Uma vez perguntaram para o escalador Keita Kurakami por que escalava em estilo solitário e ele respondeu: porque é desconfortável.
Sem dúvida foi uma boa resposta! O termo desconfortável não se restringe ao desconforto físico, mas também ao psicológico que essa modalidade traz. Muitas vezes, gosto de pegar uma via fácil e repeti-la em solitária só porque nesse estilo, o jogo muda totalmente. Tudo fica mais complexo, comprometedora e sem dúvida “desconfortável”.
Falando dele, essa semana perdemos o Kurakami em decorrência de um problema de saúde. Tem uma matéria bem interessante na Climbing sobre o assunto. Lembrei dele, porque no último domingo iniciei a conquista de uma nova via, em solitário, na Pedra do Pelado em Aracruz.
A Pedra do Pelado, também conhecida erroneamente como Monte Serrat, é um maciço granítico que fica uns 100km da capital Vitória. Em seu cume há uma pequena capela construída por um morador local da década de trinta e hoje é destino de peregrinação de evalngélicos e aventureiros de final de semana.
Em 2010, foi conquistada a única via da montanha, a via Capela, pelo Baldin, Tesourinho e Raul. Em 2014, repeti essa via com o Graveto e o DuNada e numa mais voltei.
Esses dias comecei a revirar algum projeto de inverno e lembrei dessa pedra. Resolvi estudar um pouco mais a pedra e vi uma boa oportunidade na face leste, à direita da via Capela. Em 2014, quando fui lá, não visualizei nenhuma oportunidade interessante. Lembro também que uns anos depois, passei por lá novamente procurando um setor esportivo, mas por falta de agarra acabamos descartando a área.
A ideia era ir com o único escalador local de Aracuz, o Tesourinho, mas ele acabou pulando fora de última hora, então resolvi ir sozinho mesmo. Estava precisando me sentir “desconfortável”.
Para ter uma margem de segurança, quando vou sozinho, gosto de ir cedo, então sai do domingo às 4h20 de Vitória. Por volta das 6h já estava estacionando o carro na última propriedade para pedir passagem.
A caminhada foi relativamente curta, mas com a mochila pesada foi mais sofrida. Às vezes, faço duas viagens devido ao peso, mas dessa vez fiquei com preguiça e joguei tudo na mochila… Duas cordas, dois jogos de móvel, furadeira, 26 chapeletas, 3L de água… Desconfortável!
Mas assim que cheguei na base, o cansaço deu lugar à alegria ao ver que a fenda que havia visto numa foto era um enorme diedro de uns 60m, toda limpa! Para não dizer que era perfeito, ele era um pouco mais larga do que o desejado e pareceu um pouco instável em alguns pontos.
Arrumei tudo e comecei a conquista por volta das 7h30. Como tinha poucas peças grandes, tive que espaçar bem as proteções. Também descobri que, devido à largura da fenda, era difícil escalar se entalando, então tive que escalar por fora e usar a fenda apenas para proteção.
Ao final de uns 30m achei um bom platô fora da fenda e resolvi estabelecer a P1 ali, já que meu rack estava bem vazio para tocar mais 30m até o final da fenda.
A segunda parte da fenda se mostrou mais exigente. A rocha também não era lá grandes coisas. Parecia que a qualquer momento iria tomar um voo épico com um bloco na mão. Ao final da fenda, uma travessia, protegida por uma chapa, me levou a um grande platô, devidamente ocupado por uma família de macacos.
A essa altura, eu já estava muito “desconfortável”. A fenda sugou muita energia e o Sol estava implacável. Mesmo estando no auge do inverno, esse ano a temporada está sendo muito quente. Meu desejo era beber toda água que havia levado em um único gole, mas precisava poupar água.
Fiz um descanso mais prolongado no platô e parti para 3a enfiada. Ali havia visto duas possibilidades: seguir por uma fenda/chaminé da esquerda ou encarar uma placa lisa pela direita. Pela foto não estava claro se era uma fenda ou chaminé, mas assim que cheguei lá descobri que era uma chaminé. Daria para seguir pela chaminé, mas ela levava a um beco sem saída. Depois, teria que tocar uma travessia de uns 60m para voltar para linha ou seguir varando o mato até o cume. Já a placa lisa tinha esse problema, ser lisa… Sem muita opção, sai para placa.
Fiz um pequeno solo de uns 30m até onde o tênis permitiu e bati uma parada, a P3. A partir dali o bicho iria pegar. A placa parecia “desconfortável”. O Sol estava me fritando, mas parecia que, logo ali, logo depois, em breve, a pedra iria dar uma aliviada.
Estiquei 30m e o alívio não chegava. Assim que achei um platô, estabeleci a P3, pois parecia que o desconforto não iria acabar tão cedo quanto imaginava.
Pior do que tocar a placa lisa foi voltar para trazer a mochila. Tinha uma esperança de que iria sair por cima no final do dia, então subi com tudo, incluindo os dois jogos de móvel. Inclusive, a inspiração para o nome Via Sacra vem dai!
A próxima enfiada parecia a cópia da enfiada anterior, logo ali, depois da virada, tudo parecia ficar mais fácil, pura ilusão, puro desconforto. No entanto, dessa vez consegui esticar uma corda inteira. A essa altura, a parede já estava na sombra, o que deu uma boa moral.
Estabeleci a P5 num lugar horrível. A parede não oferecia nenhum lugar decente, então tive que parar onde a corda meio que acabou.
Olhei para cima, estudei as possibilidades, contei as chapas que eu ainda tinha, vi a quantidade de água e conclui que não iria conseguir sair por cima. Eu tinha mais 5 chapeletas para tocar mais uns 90m e sabia que não tinha trechos com fenda para cima. Poderia arriscar uma aventura épica, mas como estava sozinho achei melhor deixar uma margem de segurança.
Como ainda estava com tempo, resolvi tocar mais uma enfiada para deixar pronta para próxima investida. A 6a enfiada se mostrou bem tranquila. Bati uma chapa para orientar a via e toquei até o segundo de 4 platôs da via. Dali, o cume parecia muito perto, mas sabia que isso era uma ilusão. Estudei a próxima enfiada para o retorno e iniciei a descida. Descer sozinho é sempre muito assustador.
A descida foi tranquila. Cheguei na base em menos de 1h. Empacotei tudo e fui puxar a corda. Após puxar uns 20m a corda prendeu. Tentei de todas as formas e nada. A outra ponta já estava uns 15m do chão. Sem muita opção, tive que voltar a vestir a cadeirinha e subir pela corda rezando para que ela não resolvesse se soltar no meio da subida. No último rapel tinha usando um sistema que não gosto muito justamente porque poderia acontecer o que aconteceu. Subi praticamente 60m e finalmente consegui desembolar e liberar a corda.
Até então posso dizer que a via está ficando muito legal. A fenda de 60m é ótima e o trecho que agarrência será um bom testpeace. A parte que falta parece seguir trechos de agarrência fácil com platôs. E o gran finale será chegar bem no cucuruto da capela para coroar a escalada.
Uma resposta em “Via Sacra”
Essa ai vc jogou testou o psicológico do seu parceiro silencioso também kkk, parabéns pela conquista.