Rolé 2

^ Pedra do Cabrito em Afonso Cláudio.

Em março de 2009, após morar quase um ano no Espírito Santo, resolvi dar um rolé pelo interior do Estado para ver “as potencialidades” da minha “nova casa”. A “mini-trip” está registrada no blog aqui! Aquela trip foi muito memorável e lembro dela até hoje. Desde então, sempre quis fazer um “repeteco”, mas nunca arrumei uma boa desculpa para voltar. O tempo passou e quase 10 anos depois, eis que surgiu a oportunidade! Na verdade, era só uma questão de fazer acontecer.

Sabadão, 4h30 da manhã estava em pé e pé na estrada! Dessa vez, resolvi começar o rolé pelo norte, entrando por Fundão. Como na noite anterior choveu muito, estava tudo bem molhado e as pedras “lacrimejavam”. Sei disso porque agora acompanho tudo pelo site do CEMADEN. Fica a dica!

Uma parada rápida em Santa Teresa para curtir o frio (20 graus Celsius) e tomar um café da manhã (Padaria Laelia) e dali fui parar em Afonso Cláudio. Cheguei na cidade pelo lado norte e já de cara fui recebido pelo playground!

As montanhas de Afonso Cláudio. À esquerda, a Pedra do Cabrito e bem à direita a Pedra da Lajinha parcialmente encoberta.

Sempre tive muita curiosidade em conhecer melhor essas montanhas. Assim como a 9 anos atrás, tinha marcado uma montanha-alvo no Google Maps e fui para lá certeiro como um sniper. Nos últimos tempos, nove em dez alvos renderam vias. Por isso, é comum a gente nem fazer um primeiro reconhecimento da montanha. Normalmente já saímos com material de conquista e tudo para entrar direto na montanha.

Mas dessa vez estava nos 10 por cento… A montanha estava lá. O totem que tinha visto também, mas o Google Maps ainda não é capaz de dizer qual o tamanho do Camalot que vai na fenda. Alias, a fenda não era bem uma fenda, mas sim uma chaminé bem suja.

Um totem perdido. A ideia era conquistar pelo lado direito, mas com esse mato…

Estava tão confiante “no meu taco” que praticamente fui sem um “plano B” e quando vi aquele totem fiquei um tempo como uma  barata tonta, perdido e sem rumo. Pensei em diversas alternativas: repetir alguma via da região, procurar pedra, rodar por ai, e até mesmo voltar para casa.

Respirei fundo e fui vendo as montanhas em volta. Dava uma olhada no Google e ia lá checar logo em seguida. Após uns sete pontos sem sucesso, resolvi entrar numa via que já tinha ouvido falar na Pedra do Cabrito. Não é uma escalada muito atraente (Tubarão na Lagoa), mas era a única coisa que estava na sombra a aquela hora do dia. Se é que existe sombra ao meio-dia.

Quando estava indo para lá, uma montanha anexa chamou a minha atenção e fui dar um “conferes” melhor. Para minha surpresa, a pedra era do “meu tamanho” e tinha todos os ingredientes que estava procurando: via relativamente fácil, cume limpo, fenda, muita fenda. E o melhor de tudo, uma escalada rápida para conquistar em 1 dia. Vai sonhando…

Pedra do Cabrito e a montanha anexa, apelidada de Pedra do Tubarãozinho.

Olhando mais de perto, consegui traçar uma linha muito boa, pulando de uma fenda para outra até o cume, passando por zonas de transição em agarrência. Como eu tinha apenas 20 chapeletas era o que estava buscando.

Pedra do Cabrito e a pedra anexa. Ao fundo, à direita, a Pedra do Cruzeiro.

Arrumei os equipos e às 11h iniciei e aproximação. Como estava sozinho, o “porteio” foi sinistro. Duas cordas, furadeira, dois jogos de friends, chapeletas, água… E para deixar a cena mais dramática, um calor sufocante… Não sei de onde arrumei tanta motivação para levar tudo para cima. É claro que a certa altura o meu corpo não aguentou a pegada e fui obrigado a deixar parte do material no meio da trilha e fazer o “porteio” em duas parcelas. Meu máximo respeito à catalã Sílvia Vidal que faz coisas mil vezes mais sinistra do que esse “porteio” meia-tigela…

Cheguei na base, ou melhor, chegou na base só o que restou de mim. Dei um tempo para me recompor e por volta do meio-dia, “na melhor hora do dia” comecei os trabalhos.

A primeira enfiada foi bem tranquila e agradável. Um crux na saída e depois 60m de diedro fácil pela lateral de um grande totem até esticar a corda. Montei uma parada em móvel e comecei a parte difícil da escalada. Rebocar material, limpar a enfiada, jumarear…

Parada móvel bidirecional.

Enquanto estava nesta função, senti algumas gotas de chuva. O céu, que a meia hora atrás estava azul e sem uma única sombra, já estava mais carregado, mas como estava muito quente, as gotas pareciam que evaporavam ao tocar na rocha preta. A chuva veio e foi rapidamente, mas era um aviso dos Deuses que eu claramente o desprezei…

Ao final do totem, a ideia era seguir para o grande diedro da esquerda por uma passagem em agarrência, mas essa passagem era mais vertical do que o esperado. Acima, vi a ponta de alguns matos que eram de um platô que estava “logo ali”. Resolvi arriscar esse platô, já que a pedra era mais convidativa também. Furadeira nas costas e toca para cima! Estiquei o máximo que a minha coragem e o juízo deixaram e bati uma chapa. Mais uma vez, algumas gotas de chuva que as ignorei sumariamente. Toquei mais um pouco, bati mais uma chapa e depois fui em direção ao platô. O platô estava logo ali, mas é claro que a minha corda de 60m não foi páreo e tive que parar um pouco antes numa pequena reentrância. Assim que zerou a corda, a chuva voltou, mas dessa vez com mais contundência. Rapidamente bati uma chapa para me resguardar e fiquei esperando a chuva passar. Mas a chuva não passou. Então, resolvi duplicar logo a parada para uma eventualidade, vai que… Enquanto furava a pedra dava para ver e ouvir, na montanha ao lado, uma cachoeira gigante se formando por uma calha d’água. Se não fosse trágico seria bonito…

Como não tinha levado a retinida para cima tive que descer na chuva até a P1 para recupera-la. Desci e fiquei ali rezando para que a chuva parasse logo, mas nada. Em poucos minutos escorria água pela parede e tudo estava encharcado. A minha esperança de a chuva ir embora e a pedra secar logo em seguida foi junto com a água. Agora, já estava torcendo para que a chuva não piorasse e que pudesse descer da montanha com segurança.

Esperando a chuva passar…

Quando a chuva deu uma trégua, voltei à P2 com a retinida para fazer um rapel de 60m e dali outro de 60m na conta para chegar no chão. Recolher 60m de corda molhada com uma retinida de 6mm igualmente encharcada não foi nada fácil, mas pelo menos eu estava fora da montanha.

Assim que terminei de puxar a corda, olhei para cima e a chuva tinha ido embora e o céu já estava azul novamente. Logo percebi um silêncio profundo e notei que a cachoeira também tinha sumido. Parecia que a natureza estava zombando comigo.

Foto para lembrar, e não esquecer. Logo depois de ter descido da via.

Juntei as tralhas e com o resto do meu orgulho fui me rastejando até o carro. Se na ida a mochila estava pesada, agora com tudo molhado, parecia que estava pagando algum pecado.

Depois de uma roubada como essa, nada como dar uma passada no Cantinho dos Três Pontões para buscar um pouco de conforto e comida quente para recompor as energias. Coloquei no GPS o caminho e ele sugeriu dois caminhos. Um fácil e outro direito. É claro que fiz a escolha errada. Em vez de voltar pelo asfalto, resolvi cortar caminho por dentro… Existe uma lei infalível que diz: a distância mais curta entre dois pontos é uma subida/descida íngreme. E quem já rodou pelas estradinhas do interior do Estado sabe como são essas estradas pelos cafezais. Só sei que o era para ser um atalho quase virou questão de sobrevivência. Mas pelo menos, passei por alguns lugares bem bonitos até finalmente chegar no sítio do Itamar.

 

Casa (quase) tipicamente pomerana.
Pedra do Cabrito de um outro ângulo. Ao fundo, com certo esforço, os Cinco Pontões.
Entardecer na região com a Pedra dos Três Pontões.
Cantinho do sossego!

Reencontrar o Itamar e sua família foi muito legal, tenho muito carinho por eles. São pessoas simples e muito amáveis que sempre recebem os escaladores e turistas de braços abertos.

Como não iria voltar no sábado, jantei e passei a noite lá mesmo. Dizem que a fome é o melhor tempero, não sei se é verdade, mas a comida de lá é sempre muito saborosa! O local oferece chalés, uma pequena área de camping, banheiro, chuveiro e todas as refeições. Para quem quiser escalar ou conhecer a região é um ótimo lugar para servir de base.

Jantinha saindo!

No dia seguinte, o dia amanheceu com um frio agradável e o céu num azul de brigadeiro, mas por hora chega de roubada. Acordei sem pressa e preguiçosamente tomei um café da manhã com todos à mesa.

Detalhe do Cantinho dos Três Pontões.
Selfie.
Coqueiros numa manhã de sol.
Jardim sempre bem cuidado da Pousada.

Juntei os equipos molhados, me despedi do pessoal e pé na estrada rumo a Vitória, mas sem antes dar mais uma passada por algumas montanhas da região.

Imponente face norte dos Três Pontões.
Pedra da Lajinha, casa da maior via do Espírito Santo.

O final de semana pode não ter sido 100%, mas serviu para lembrar que na vida, nem tudo funciona do jeito que queremos. Nós tentamos planejar as coisas, mas no fim quem decide é a Mãe Natureza. Pelo menos restou a boa lembrança de ter reencontrado a família do Itamar e do projeto que ficou em aberto.

Agora é treinar para ficar mais em forma e sofrer melhor menos no porteio e ter ritmo na conquista.

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