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Repetição da Chaminé Brasília

Postagem atualizada em 27/10/2021 – Adicionei informações sobre a repetição de 1978. No post original essa informação estava ausente.

Aviso: este post é longo! Disparado o mais longo de todos. Recomendo ler com tempo (10 min.) e de preferência num computador para uma melhor experiência. Ao final, ainda há um vídeo da escalada!

“Cavalo encilhado não passa duas vezes.”

Essa é um dito popular gaúcho que levo para minha vida! Na procrastinação do dia a dia, tendemos achar que a vida é cheia de oportunidades e que se perder uma chance, mais a frente teremos outra, mas acabamos esquecendo que a nossa passagem pela terra é curta e cada oportunidade da vida tem a hora certa para acontecer. Por isso, quando na semana passada, o escalador nascido no Espírito Santo, mas carioca de coração Gustavo Diniz me convidou para tentar a via Chaminé Brasília na Pedra da Agulha em Pancas com a escaladora Lívia Cardoso, não tive muita escolha.

Pedra da Agulha.

Histórico

A via Chaminé Brasília, com 450m de extensão, foi conquistada em 1959, após quatro dias de conquista, pelos escaladores Carlos Russo, Emil Mesquita, Giuseppe Pellegrini, Nélson Bravin e Rodolpho Kern, todos do Centro Excursionista Rio de Janeiro (CERJ) – Leia mais no boletim do CERJ. Por muito tempo foi considerada a maior via em chaminé e uma das mais difíceis do Brasil. Segundo o livro “Escalada Capixaba” de Oswaldo Baldin é:

“Considerada um mito já tendo derrotado muitas cordadas modernas. Poucas foram as que a repetiram integralmente”.

Além disso, essa é a primeira via de Pancas. Inclusive, essa conquista está registrada no cartório da cidade.

Em termos de Espírito Santo, a Pedra da Agulha é a 6a via.

1a via Pico do Itabira (1948);

2a via Frade e a Freira (1949);

3a via Morro do Penedo (1951);

4a via Pontão Médio de Mimoso do Sul (1957);

5a via Três Pontões de Afonso Cláudio (1958);

6a via Pedra da Agulha (1959).

Também realizamos uma pequena revisão com o Gustavo, Lívia e ajuda primordial do Waldecy Mathias Lucena (RJ) de todas as ascensões que a via teve e descobrimos que:

1a repetição foi em 1969. Os escaladores Carlos de Almeida Braga, Rodolfo da Silveira Chermont de Miranda e Carlos Henrique Tibiriça de Miranda (todos do CEC) realizaram a 1a repetição da via após 10 anos da conquista. O relato desta repetição está aqui!

2a repetição – Em 1973, os escaladores George White, Jean Pierre Von Der Weid, Alex Pereira Soares e Natanael de Oliveira realizaram a 2a repetição da via. O Jean Pierre precisou fazer 3 tentativas para atingir o cume desta montanha. No livro “Horizontes Verticais” do Jean Pierre há um capítulo sobre a saga desta escalada.

Jean Pierre na Chaminé Brasília, Pedra da Agulha, Pancas, 1973

3a repetição – Em 1978, um ano antes de eu nascer (!!!), os escaladores do Clube Excursionista Carioca – CEC, Natanael de Oliveira, Sérgio Bruno Firmino Pinto, Pedro Paulo de Lima e Silva Filho e Alexandre L. Garcia realizaram a 3a repetição da via.

Fotos de Natanael de Oliveira.

4a repetição – Marcelo Leite, Gustavo Helder, Ronaldo Paes escalaram a via após 2 noites na montanha esperando a chuva passar. Esta escalada foi realizada na década de oitenta.

5a repetição – Sérgio Poyares e Sérgio Bruno. Década de 80.

6a repetição – 1983 – Sérgio Tartari e José Bezerra Garrido.

7a repetição – 1999 – Jeferson Monteiro, Adriano Fiorini, Marcel Leoni e Leandro “Bidu” (todos membros do Clube Excursionista Petropolitano – CEP) realizaram a repetição e manutenção das linhas de rapel adicionando 6 grampos de 1/2 polegada. O relato desta escalada está aqui! E aqui!

Em 2011, os escaladores Gustavo Silvano e Cláudia Faria conquistaram uma nova via na face oposta a Chaminé Brasília e a batizaram de Paredão Bernardo Collares (5o, VI, A1/7b, E3, D4, 600m). Para ler o relato da conquista, clique aqui!

8a repetição – 2012 – Sandro Souza e Fabrício Amaral. Essa foi a primeira repetição da via formada por escaladores locais. A descrição desta escalada, registrada pelo Sandro em suas memórias, serviu de base para nossa repetição.

9a repetição – 2021 – Gustavo Diniz, Livia Cardoso (primeira ascensão feminina da via) e Naoki Arima.

Preparativos

Uma vez que disse “sim”, não tinha mais volta! A data já estava marcada e a previsão apontava condições perfeitas. Durante a semana do preparativo, juro que em alguns momentos pensei em desistir. Pensei em dar qualquer desculpa esfarrapada para “fugir” desse compromisso. Até porque eu já tinha uma ideia do que me esperava. Lendo todos esses relatos históricos ficou claro que ninguém escalou essa via com tranquilidade e sem um mínimo de comprometimento. Além disso, em 2011, repeti com o Caio Afeto a Chaminé Cachoeiro no Pico do Itabira e sabia o que era escalar o dia inteiro numa chaminé e ainda ter que bivacar no cume. Mas num determinado momento, todas as minhas angústias sumiram e fui tomado por uma sensação de euforia e gana. A euforia foi tamanha que nessa hora decidi que eu gostaria de guiar a 2a enfiada da via, a mais técnica.

Rack

Em termos de material de escalada, usamos como base o que o Sandro e Amaral levaram e as recomendações do David Ribeiro.

No fim levamos:

Uma corda dupla de 8mm x 60m. Como estávamos em três, a estratégia era fazer uma cordada em “A”. Onde o participante 1 subia limpando a enfiada e o participante 2 subia pela corda fixa orientando o içamento das mochilas. Para isso, levamos uma tagline 6mm x 65m para içar o material e/ou algum material móvel durante a guiada. Também levamos dois jogos de Camalot do #.3 ao #6, mas o guia sempre escalava apenas com um jogo, até o #4, para não ficar pesado. Em caso de necessidade içava mais alguma coisa pela tagline. No fim, concluímos que 2 jogos era exagero. O Camalot #6 assim como o Big Bro #4 também se mostraram pouco úteis. Talvez a dica seja levar até a P3 e ali abandonar para resgatar somente na volta. Além dos Camalot levamos um jogo de nut, mas também acabou tendo pouca serventia. Talvez o ideal seja levar apenas um jogo de offset.

Também levamos várias fitas com mosquetão livre e algumas costuras. Costuras acho que foi inútil levá-las. Fitas, não! Duas fitas de 240cm foram muito úteis para laçar pedras entaladas e as fitas de 60cm foram muito úteis para laçar os grampos originais que na maioria das vezes estavam tortos, além de algumas de 120cm.

Por segurança, levamos um pequeno kit de material de conquista, composto por um martelo, batedor, broca e chapeleta de inox, mas no fim acabamos nem usando.

Outro equipamento fundamental foi a joelheira. Usamos uma joelheira de vôlei e ajudou muito! No meu caso, acho que ainda faltou uma cotoveleira, porque ralei muito!

A nossa estratégia foi subir em estilo alpino leve sem fixar corda e tentar o cume no mesmo dia, mas mesmo assim sabíamos que um bivaque na montanha seria inevitável. Até onde ficamos sabendo, nenhuma cordada conseguiu escalar a via sem um bivaque (D5). Por isso levamos um saco de bivaque com um liner.

Em termos de água e isotônico, consideramos 2,5L por pessoa para 1 dia e meio na montanha. Para mim, essa litragem deu na medida. Devido à complexidade da via, qualquer peso extra acaba comprometendo o desempenho da escalada; por isso, é fundamental levar o mínimo necessário.

De comida, levamos o básico de sempre, frutas secas e gel para o dia e sanduíche para janta. Também levei Palatinose que misturava na água para garantir uma energia extra.

De material extra, ainda levamos um rastreador Spot para uma emergência.

Até onde conseguimos acompanhar, há sinal de celular (Vivo) até a P6 e depois da P8 até o cume, mas sempre com qualidade questionável.

Pedra da Agulha.

O grande dia

Nos encontramos na 5a feira, dia 17, à noite, no Camping Cantinho do Céu que utilizamos, como sempre, de base para realizar a escalada. O Gustavo e a Lívia vieram do Rio e eu de Vitória. Fizemos uma pequena “reunião” para acertar os últimos detalhes e conheci pessoalmente a Lívia que ainda não a conhecia. A Lívia é uma escaladora relativamente nova, tem apenas um ano de escalada, mas já possui bastante experiência de montanha e se mostrou bastante independente nos dias seguintes. Já o Gustavo, conheci pessoalmente em Pancas no mês passado quando ele e Bianca estiveram pelo estado realizando diversas repetições; tais como o Dedinho em Afonso Cláudio, a Pedra Paulista, Expresso Lunar e mais recentemente a Chaminé Cachoeiro com a Lívia e mais dois escaladores do CNM, o Blanco e o Luis. Embora nunca tivéssemos escalado juntos, sabia que a dupla era fera, pois conhecia o cacife de cada uma dessas vias que eles tinham repetido no Estado.

Após separarmos as mochilas para o dia seguinte, revisamos a estratégia de ataque e fomos descansar um pouco. O plano era acordar às 4h para começar os trabalhos.

Por incrível que pareça, consegui dormir e fui acordado pelo despertador às 4h, ainda no escuro. Tomamos aquele café da manhã forçado, sem muita conversa e por volta das 5h15 partimos de carro em direção à base da montanha. Para acessar a pedra, usamos o tracklog disponibilizado pelo Brunoro que está no Wikiloc. Esse tracklog foi bem útil para não se perder no cafezal a noite e achar o início da trilha, bem escondida. Para fazer a trilha, também usamos outro tracklog disponibilizado pelo Brunoro, que também foi um adianto, pois nos levou diretamente até o mirante.

Para ver o tracklog completo da aproximação, clique aqui!

Chegamos na base da via por volta das 6h45. Levamos aproximadamente 45min de caminhada na trilha que passa pelo famoso mirante da Pedra da Agulha.

Aproximação.
Tamanho da encrenca.

A escalada

Às 7h iniciamos a escalada. Decidimos escalar a via em bloco, onde Gustavo e eu guiaríamos duas enfiadas cada e depois trocaríamos de “turno”. Isso permite que o guia descanse mais, facilite o manuseio das cordas e poupa o “melão”.

Linha da via. Croqui detalhado no final do post.

Como eu queria guiar a 2a enfiada, dei a partida guiando a primeira enfiada que transcorre pela face em agarras. Já de cara nos perdemos na contagem dos grampos e ficamos um pouco confusos, pois pelo croqui do CEP era para ter mais grampos até a P1. No fim, costurei 2 grampos originais e estabeleci a parada num platô confortável com 2 grampos (um novo e original) a 30m do chão onde marca o início da chaminé (7h15).

Primeira enfiada. Foto: Gustavo Diniz.
iniciando a escalada. Foto: Gustavo Diniz
Preparando o ataque!

Segundo um relato, a 2a enfiada é para ser a mais técnica e mais cansativa com 60m de chaminé estreita. Só para padronizar o termo, quando digo estreito é aquela chaminé tipo meio corpo, onde você fica espremido a maioria do tempo. Já na chaminé média rola aquela parada do marco de porta, onde os pés ficam na parede e as costas na outra. E a larga que, graças a Deus não pegamos, é aquela que você faz a tesoura, com um pé e mão em cada lado da parede.

A segunda enfiada se mostrou a mais extenuante porque a parede é vertical e a escalada não dá trégua. Ao longo da escalada há uma série de obstruções com vegetação e pedra entalada que são os crux’s da enfiada. Pessoalmente achava que esses matos eram bem piores, mas nenhum mato foi pior do que as obstruções que há na via Chaminé Cachoeiro em Itabira. Para mim, o crux mesmo foi a continuidade. Já a exposição consegui levar na boa. Os grampos, mesmo sendo antigos, pareciam legais e vez ou outra consegui colocar algumas peças grandes.

Mesmo assim cheguei morto na P2 (9h?) que fica num platô confortável. O platô só não foi mais confortável porque, a essa altura, o Sol já estava despontando no horizonte e fez questão de nos “aquecer” até chegarmos na P3, onde entramos na sombra da pedra e nunca mais o vimos.

Guiando a segunda enfiada. Foto: Gustavo Diniz.

Sobre a graduação da via, no livro do Baldin, está relatado como V grau, os conquistadores originais também deram V grau, mas há outros relatos que dão VI grau. Na minha humilde opinião, se a Chaminé Cachoeiro é um VI grau, lembro bem dessa enfiada, a Chaminé Brasília também tem que ser um VI pela continuidade, caso contrário todos os graus do Estado precisam ser revistos… No croqui revisado que está ao final do post utilizei a graduação que achei das enfiadas com base na 2a enfiada. Se alguém achar que a 2a enfiada é um V é só descontar um número nas outras enfiadas.

Na P2 passei o “turno” para o Gustavo que assumiu a ponta para encarar a sequência da chaminé que para cima ficava menos apertada, mas que ao final parecia mais negativa para ganhar o platô da P3.

Gustavo no início da 3a enfiada. Foto: Lívia Cardoso

A P3 é um pouco mais apertada, mas ainda é num platô com bastante árvore e sombra, o que foi um luxo (10h45 ?)!

P3.

A partir da 4a enfiada até a 7a enfiada, nós não tínhamos uma boa ideia do que viria pela frente. Lendo o relato do Sandro a gente não conseguia visualizar a escalada. Não que o relato estivesse ruim, mas mais porque o que nos aguardava estava fora do nosso imaginário.

Na quarta enfiada, o Gustavo esticou bem a corda, 60m, subindo pela chaminé e passando pelo primeiro estreitamento que o Sandro chamou de “pedra emprensada”. Na verdade, ou explicando de outra forma, a chaminé possui diversos pontos onde blocos de todos os tamanhos caíram por dentro da fenda e muito acabaram entalados. Uma vez entalado, foi se acumulando terra, restos de insetos, pedras pequenas e acabou formando uma espécie de platô. No entanto, para passar para cima desses platôs, é preciso subi-los pelas laterais e às vezes, há tanto entulho que é preciso passar por uma espécie de buraco entre as pedras (pedras emprensadas) para ganhar o platô.

Vencido esse primeiro estreitamento, há alguns grampos (novos e originais) à esquerda em direção à parte externa da parede que mais tarde descobrimos que foram usados para o rapel e não para progressão, uma vez que a escalada segue sempre mais por dentro da pedra. Ou seja, você escala por dentro e rapela por fora.

A P4 ficou num grampo original equalizado em algumas peças e bico de pedra após vencer uma chaminé média estranha e exposta (12h).

Lívia na chaminé da 4a enfiada.

Na quinta enfiada, a ponta voltou para mim. Olhei para cima e vi uma chaminé média com um grampo, torto, “na casa do chapéu” acima de um bloco entalado. Presumi que o conquistador subiu no bloco para bater o grampo. Assim que botei o pé na parede, logo percebi que a pedra era muito escorregadia. Tão escorregadia que botava no chinelo o mármore polido do Cipó. Nessa hora, pela primeira vez bateu um arrependimento e se pudesse teria passado a ponta da corda para o Gustavo. Em vez disso, tentei ser positivo e tratei de aprender quanto antes qual o melhor ângulo de atrito para ganhar firmeza nos pés e fui tocando para cima sem olhar para baixo.

Assim que cheguei no 1o grampo, olhei para cima e vi uma oportunidade para colocar um Camalot #6 mais acima. Aquilo me encheu de coragem e motivação e fui subindo tomando cuidado para não escorregar os pés no “sabão”. Assim que cheguei no ponto do Camalot, vi que a rocha formava uma “chorreira” e poderia ser usada para as mãos também, mas assim que botei a mão vi que a pedra era totalmente oca e podre. O meu coração foi parar na boca. De uma hora para outra fui do céu ao inferno. Colocar uma peça ali, mesmo para o “psico” seria colocar os meus colegas em perigo. Então tratei de esquecê-lo e continuei por fora.

No relato do Jean Pierre, ele fala muito do problema das pedras que caem por dentro da chaminé e seus perigos. Acho que 80% dos 26 grampos batidos na conquista estão entortados devido à queda desses blocos que acabam batendo nos grampos. Não sei quantos centímetros tem para dentro, e nem quero saber, mas sempre ficam uns 6cm para fora mais uns 6cm de olhal, então acaba ficando um alvo fácil para os blocos que caem. Em 2019, quando repeti a Freira em Cachoeiro de Itapemirim com o Eric, acidentalmente deixei cair um bloco que pegou nele. Por sorte não passou de um susto, mas poderia ter dado B.O.

Depois desse trecho, foi a minha vez de pegar um estreitamente. Na primeira tentativa não consegui passar devido ao material. Desci, tirei tudo, coloquei na bandoleira, joguei para cima e tentei passar novamente sem sucesso. Por um momento bateu uma sensação de desespero e desci novamente. Dessa vez resolvi usar a cabeça e removi dois blocos grandes e consegui criar mais espaço e finalmente consegui ganhar o platô, onde estabeleci a P5 com uns 40m (13h45 ?).

A 6a enfiada começou fácil. Peguei uns 15m de trepa bloco até um estreitamento fácil e fui subindo achando que o jogo estava ganho. Puro engano! Assim que passei o estreitamente vi uma chaminé média contínua a perder de vista. Se a segunda enfiada foi a mais técnica, a 6a parecia ser a mais frita neurônio. O primeiro grampo torto estava, como sempre, na casa do chapéu! Nessas horas, o segredo é esvaziar a mente e não pensar em nada. Nem pensamento positivo e muito menos negativo. Você só precisa executar um movimento atrás do outro de forma repetida, só lembrando de não passar do grampo. Cheguei no primeiro grampo e olhei para cima e vi 2 grampos e presumi que fosse a parada. Na verdade, mesmo que não fosse ali, seria! Porque a próxima era do Gustavo. Dessa vez o grampo estava mais longe do que o esticão anterior. Mais uma vez tive vontade de descer, mas antes mesmo de pensar besteira me concentrei novamente e fui tocando. De repente, no meio da chaminé, numa das paredes surgiu uma fenda frontal perfeita que aceitava peças pequenas. Como levamos os meus Totem Cans, um Totem amarelo salvou o meu psico. Depois fiquei pensando: em 1959 não existia Totem Cam… Máximo respeito aos conquistadores.

O pessoal fala que os antigos batiam grampos para não morrer e que a geração seguinte começou a bater grampos para não se machucar. Já os escaladores de hoje em dia, batem grampo para não sentir medo. Pura verdade!

Encerrado o meu turno, estabeleci a parada nesses dois grampos num dos lugares mais desconfortáveis e angustiantes de toda a via, porque você fica suspenso na parada olhando para uma chaminé sem fim abaixo (15h15 ?).

Grampos originais da P6.
Sexta enfiada a partir da P6.

Pior do que ficar ali era guiar a enfiada seguinte que parecia não ter saída. A princípio estávamos no famoso buraco do Salomith que é uma grande travessia para dentro da montanha por onde era preciso passar pelo pior estreitamento da via. A descrição dessa travessia não estava muito clara para nós. O fato é que o tal buraco, na verdade, é uma travessia em chaminé super estreita para dentro da montanha visando atravessar a chaminé para o outro lado da montanha e no meio dessa travessia, a pedra se estreita e algumas pessoas não conseguem passar devido ao seu tamanho.

Mas antes de chegar nessa travessia, é preciso subir mais um pouco pela chaminé estreita e pelos gritos do Gustavo não me pareceu muito fácil. Após subir uns 5m, antes de iniciar a travessia, há um grampo novo e um grampo de 5/16 original que serve, além de proteção como rapel para o retorno.

No famoso “buraco do Salomith”. Foto: Gustavo Diniz
Visão da travessia.

A travessia em si é bem apertada. Para mim, a experiência foi pior ainda porque como estava de segundo com a Lívia, tive que levar duas mochilas mais os equipos. Em vários momentos achei que estivesse entalado e não iria mais conseguir sair daquela posição. E para deixar tudo mais dramático, a essa hora, a noite já tinha caído e todos estávamos muito cansados. A nossa motivação para seguir era saber que no outro lado havia um ponto de bivaque descrito. Com muita luta conseguimos fazer a travessia e após um pequeno rapel de uns 4m em chaminé chegamos num platô que presumimos que fosse o local do bivaque.

Nesse ponto, cometemos o único erro da escalada, pois nos faltou energia e sagacidade para olhar melhor a área e ver que o ponto de bivaque era um pouco mais adiante, atravessando a chaminé para o outro lado da montanha e descendo num platô de mato na área externa. Como estávamos muito cansados, aquele platô parecia um hotel 5 estrelas.

Antes mesmo de realizar qualquer coisa, me deixei no chão sujo e descansei por 5 minutos, tamanha exaustão. Depois montamos o nosso bivaque usando as cordas e qualquer coisa plana de forro para cama. De janta comemos um sanduíche e de sobremesa um pequeno doce que a Lívia levou para adoçar um pouco a vida.

Bivaque. Foto: Gustavo Diniz

Logo em seguida, todos nós nos retiramos para tentar descansar um pouco. Como o chão não era plano e muito irregular com pedras, praticamente não conseguimos dormir. Basicamente esperamos a noite passar se mexendo a cada 10 minutos quando o osso da bacia reclamava da pontada de pedra machucando a pele.

Durante a madrugada observei uma mudança no vento e percebi que o tempo estava mudando rapidamente. Havia uma previsão de chuva para o final do dia seguinte, mas coisa de 0,5mm/3h, mas parecia que a previsão não iria acertar.

Ironicamente, a questão do clima é um dos grandes elementos responsáveis pelas desistências nessa via. O próprio Jean Pierre teve que fazer 3 investidas para fazer cume devido ao clima. A cordada da 3a repetição passou 2 dias na montanha esperando janela para realizar o cume. E várias outras tentativas fracassaram pelo clima.

Segundo dia

Com isso, resolvemos acordar mais cedo, às 5h, antes de clarear, para seguir a escalada na primeira luz do dia. Assim que o dia clareou, deu para ver entre as paredes da chaminé que o dia estava bem mais nublado. O Gustavo assumiu a ponta da corda e começamos a buscar a continuidade da via. Nesse ponto ficamos bem perdidos porque não sabíamos para onde a via seguia. Achávamos que acima da chaminé iríamos encontrar um estreitamento que nos levaria para fora da chaminé, onde começa um pequeno trecho em artificial.

De toda escalada, esse foi o momento de maior apreensão e angústia. Quando o Gustavo finalmente achou o grampo do artificial, todos comemoramos muito! Parecia noite de jogo onde o Internacional de Porto Alegre marcava um gol contra o Flamengo no Beira Rio!

O fato é que, a via segue pela borda da chaminé, já no outro lado da montanha, paralela à vegetação externa, buscando um teto/oposição que fica por fora. Olhando depois, em algumas fotos da Agulha essa feição é muito clara de longe, mas na hora estava tudo muito confuso nas nossas mentes cansadas.

No meio do artificial de grampo sobre grampo, o Gustavo estabeleceu a P8 (7h15) porque à frente tinha um trecho de fenda (descrita como fissura) e achou que eu iria desembolar melhor. Sei…

Uma sensação que nos acompanhou ao longo de toda escalada foi a impressão de que a ponta da corda do outro sempre era mais quente. Conversando depois com o Gustavo, vimos que essa sensação era recíproca. Provando mais uma vez que a via, em momento algum dá uma facilitada, principalmente no “melão”.

Assim que venci a virada do artificial e iniciei a nona enfiada, descobri que a fissura, na verdade, era uma fenda de meio corpo, mas pior do que isso foi olhar para paisagem em volta e ver a chuva a caminho. Para me distrair, presumi que a chuva iria passar de raspão e nós ficaríamos protegidos, assim me concentrei para subir quanto antes pela “fissura” fake.

Estiquei 30m de corda até um platô onde estabeleci a P9 (8h30). Assim que montei a parada, a chuva chegou e em pouco tempo a pedra começou a molhar com força. Olhei para o outro lado e vi que ainda tinha uns 60m de escalada até o cume. Acima da parada consegui ver que a vegetação seguia por um bom trecho, o que era ótimo! Nunca achei tão bom ter um trecho de trepa mato, pois sabia que ali conseguiríamos nos virar para chegar no cume mesmo com chuva. Peguei as anotações do Sandro sobre esse último trecho e li uma coisa que me deixou preocupado: trepa mato com costão final!

Antes mesmo da Lívia chegar na P9, usando uma das cordas duplas, iniciei a 10a enfiada na segue do Gustavo para tentar resolver antes que fosse tarde demais pela chuva.

Passei o trepa mato e achei uma fenda frontal que em condições normais subiria me deleitando, mas a situação não permitia esse tipo de prazer. Logo depois da fenda cheguei num platô onde vi o que mais teimava: um rampão exposto e molhado de uns 5m antes de a pedra perder inclinação. Olhei para baixo e não consegui ver a última proteção, nem o Gustavo. Olhei em volta do platô para achar uma ancoragem, mas sem sucesso. Por um instante me senti sozinho, separado por um trecho de pedra lisa e molhada do cume da montanha que estávamos lutando a mais de 24h.

Fiz uma leitura rápida do trecho e presumi que seria vencível, era só não cair! Fiz a virada e estiquei toda corda de 60m, mas não consegui bater no cume. Montei uma parada ali (9h15), mas nesse ponto sabia que o cume era nosso, pois faltava somente uns 15m. Sob condições normais subiríamos solando, mas molhado, a história é outra. Esperamos até que nos reuníssemos na P10 e o Gustavo tocou a última enfiada!

Chegamos no cume por volta de 9h45 com chuva e o céu completamente fechado. Não vimos nada em volta, mas estávamos parcialmente felizes. Fizemos uma comemoração contida, pois todos sabíamos das dificuldades da volta. E com chuva, sabíamos que tudo ficaria mais difícil.

Leia mais sobre a via aqui!

Assinamos o livro de cume, tiramos uma foto e iniciamos a descida. Fizemos uma série de rapeis curtos para não arriscar perder a corda até o platô do bivaque. Ali, descansamos um pouco, bebemos o resto da água e nos preparamos para a descida final.

Assinando o livro de cume.
Cume!!!!
Nossa mensagem.

Tivemos que refazer toda travessia do Salomith, mas como a travessia é em leve declive, foi mais fácil do que a ida, além disso, já tínhamos os betas para fazer a travessia.

Dali iniciamos os longos rapeis de 50m em grampo único por fora da chaminé. De longe foi a pior parte da descida. Mesmo que os grampos tenham sido colocadas recentemente, ainda assim são da década de 90.

À medida que íamos descendo, o nosso semblante de preocupação ia dando lugar a uma sensação de relaxamento.

Assim que chegamos na P1 e puxamos a corda, ela prendeu num bico a uns 50m. Momento de tensão! Tentei efetuar uma redução, mas por nada no mundo a corda cedeu 1cm. Fizemos uma avaliação da situação e achamos por bem deixar a corda para trás e terminar a descida em segurança, pois o dia estava passando e o tempo tornando a virar novamente.

Às 15h, finalmente retornamos à base após 35h de vivência na montanha.

Tentando repetir a famosa foto.
Só preciso de um banho! Foto: Lívia Cardoso

Não tenho a menor dúvida que essa foi a minha maior experiência em uma montanha. Sem dúvida uma vivência que levarei para o resto da minha vida.

Preciso agradecer profundamente ao Gustavo e à Lívia que me convidaram para essa empreitada e puderam me ajudar a realizar esse sonho! Muito obrigado mesmo! Ah, sempre lembrando que a Lívia foi a primeira mulher a escalar essa via e a segunda a chegar no cume.

Também faz-se necessário agradecer o Fabinho do Camping Cantinho do Céu que nos auxiliou na parte logística desta escalada, nos oferecendo todo infra estrutura necessária para o ataque.

Grampo original da conquista.

Edição pós-publicação: saiu um informativo do CERJ em 2023 com relato dessa repetição mais o relato da conquista. Clique aqui para baixar!

Comentários

12 respostas em “Repetição da Chaminé Brasília”

Muito bonito e emocionante. Bravo a todos os alpinistas que escalaram essa via e particularmente a quem escreveu este emocionante relato.

Parabéns, ótimo relato e uma tremenda aventura. Ainda bem que a corda prendeu na P1. Não entendi a historia do “melão”. rs Abraço

Sensacional Japa, pelo relato deu para sentir o tamanho da roubada, QUE AVENTURA!!! Parabéns a equipe pelo sucesso da expedição.

Surreal, que desafio!
Salvo engano, não me recordo de ter visto você dizer tantas vezes em um relato que pensou em desistir, só aí já dá para ter noção do problema hehehehehe.
Parabéns à todos os envolvidos !!!
Impressionante a riqueza dos detalhes no seu relato Naoki, sensacional.

Parabéns Japa, grande relato, muito bom a revisão do croqui para os procrastinadores que no futuro tentaram (ou não) a via kkk. vlw.

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