Stairway to Heaven, o retorno

Sem exagero, por cinco anos, sempre que saia para correr, ficava pensando no projeto Stairway to Heaven, na Pedra do Holandês em Itaguaçu. Ficava pensando em estratégia, planos e imaginando como seria a próxima enfiada. Mas sempre sentia um frio na barriga e ficava procrastinando a volta. Em 2021, tentei uma investida com o Iury, mas nem chegamos a tirar os pés do chão devido à chuva matutina. Em 2022, fiquei me falseando para não voltar. Esse ano parecia estar seguindo o mesmo caminho, então tratei de encarar a bronca mais uma vez. Uma hora é preciso parar de sonhar e partir”.

Comecei essa via em 2018, em solitária. Achei a linha após a conquista da via “Tempestade Solar” nessa mesma parede, também conquistada em solitária. O projeto segue uma linha muito singular: começa num sistema de fendas de um totem, depois segue em travessia de uns 100m até conectar num segundo sistema de diedros para finalizar por um costão, totalizando aproximadamente 600m de escalada (?).

Face leste e nordeste da Pedra do Holandês

Na primeira investida conquistei quatro enfiadas até chegar no cume do primeiro totem. Na hora de fazer a travessia para esquerda arrepiei e desci.

Por todo esse tempo, a imagem da travessia assolou o meu imaginário. Ficava pensando na complexidade logística para conquistar uma via dessas. Passava horas estudando as fotos que tirei da pedra para traçar uma estratégia, mas nunca chegava numa conclusão, assim como nunca conseguia definir uma boa linha.

A ideia de voltar à Escadaria para o Paraíso reacendeu depois que voltei de Águia Branca. Assim, ao longo da semana, começamos a traçar uma estratégia para dois dias. No começo, a ideia era fazer cume, mas ao longo da semana, as metas foram recalibradas. Chegar no final da travessia começou a parecer mais sensato. A ideia era dormir na parede para ganhar tempo, mas na 5a feira, o Luca quis entrar na barca. Em três, e com a experiência do Luca, o bivaque não me pareceu prudente. Então surgiu a ideia de fixar a via. Eu não gosto de conquistar fixando corda, mais por uma questão de estilo. Curto mais o estilo alpino, onde você vai subindo sem voltar ao solo.

Concluímos a melhor estratégia seria subir levando algumas cordas, repetir as 4 primeiras enfiadas, conquistar a primeira travessia e depois abrir uma linha de rapel até o chão. Assim, além de facilitar a logística, já teríamos uma linha de descida da via definida. Uma vez que é praticamente impossível rapelar pela via da P5 para baixo.

A grande dúvida, nessa parte, estava na quantidade de cordas fixas que teríamos que levar. Considerei 4, o mínimo necessário para pelo menos rapelar da P5 para baixo, considerando uma corda extra de segurança. Além disso, no nosso cenário otimista, poderíamos conquistar mais 3 enfiadas nesse dia, totalizando mais 3 enfiadas fixas. Assim chegamos ao número mágico de 7 cordas!!! Se cada corda de 60m pesa em média 4kg, teríamos que levar 28kg só de corda.

Florada do café.

Primeiro dia de escalada

O sábado começou cedo. Por volta das 8h da manhã já estava me equipando para começar os trabalhos. A estratégia era eu subir guiando, com a segue do Iury. Assim que chegava na parada eu puxava 2 cordas e fixava para o Iury subir com mais duas cordas. Por fim, o Luca subiria com mais duas cordas e um haulbag

Quando o Iury ficou sabendo que voltaríamos para essa via, logo tratou de aliciar o Luca para o trabalho pesado, pois sabia que seria sofrimento puro subir com haulbag. E o Luca, muito novinho e cheio de disposição, caiu no conto do vigário.

Assim que cheguei na P1 (8h20), olhei para o grande diedro da próxima enfiada e vi que estava molhado. Aquilo foi um baque para mim. Cinco anos depois, será que seriamos obrigados a descer logo na P1? Mais tarde, fiquei sabendo que 2 dias antes tinha chovido 50mm na região. Sem muita opção resolvi pelo menos tentar. A fenda estava molhada, mas tinha uns pedaços mais secos, então resolvi ir pisando só nas partes secas. Além disso, ficava constantemente lembrando que conquistei essa enfiada em solitária. Então não seria agora que iria arrepiar na própria via.

Escalar uma fenda molhada nunca é muito agradável, mas lentamente fui progredindo, afinal de conta, era um IV segundo o conquistador. A medida que ia subindo, fui me acostumando com o molhado e ganhando confiança, mas logo fui notando que as peças do meu rack estavam esvaziando rapidamente. Mesmo levando 2 jogos, a situação não estava tão confortável. Considerei pedir para segurar e descer para recolher mais peças, mas meu orgulho em desencadenar a enfiada não me deixou. Na conquista tinha muito menos peças e mandei, então eu não poderia desistir. Orgulho é uma coisa f#oda!

Cheguei na parada (9h10) com a moral baixa, mas não tínhamos tempo para lamentações, o dia seria longo e árduo. Assim que o Iury chegou na parada comecei a 3a enfiada (9h50) para ganhar tempo. O Luca subia com aquele haulbag pesado de forma bem desengonçada. Jumarear é uma arte que precisa ser dominada, mas ele ainda estava longe de pegar do ritmo. Para compensar a falta de jeito, ele usava a força para subir. Tentamos passar umas dicas, mas quando se tem força de sobra, a técnica acaba ficando de lado.

Cheguei na P3 (10h20) e quando comecei a 4a enfiada olhei para baixo e vi que o Luca não estava bem. Por um momento achei que ele pudesse desmaiar. Ou na melhor das hipóteses, pedir para sair, ou descer. Demos alguns gritos de incentivo, mas nem olhava para nós. Seguia de cabeça baixa.

Cheguei na P4 (11h30) após me perder na própria via. Confundi o esticão final e sai longe da parada, mas logo resolvi o problema com uma travessia estranha. O Luca já não era mais ninguém. O Iury, como bom mestre do menino, teve que pegar o haulbag e subir a 4a enfiada, senão o menino teria um teto-preto.

Chegamos na P4 após algumas horas de intenso trabalho. Mesmo eu não carregando o haulbag estava cansando. Menosprezei as primeiras enfiadas e não estava esperando encontrar tantas dificuldades. Certamente estava inspirado no dia que conquistei essas enfiadas. Às vezes, tenho medo das minhas vias…

Saída da 4a enfiada.

Chegar na P4 foi como voltar no tempo. Fiquei olhando para o início da grande travessia com admiração e medo. Como eu já tinha estudado por horas e dias a fio nos últimos 5 anos, sabia que teria que escalar praticamente na horizontal até encontrar uma laca pequena e depois seguir até chegar em algo parecia ser uma laca que me levaria a um platô.

Iniciei a conquista com a meta de bater a 1a chapa apenas na laca, mas tive que bater 1 chapa antes. Logo em seguida cheguei na laca. Pela foto, a laca parecia ter 1m de altura, mas tinha uns 3m. Precisei escalar pela laca torcendo para não cair e bater uma chapa no topo. Dali, vi a laca da esquerda que me levaria ao platô. Por sorte, era fendada, mas um pouco fina para proteger. Certamente não seguraria uma queda grande, mas se não caísse seria bem tranquilo.

Venci rapidamente a laca fina e cheguei no platô onde estabeleci a P5 (13h50).

A enfiada ficou praticamente uma horizontal de uns 50m. Ou seja, um verdadeiro pesadelo para o segundo. Levamos um bom tempo para transferir todas as cordas, mais os equipos e os dois até a P5.

Quando nos reunimos na P5 estava claro que todos estávamos bem cansados.

Iury na P5.

Mesmo tendo estudado anos a fio a travessia, tinha muita dúvida quanto a linha a seguir na próxima enfiada. Poderia seguir em diagonal por uma placa vertical batendo chapa após chapa por uns 80m até chegar no início do sistema de fendas da esquerda, ou subir pelo diedro sujo para cima e depois fazer uma travessia para esquerda por uma laca invertida.

Aprendemos na escola que a soma dos catetos é maior que a hipotenusa, então a ideia de seguir pela hipotenusa me atraia, mas por outro lado teria que bater muitas chapas, coisa que não estava muito disposto a fazer.

Aprendi que quando estamos cansados, tomamos decisões ruins, então achei por bem encerrar o dia por ali e concentrar em abrir a linha de rapel. Para baixo, um abismo vertiginoso de uns 150 a 200m nos aguardava.

Abrir uma linha de rapel fora da via é uma coisa muito séria, pois precisamos garantir uma linha que não dê problema. Se durante o rapel uma corda prende, praticamente não tem como recuperá-la, deixando a cordada em sérios apuros. Também tinha certa dúvida quanto a distância da P5 até o chão. Sabia que seria entre 150 e 200m.

Desci fixando as nossas cordas, estabelecendo três rapéis de 40m, 50m e 60m. Com isso chegamos no chão com 150m cravados de corda. 

Descendo pelas cordas fixas.

Voltamos ao terreiro de café onde montamos o nosso acampamento e tratamos de descansar um pouco, pois o dia seguinte seria pesado novamente.

Ao longo do dia, o tempo foi mudando progressivamente. Sabia que uma frente fria estava entrando, podendo trazer chuva para o Estado. Por isso, tratei de montar um bivaque descente para uma eventualidade.

Jantamos e por volta das 19h todos nós já estávamos recolhidos nos seus recintos.

Durante a noite, ouvi alguns pingos no teto do meu toldo.  Na hora imaginei o pior. Lembrei de uma investida que fiz com o Afeto na Pedra Rachada nos Cinco Pontões, onde choveu de madrugada e tivemos que subir pelas cordas fixas molhadas no dia seguinte. Mas os pingos ficaram apenas na ameaça e a noite seguiu tranquila.

Acampamento na base da montanha.
Hora da janta.

Segundo dia

O domingo amanheceu sem nuvens. Um péssimo prognóstico para quem iria enfrentar uma longa jornada pela face leste da montanha. Inclusive, a outra via que abri nessa montanha, batizada de Tempestade Solar explica por si só o perrengue que passei na montanha.

Acordamos às 6h e às 7h já estávamos caminhando pela mata em direção às cordas. Para começar o dia teríamos 150m de corda fixa nos aguardando.

Após um dia inteiro fazendo ascensão por corda, no dia seguinte, o Luca já estava mais afinado, conseguindo subir pelas fixas, imprimindo um bom ritmo. Diz o Iury que estava jumareando mais rápido que ele.

Chegamos na P5 novamente e após pensar muito na próxima enfiada, decidi pegar o caminho mais longo, o caminho dos catetos. Assim, me lancei no diedro acima para finalmente escalar para cima um pouco. O diedro estava bem sujo, então tive que ir limpando um pouco até ganhar um platô confortável logo acima. Do platô, a visão para cima não era nada animador. A fenda acabou e a próxima fenda da travessia estava na casa do chapéu.

Mesmo tendo subido apenas 10m achei por bem fazer uma parada no  platô para facilitar a bomba que me aguardava. Assim, todos nós passamos para P6, logo acima.

O início da próxima enfiada parecia uma parede lisa sem agarra, cheia de pequenas saliências. Mas era uma daquelas paredes que você precisa ficar olhando por um longo tempo para começar a ver agarras desconectadas e depois imaginar uma linha de conexão. O trecho “liso” consumiu 6 chapas, totalizando uns 16m até chegar na laca invertida que nos jogaria para o lado novamente. Por sorte, a laca aceitava peças pequenas e por mais sorte ainda, dessa vez levei alguns micro-friends que me salvaram a vencer o trecho. 

No início da 7a enfiada.
Conquistando a estética 7a enfiada. Foto: Luca.
Hora de cantar o piton!
Luca chegando na P7.

Da P7 dei uma espiada para continuação da travessia e vi que tinha ainda uns 30m de placa vertical em cristais até chegar nas fendas. Olhei para baixo e vi a expressão dos meninos para que eu dissesse que iriamos encerrar o dia por ali mesmo. Olhei para parada desconfortável da P7 e conclui que estava na hora de baixar enquanto tínhamos força. Ainda teríamos muito trabalho pela frente para descer com as cordas fixas.

Assim encerramos os nossos trabalhos de conquista ao meio-dia de domingo e iniciamos o longo caminho de volta recolhendo as cordas fixas.

Às 14h estávamos no chão e devagarinho fomos descendo pela trilha, isso sem antes sermos atacados por vespas da trilha. Para ficar esperto!

A investida ficou bem aquém do esperado. Queria ter subido mais uns 100m, mas fizemos bons progressos na via. Provalvemente se tivessemos errado menos na estratégia das cordas, poderiamos ter subido um pouco mais, mas não foi de todo mal.

Acho que o só o fato de ter voltado para via depois de 5 anos ajudou a afastar o fantasma e criar outros…

Fragmento de Mata Atlântica.

Meus sinceros agradecimentos ao Iury e Luca por terem se esforçado até o limite para viabilizar esse projeto hercúleo!  Espero que esqueçam logo para poder voltar novamente!

Comentários

3 respostas em “Stairway to Heaven, o retorno”

Que Arimatur foi esse hein?! hehe, acho que a gente tem amnésia quando se trata de escalar, sofre, sofre e depois quer voltar, agora já fico aqui pensando em estratégias, bora voltar logo.

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