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Pelo Jardim dos Cristais

O céu estava nublado, por vezes sentia um pingo de chuva no rosto; tentava ignorar que era chuva, mas o céu escuro entregava. Havia um ar de urgência no ar, parecia que a qualquer momento poderíamos ser surpreendido por uma chuva. Mas estávamos felizes e aliviados, pois tínhamos, Iury e eu, acabado de finalizar mais uma via. Para mim, tinha um gosto de vingança, pois em 2018, Rodrigo e eu havíamos tentando abrir uma via na mesma pedra, mas pela outra face, sem sucesso. Sabíamos que o cume da montanha não era virgem, pois, de longe, dava para ver que um morador mais ousado poderia vencer um trepa mato no colo da montanha para ganhar o cume.

Mesmo não sendo os pioneiros, a montanha não tinha nome, então coube a nós batizar a montanha: Pedra Reta! Pedra Reta porque essa montanha fica ao lado da Pedra Torta em Águia Branca. Um pouco de lógica e quase nada de criatividade.

Semanas atrás, quando estive com Chuck na região e abrimos a “Fissura do Milagre” na Pedra Torta, havia visualizado essa linha, mas na ocasião acabamos indo no totem porque a pedra estava molhada.

Complexo de montanhas da região de Águia Branca. No primeiro plano, a Pedra Reta, ao lado da Pedra Torta.

A linha parecia bem promissora, talvez um pouco curta demais para os padrões locais. Aqui, o pessoal não dá muita atenção para pedras com menos de 200m de extensão. Mas a linha era fendada, da base até o topo, por um sistema de fendas interconectado por trechos mais lisos. Isso, já é uma coisa rara por aqui. Acho que conto nos dedos, de uma mão, quantas vias dessas têm no Estado.

O Iury já tinha me cantando a pedra: Japa, você só está escalando com o Chuck! Você está me traindo! Então, aproveitando que o Chuck está se recuperando, marquei a investida com ele no mesmo esquema de sempre.

Mas tínhamos um problema: o clima. A temporada desse ano está sendo instável e o prognóstico não estava bom para o final de semana. Choveu na 5a e havia previsão de chuva para domingo. Sábado seria o dia ideal, mas havia chance de chuva e a pedra não estar bem seca de 5a feira. Mas escalar é isso mesmo. É enfrentar o incerto!

Como a linha parecia pequena, sai sem pressa de Vitória no sábado, peguei o Iury em Colatina e partimos para Águia Branca. Batemos direto numa casa que fica aos pés da pedra para explicar nossas intenções. Estava um pouco preocupado com essa parte, pois não andamos tendo sorte nesses lados, mas deu tudo certo e fomos muito bem recebidos.

A aproximação foi tranquila, menos para o Iury que queria abrir a CPI das mochilas, pois suspeitava do peso desigual das cargas.

Chegamos na base por volta das 10h 30 e logo achamos a fissura que havíamos visto de longe. Por sorte, ela começava perto do chão, mas estava um pouco suja, coisa normal por aqui.

Começando a conquista.

Subi com sacanut na boca e fui escalando e limpando a fenda sempre que precisava colocar uma peça. Por sorte, a fenda era larga o suficiente para os dedos e a conquista fluiu bem.

Na saída da 1a enfiada.

Icei o haulbag e o Iury subiu limpando a enfiada logo em seguida.

Iury chegando na P1.

Pela ordem natural das coisas, deveríamos seguir pelo trepa mato com lacas para ganhar o platô que estava mais acima, mas sabia que se eu pulasse duas fendas para direita, encontraria uma fissura frontal perfeita. Assim, toquei pela face até a fissura. Naturalmente a fissura estava suja. Mais uma vez fui subindo com sacanut na boca e progredindo. Logo, descobri que a chuva na semana deixou a fenda úmida. E quando limpava, deixava tudo barrento e escorregadio. Para piorar mais ainda, a fissura foi ficando cada vez mais fina até ficar completamente cega. Aguentei o máximo que pude até fritar os meus neurônios e jogar a toalha. Ou melhor, parar em dois pés medíocres e pedir para preparar a furadeira. Como achava que a enfiada seria toda em móvel, subi sem a furadeira e agora, naquelas condições precárias, tive que puxar a furadeira na baba. Pedi para o Iury preparar a furadeira com urgência e comecei a puxar a mochila. De repente, a mochila prendeu numa árvore e não quis mais sair. A situação não estava boa para o meu lado. A última peça era um #.4 no barro e depois dois nuts pequenos. Seria um voo bonito.

De repente, a mochila se soltou e consegui trazer a mim. Com a mochila, veio também o Elvis. Foquei a concentração na respiração e tentei manter a calma enquanto fazia o furo. Cair com a furadeira na mão nunca é uma opção.

Nut em fenda suja.

A enfiada seguinte parecia ser mais tranquila, um grande diedro em arco nos levava a um platô onde seria a próxima parada. Venci o arco sem dificuldades, cheguei um pequeno platô cortado por um belo veio de pegmatico com quartzos e micas do tamanho da minha mão. Instintivamente fui ver se não achava uma gema, mas o logo a atenção se voltou à escalada.

O Iury ficou impressionado com esse veio que também foi aproveitado como agarra de mão para ganhar o último lance, antes do platô. Inspirado nesses cristais e nas belas plantas do entorno, achamos o nome para via: Jardim dos Cristais!

A enfiada seguinte era, de longe, a mais preocupante, pois nesse trecho, a pedra ganhava inclinação e não sabia se seria possível passar em livre, mas por sorte, tínhamos à frente duas opções para vencer o headwall. Uma oposição larga à esquerda e uma fenda frontal de mão à direita. O lance era curto, uns 5m, mas era o suficiente para garantir a nossa diversão.

Saída da 4a enfiada.
4a enfiada.

Entaladas potentes e boas agarras nos levaram ao platô de cima que era notavelmente confortável. Acima, um grande diedro largo nos aguardava e anunciava que a escalada estava chegando perto do topo.

A saída do diedro parecia complicada, fenda larga de meio corpo sem apoio para os pés. Lembrou um pouco a saída da via “Carnaval” em Itatiaia (RJ). Como levei apenas um #5, a proteção ficou precária, mas após tomar umas quedas me senti mais confiante. Mesmo assim, não consegui fazer a saída e acabei passando o lance em A0 após bater uma chapa mais acima. Talvez se eu tivesse levado os dois #6 desse para subir sem as chapas, mas quem tem dois #6 para repetir a via?

Chegamos no cume por volta das 16h, após 4h de conquista, com o tempo virando. Comemos o resto das coisas que tínhamos e tratamos de descer logo, antes que chovesse e/ou escurecesse.

Foto no cume.
Vista do cume.

Mesmo sabendo que iria chover no domingo, quis ficar pela região para descansar um pouco e não pegar a estrada à noite. Assim, depois dali, partimos para o Camping Cantinho do Céu. Lá, ainda encontramos os escaladores Lacami e Tina de Lages (SC) que estão fazendo um rolê pela região. 

Durante a madrugada, a chuva chegou com força na região e amanheceu chuvoso. Dessa vez, a previsão do tempo acertou 100% e não tínhamos muito que fazer senão tomar um café da manhã despretensioso e jogar muita conversa fora.

Sei que essa via não terá muitas repetições, mas diria que é uma escalada muito agradável. Acho que deve ser uma das poucas vias quase inteiramente em móvel de Águia Branca, então é uma excelente opção para sair um pouco do estilo repetitivo de aderência que predomina na região.

Por fim, agradecimento ao Iury por mais uma empreitada; Ao Lacami e Tina pelas conversas fora; E ao Fabinho pelo suporte de sempre!

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