando o DuNada deu a deixa dizendo que também gostaria de escalar a pedra, já que é possível vê-la da casa onde está morando. Nada mal, hein? Logo em seguida, o Afeto também demonstrou interesse ao visualizar um novo “exit”. Assim, mais uma vez, o trio roubada, cada um com suas aspirações estava unido novamente com um “sonho planejado”.

Planejamento e organização!

Dois dias depois, o Amaral me procurou no Zap para perguntar se eu ainda tinha magnésio para vender e no final perguntou:

– Qual a boa para final de semana?

Falei sobre os planos e ele comentou que já tinha tentando escalar esta pedra sem sucesso a alguns anos atrás. Então resolvi convida-lo a entrar na barca! Carregadores são sempre bem-vindos!

Saímos no sábado, às 5h da capital e após um rápido café da manhã na estrada, por volta das 8h, estávamos na pequena comunidade localizada aos pés da montanha para encontrar o DuNada que veio de Cachoeiro.

Na última casa, antes de entrar na mata, ainda encontramos o Waldecir, morador local, uma figura ímpar que já escalou a montanha algumas vezes e participou de outras conquistas na região.

Após uma rápida caminhada de aproximadamente de 40 minutos encontramos a base da via. Segundo o Guia Capixaba, há pelo menos 2 vias na Pedra da Andorinha que levam ao cume, sendo a Chaminé UNICERJ a primeira via conquistada em 1988 pelos escaladores Mário Arnoud e Santa Cruz. A via transcorre pela evidente chaminé da face sul que corta a pedra da base até o cume, totalizando aproximadamente 170m de escalada.

Face sul da Pedra da Andorinha com a chaminé que corta a pedra da base até o cume.
Caminhada de aproximação. À direita é possível visualizar parte da Chaminé UNICERJ.
Trecho final da aproximação pelas cordas fixas.
Pose para foto!

Nos dividimos em duas cordadas, Amaral e eu na frente e o Afeto e o DuNada na outra. Como a primeira enfiada parecia ser muito estética transcorrendo por uma fenda frontal em diagonal toda grampeada, malandramente me adiantei e ofereci para abrir os trabalhos!

Primeira enfiada! Foto: Caio Afeto.

É claro que bonito não quer dizer necessariamente fácil. E o que à primeira vista parecia ser fácil se mostrou bem dura. Além disso, várias proteções estavam bem precárias, principalmente os pítons Cassin de 30 anos que estavam bem oxidados. Por sorte, levamos um jogo de Camalot que foi primordial para melhorar os trechos mais críticos, principalmente o lance do crux, graduado em VII.

Afeto no lance crux da primeira enfiada.

Já a segunda enfiada, à cargo do Amaral, foi a parte mais “escrota” de toda via, sem sombra de dúvida. Nesse trecho, a via emboca para dentro da grande chaminé que segue até o final. A chaminé é tomada por uma pasta, por vezes seca, formada por trilhões de fragmento de bicho morto. Bom, pelo menos foi isso que nós concluímos. E quando ela fica molhada e resolve escorrer por dentro da chaminé, a cena não é nada agradável, principalmente se tiver que ir se esfregando por dentro de uma chaminé estreita. Estava me sentindo no filme do Indiana Jones…

Amaral no trecho mais sujo da via. Nem tudo são flores.
P2 da via depois de retirar toda craca que a deixou escondida.
Cunha de madeira original da conquista.

Vencido o trecho do lodo e virando o primeiro teto, a chaminé fica um pouco mais “agradável”, mais seca e com menos “cocô de bicho morto”. A partir da quinta enfiada, a chaminé fica mais limpa, mas a verticalidade e o grau de claustrofobia se mantém até o cume. O crux psicológico, que agora não será mais porque estou contando, está na penúltima enfiada, onde a parada fica escondida e a impressão que se tem é de que há um longo esticão, pois só é possível ver o primeiro grampo da última enfiada.

Amaral na escura e apertada chaminé da 4a enfiada.

Já a última enfiada, em conjunto com a 1ª, é, sem sombra de dúvida, uma bela enfiada, com bons lances em chaminé. Infelizmente alguns grampos dessa enfiada já estão bem oxidados, o que dá um tempero extra para escalada. Aliás, a dica de ouro é levar um Camalot #2 para proteger o lance final, onde os grampos estão em piores condições.

Após a conquista, a via recebeu vários grampos extras, colocados pelos próprios conquistadores para deixar a montanha mais “democrática” (filosofia da UNICERJ), mas quando se escala com atenção dá para saber quais são os grampos originais da conquista e quais foram adicionados depois. E posso garantir que não foi tão ruim terem colocado alguns grampos extras em algumas seções. Por outro lado, com o passar do tempo, muitos grampos estão bem degradados pela oxidação e pela pasta de inseto que muitas vezes enterra o grampo, dificultando a visualização.

Grampo da última enfiada.
Amaral na última enfiada.

Por volta das 15h, após 4h de muita ralação, todos nós chegamos ao cume da montanha. Infelizmente, o cume não era bem o que eu estava esperando, pois é densamente vegetada com belas bromélias e muitos espinhos. Caminhar pelo cume exigiu uma dose extra de sofrimento. Até hoje ando com uma pinça na mochila, pois vire mexe acho um espinho perdido em mim.

Foto no cume! Foto: Afeto.

Como o Afeto levou o paraquedas dele, bastou jogar uma pedra de cima da montanha, contar os segundos e tchau! Em menos de 10 segundos ele já estava deitado no pasto curtindo a vista da montanha.

Como descer de uma montanha em 10 segundos com segurança!

A nós, só nos restou procurar a linha de rapel pela face leste entre a pedra principal e a montanha ao fundo e descer por uma linha de rapel vertiginosa até o colo da montanha.

Rapel pela face leste. Se estiver com dor de barriga, não desça!

Assim que todos nós nos encontramos na base, finalizamos mais um pequeno sonho, movidos por desejos pessoais e unidos por um único objetivo, de estar na montanha com os amigos! Afinal de conta, chegar no cume da montanha sem dar boas risadas e passar por bons apertos não tem a menor graça!

Curtindo a vista enquanto desce a montanha. Ao fundo, as montanhas da região da Serra das Torres.

Esse ano, em março, a conquista desta montanha completou 30 anos. E acho que essa repetição foi uma boa forma de homenagear os conquistadores. Independente do estilo usado na conquista (artificial) e de como nós repetimos a via (em livre) é preciso tirar o chapéu para a dupla. Considerando a época, os equipamentos disponíveis e a imponência da rocha, a conta não fecha senão tiver uma boa dose de coragem.

Entardecer na montanha. Cidade de Cachoeiro no primeiro plano, ao fundo à esquerda os Pontões de Castelo e à direita, as montanhas da região de Forno Grande.

 

Croqui

 

Vídeo

Comentários

4 respostas em “Um sonho, um plano”

Massa demais o registro!! Pena q dessa vez não deu pra gente trocar muita ideia na montanha, pois a dupla AA (Arima + Amaral) estava bem a frente e eu tive q dividir meus momentos de perrengue com o Caio. Um cara de quase 100 kg numa chaminé não vai passar bem… kkkkk Mas gosto de estar nas montanhas, por isso agradeço aos três por mais uma vez me proporcionar bons momentos. Mesmo com pedra, poeira de bosta e bosta úmida caindo sobre nós… Vida q segue!!!

Vocêssssss são fodaa. Incrível essa trip. As manchas pretas na pedra podem ser guano de morcego, kkkk. Agora vcs sabem o que eu passo arrastando nessas merdas dentro da caverna. Não entendi o por quê do Caio dando seus clássicos peidinhos com a boca, tava tãooo protegido aquele trecho, kkkkk. Mas ele compensou com o salto depois. Uhuuuuuuuu

Hahahahaha, então, não tinha cheiro. Pode não ter cheiro? Cara, se olhar bem no vídeo vai ver que o lance é protegido em piton velho. É mais do que suficiente para peidar, hahahahaha.

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