Raiz forte

O Afeto é um cara que “não sabe brincar”:

– Afeto, vamos para o Calogi?

– Zaz, e ai a gente faz as oito vias do totem e depois desce para “Batida” e finaliza na “Linha Final”!

– Afeto, vamos para os Três Pontões?

-Zaz, ai agente escala a “Pedra da Bunda” num dia e no dia seguinte faz o Principal e o Tubarão nos Três Pontões!

Ok, o “zaz” é licença poética porque ele não fala assim, mas é sempre assim. E no último final de semana não foi muito diferente:

Afeto, partiu escalada no finde?

-Bora abrir uma via no Cabrito (Castelo)?!

-Oi? Calma ae! Vamos com muita calma nessa hora!

-Então vamos abrir uma via no “Pontão Rachado” nos Cinco Pontões de Itaguaçu?

Assim, às 8h30 de um lindo dia de primavera, estávamos estacionando o carro, literalmente, aos pés do Rachada, na face sul do Complexo dos Cinco Pontões para abrir uma via por uma fenda que corta a pedra da base até o cume por um único sistema de fenda.

Estacionando na base do Pontão Rachado.

Eu já tinha namorado essa linha quando fui pela primeira vez em 2015, mas depois fiquei sabendo que o Baldin tinha iniciado uma via na Rachada. Imaginei que fosse por ali e acabei deixando de lado a ideia. Depois, fiquei sabendo que, na verdade, o Baldin tinha começado uma linha fora da fenda, por uma aresta em artificial. Então teoricamente a fenda estava livre. Mais ou menos livre, porque descobrimos que o Zudivan havia subido 10m por um trepa-raiz que fica na base da fenda para dar uma olhada. Assim, teoricamente, a via era dele, por isso o contatamos para saber “quais eram as intenções com a linha”.

Quando chegamos na base da via, o Zudivan já estava lá. Ele havia vindo no dia anterior e tinha fixando os primeiros 10m com uma corda fixa para adiantar o serviço. Infelizmente, por motivos pessoais, ele não poderia participar dos 2 dias da investida, por isso ele já foi adiantando o trabalho para fazer o dia render. Afinal de contas, lá no fundo, tínhamos a esperança de abrir a via em um dia. Quem nunca…

Chegamos na base e logo fomos recebidos por um enxame (de abelhas cachorras)! Foi um corre-corre para botar a cadeirinha e subir pela corda fixa do Zudivan para fugir das abelhas. Começamos bem o dia.
Como a via era do Zudi, gentilmente cedi a ponta da corda para ele começar os trabalhos. A linha era bastante óbvia e sem muitas possibilidades. Seguia por uma fenda com bastante vegetação até um headwall onde a fenda parecia maior, chaminé, depois ela “perdia inclinação” até o cume do totem e seguia até o cume pela face por um “rampão fácil”.

O Zudi se equipou, tocou uns 8m e começou a reclamar dos blocos soltos e da dificuldade em colocar uma peça decente. Com um pouco de motivação vindo de baixo, tocou mais um pouco, mas logo achou melhor passar a vez para não demorar muito.

Zudivan abrindo os trabalhos.

Antes mesmo dele descer eu já estava pronto para assumir a ponta, até porque, equipo não era problema. Por falta de comunicação estávamos com 4 jogos de friends, incluindo dois Camalot #6, mais 250m de corda para encarar a via. Era equipamento demais para uma empreitada de um dia.

Equipo não é problema!

Comecei os trabalhos e fui me embrenhando na fenda com mato. Alguns metros acima comecei a me sentir desconfortável e logo percebi que, embora a linha fosse relativamente descaída, uns 70 graus, havia trechos de rocha mais vertical intercalado. Passado o susto e após esticar uma corda, montei uma parada fixa. Olhei para cima e pensei: o Afeto vai abrir a próxima enfiada que parece bem fácil pela fenda, depois pego a próxima e já estaremos na base do headwall!

O Afeto, olhou para cima e disse:

-Acho que vou de tênis! Como o meu pé não está legal, melhor ir de tênis. E também, a próxima parece bem fácil.

Se equipou, tocou uns metros e disse:

-Segura ai que vou ter que colocar a sapatilha!

Nunca mais escalou de tênis.

Afeto começando a enfiada e o calor pegando.

Assim como eu, o Afeto também havia subestimado a escalada. Olhando de longe parecia tão inofensivo, mas quando se está na luta, as fendas somem, o mato atrapalha, os Camalot’s prendem em tudo e parece que “o chão” está se desfazendo constantemente.

A essa altura eu já estava com o olho mais calibrado e sabia que a quarta enfiada não seria fácil, porque olhando da parada parecia fácil. Além disso, o Sol já tinha virado a montanha e estava nos castigando com força. Para deixar a cena mais dramática, não havia uma única nuvem no céu. O dia prometia.

Zudi se protegendo do Sol.

Toquei a 4a enfiada e basicamente bati uma parada onde o meu corpo simplesmente não aguentava mais seguir escalando. Um misto de esforço contínuo com peso, escalada instável, mal protegida e calor, muito calor. Bater a parada era o maior prazer do dia, porque sabia que o sofrimento tinha chegado ao fim.

A essa altura, já estava claro que não chegaríamos no cume em um dia. A nossa meta foi recalibrada para uma árvore que fica logo depois do headwall, passando o que parecia ser o crux da via. E o resto ficaria para o dia seguinte.

O Afeto assumiu novamente a ponta com a missão de chegar na base do headwall. Mais uma vez a escalada se mostrou bastante exaustiva e ele também teve que “jogar a toalha” antes de esticar a corda inteira e chegar na base do headwall.

Afeto começando a 5a enfiada.

A essa altura, após 5 enfiadas, nós éramos incapazes de esticar uma corda cheia de 60m por enfiada. A maioria das enfiadas ficou com uns 50m porque depois dos 40m a única coisa que a gente queria era bater logo uma parada em qualquer lugar para acabar logo com aquele sofrimento e passar a corda.

Vista da região, ao fundo a Lajinha de Afonso Cláudio.

A visão da P5 para cima não era nada animadora. Rocha vertical, totalmente obstruída por um tufo de espinho e uma chaminé estreita nos aguardavam. Mesmo com a minha bateria na reserva, resolvi iniciar a enfiada, pelo menos para dar um adianto para o dia seguinte. Dessa vez, subi em A1 abrindo caminho no meio dos espinhos numa chaminé estreita. A essa altura ninguém falava mais nada, todos estávamos cansados. A dada altura, enquanto eu lutava para me desvencilhar dos espinhos, vi a paisagem do entorno. Vi ao longe os Três Pontões de Afonso Cláudio, a Pedra da Lajinha com a pedra anexa que estive na semana passada e tudo isso com uma bela luz dourada do entardecer. Naquela hora caiu a ficha e me questionei o que eu estava fazendo ali, sujo, maltrapido, exausto e totalmente envolto por espinhos. Na hora, puxei a furadeira, bati uma chapeleta e pedi para descer.

Iniciando a 6a enfiada. Foto: Zudivan.
A hora que “pedi para sair”.
Encerrando o dia. Foto: Zudivan.
Uma foto antes de descer.

Descemos fixando corda e ainda deixamos todo equipamento na P5 para o dia seguinte.

O nosso plano original era acampar na base da via, mas como estávamos imundos decidimos descer até a casa do Alemão na comunidade de Cinco Pontões para pedir um banho.

Uma foto da equipe a caminho do banho.

Por sorte, o banho ainda rendeu uma deliciosa janta caseira com aquela receptividade típica do povo do interior.

Nos despedimos do Zudivan que voltou para Vitória e retornamos até a base da Rachada para o nosso bivaque.

A chuva

Durante a madrugada fui acordado com a luz de um clarão no céu. Mais um clarão e “ficou claro” que estava relampeando pelos lados de Pedra Azul e Afonso Cláudio. Como a bronca era por aqueles lados, tratei de me virar para o outro lado e segui dormindo.

Minutos depois, o vento aumentou e senti uns pingos no meu rosto. Em pouco tempo, os pingos foram aumentando e começou a chover de verdade. O Afeto desmontou a rede e se refugiou no carro. Peguei um toldo, coloquei o sobre a rede e fui dormir.

Depois disso, não lembro bem o que aconteceu, pois as minhas memórias são uma mistura de sonho, alucinações, realidade e clarões. Às vezes, sonhava que estava chovendo; às vezes, chovia muito de verdade; de repente, a noite virava dia e já não sabia mais o que era sonho e realidade.

Às 4h, o meu despertador tocou. Era o horário combinado para fazer o ataque final, mas com essa chuva toda… Botei a cabeça para fora da rede e não vi o Afeto, logo conclui que ele também chegou a mesma conclusão que eu. Virei para o outro lado e segui dormindo.

Quando o dia raiou fui ver o estraga da chuva na pedra. Naturalmente a pedra estava molhada, mas sem nenhuma tira de água expressiva.

Amanhecer nos Cinco Pontões.

Como havíamos deixado todo equipo na P5, de qualquer jeito teríamos que subir pelas cordas fixas para recolher o material. Decidimos que subiríamos até a P5 para avaliar a situação.

Tomamos um café da manhã e partimos para as cordas fixas. Jumaremos uns 200m e vimos que, apesar da chuva, a chaminé estava seca devido à negatividade da pedra. O Afeto assumiu a ponta da corda para conquistar a segunda parte da 6a enfiada. De fato, a chaminé se mostrou bastante exigente e muito aérea. Após mais de uma hora de batalha, finalmente o Afeto chegou na árvore que queríamos ter chegado no dia anterior.

Sem o Zudivan para dividir o peso, tive que levar mais peso e a jumareada foi bastante desgastante. A minha esperança era de que depois da árvore a via desse uma trégua, mas já estava calejado do dia anterior e sabia que a via continuaria exigente.

Dito e feito, a 7a enfiada, que era para ser fácil, se mostrou uma longa e infinita chaminé levemente aberta para fora com bastante vegetação no fundo. Dessa vez resolvi subir mais leve. Deixei várias peças para trás e subi só com a furadeira presa entre as pernas. Se precisasse de uma peça, pediria para o Afeto me mandar pela retinida rezando para que não ficasse presa em algum galho.

Chaminé da 7a enfiada.

Toquei pela chaminé até sucumbir ao esgotamento, o que aconteceu por volta de 40m. A minha ideia era ir até o final do totem, mas o caminho estava muito desgastante. Para deixar tudo mais dramático, a pedra ainda estava úmida da chuva e não conseguia me sentir confortável (acho que nem seco…).

Chamei o Afeto e ele partiu para tocar a 8a enfiada. Agora vai! Da P7 já dava para ver o contorno do totem. Que alívio!

É claro que a 8a enfiada se manteve dura quanto as anteriores e o Afeto sofreu para passar os lances expostos. Assim que ele achou a primeira oportunidade para deixar a chaminé e sair para o dorso da pedra, nem pensou duas vezes e se jogou até não aguentar mais e jogar a toalha novamente.

Estava nítido que estávamos cansados, pois essa enfiada ficou com 30m, ou seja, as enfiadas estavam ficando progressivamente mais curtas. Estava faltando só uns 10m para chegar no topo do totem, mas ele já não tinha mais forças e a parada ficou por ali mesmo.

Juntei me a ele na P8, comi alguma coisa e toquei para cima. A chaminé havia acabado depois de 280m de escalada! Que alívio! Que sensação de liberdade. Foi muito prazeroso voltar a escalar com a mochila nas costas e não entre as pernas.

Toquei até o final do totem e parti para o costão final que nos levaria até o cume. Bati uma chapa e estudei o tamanho da bronca. Naturalmente, o rampão não era um rampão, mas sim uma série de ondas com trechos verticais intercalados. Olhei para o meu rack e vi que tinha apenas 6 chapeletas para uns 80m de parede.

Ponderei a situação e achei por bem não me expor aquela altura da escalada. A pedra ainda não estava completamente seca, pois de tempo em tempo vinha uma garoa que molhava, deixando tudo mais escorregadio.

Eram por volta de 15h30 quando decidimos que estava na hora de bater em retirada. Parecia estarmos tão perto, queríamos muito o cume, demos muita gana nos últimos dois dias, nos esforçamos além da nossa zona de conforto, mas não teria como. Era preciso pensar na segurança. E a montanha não sairia dali. Além do longo rapel pela chaminé, ainda tínhamos que descer com todo material, incluindo mais de 250m de corda. Ou seja, ainda tínhamos muito trabalho pela frente.

Baixando com a mochila e o haulbag.

Baixamos tudo, recolhemos todas as cordas, levamos tudo para o carro antes do anoitecer e fomos direto para o Recanto dos Cinco Pontões para um banho e uma comida caseira. Afinal de contas, ainda tínhamos 3h de carro até Vitória.

Sherpa.

O Afeto fez um pequeno vídeo dessa escalada sob o ponto de vista dele.

Agora é descansar um pouco e pensar no retorno. Valeu demais Zudi e Afeto, essa escalada foi memorável!

Comentários

3 respostas em “Raiz forte”

Só você mesmo para topar essas roubadas Japa, obrigado pela oportunidade de compartilhar a ponta da corda com você!!!

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