Nem parecia inverno! Na semana passada, uma frente “polar” passou pelo Espírito Santo e as temperaturas despencaram, mas agora, o calor estava insuportável! Parecia verão! E o pior, nós não estávamos preparados para isso! Levávamos apenas 1,5L de água por pessoa para encarar uma parede que não parecia ter fim.
Tudo começou na semana retrasada quando o meu oftalmologista e escalador José Luiz mandou uma mensagem falando que achei uma fenda interessante na região de Vila Verde, distrito de Pancas. A foto não era muito clara, mas dava para ver uma montanha com uma “saia” e um headwall com um diedro em cada lado. Com base na minha experiência sabia que o tal diedro tinha grande chance de ser uma chaminé, mas mesmo assim aceitei o convite e agendei a escalada para o último final de semana.
Como a empreitada iria exigir muito equipamento de conquista e com base na roubada da semana passada com o Eric, também em Pancas, achei prudente dividir o peso com mais alguém e resolvemos convidar o Iury para empreitada. A final de contas, o nosso arsenal estava bem pesado: três jogos de material móvel, três cordas, material de conquista, furadeira, comida, água…
Assim como no final de semana passado fui um mesmo esquema “bate-volta”, saindo de Vitória às 4h1, no caminho peguei o Iury em Colatina e depois o Zé Luiz no Camping do Fabinho em Pancas, onde ele chegou na noite anterior. Dali foram mais 30 minutos até o distrito de Vila Verde.
Assim que chegamos na região, uma parede chamou a nossa atenção à esquerda. A pedra tinha um incrível sistema de totens e fendas interconectado que saia da base da até o cume. Logo, descobrimos que essa linha ficava exatamente ao lado da montanha que o Zé Luiz observou na semana passada. Encostamos o carro, analisamos as outras possibilidades e ficou claro que a nova linha seria a melhor opção. Como o Zé Luiz já tinha conversando com o proprietário das terras, que mora no Rio de Janeiro, o acesso à montanha foi bem fácil. Uma conversa ali, outra acolá com algumas pessoas da região, que a essa altura já estavam bem curiosos com a nossa presença, e logo ficamos sabendo qual seria a melhor rota para realizar a aproximação.
Por volta das 8h20 iniciamos a caminhada de aproximação pelo cafezal e depois por um curto trecho de mata até chegarmos na base do grande sistema de fendas.
Desde 2015, quando escalei com o Murilo a via “Luna Crescente” em Val do Melo na Itália, sempre sonhei em achar uma linha dos sonhos em terras capixabas. Uma linha de fenda que saísse da base até o topo que pudesse ser escalado em móvel e com mais de 300m de extensão. Parece simples, mas por aqui isso é algo extremamente raro.
E agora, 6 anos depois, parecia que finalmente estava diante o sistema de fendas dos sonhos. É claro que a linha tinha um toque “tropical”. De longe dava para ver vários trechos com vegetação. Devido às particularidades do clima e solo da região é comum as fendas acumularem terra nas fendas e as plantas crescerem sobre elas. Coisa que não acontece tanto em montanhas mais elevadas, como nos Alpes, por exemplo.
Por isso, mesmo sabendo que estávamos diante de uma linha incrível, tinha certo receio em relação a via, pois, olhando de longe, parecia que alguns trechos tinham muita vegetação e talvez não pudéssemos passar. Além disso, como estávamos em “plano B”, não tínhamos muitas proteções fixas, pois pelo plano original a escalada seria mais curta e com fenda.
Também não tínhamos muita noção de altura, pois estávamos sem referencial. O chute inicial foi de uns 200m, mas como tem o efeito de distorção do topo, poderia facilmente chegar a 300m. Por isso, tratamos de escalar de forma mais eficiente possível, sem perder muito tempo nas transições e sempre poupando chapeletas para conseguir bater no cume no mesmo dia.
Por volta das 9h iniciamos a conquista. Escalei um trecho de uns 6m em agarrência, onde bati a primeira chapa, que irá ajudar a identificar o início da via para repetições futuras, e logo ganhei o início do sistema de fendas.
Como a linha possui árvores e pequenas matas ao longo da escalada, foi possível estabelecer muitas paradas nas árvores. Assim, a P1 ficou em uma árvore a uns 35m da base.
Dali para cima tínhamos duas opções, varar o mato pela esquerda ou sair à direita se expondo mais para contornar a vegetação. Acabamos optando pela esquerda, onde logo apareceram algumas fissuras que aceitaram bem os nuts e logo acima bati a segunda chapa, antes de cruzar a pedra para esquerda e contornar um grande tufo de arranha gato. Como estávamos em modo, poupar proteções fixas, levamos apenas 18 chapas, estabeleci a P2 laçando um grande bico de pedra.
Olhando de longe, achei que daria para chegar até a P2 em solo por um sistema de trepa blocos, mas quando chegamos na base vimos que a parede era mais vertical do que o esperado. E como já tinha batido 2 chapas nesse trecho inicial, fiquei muito apreensivo em relação ao resto, por isso acabei optando por não bater uma chapa na parada. Com isso, no rapel, foi preciso abandonar uma fita no bico de pedra. Fica a dica!
A terceira enfiada parecia ser o crux da via, mesmo de longe dava para ver que o trecho era mais vertical, mas com fenda. Toquei um trecho de agarrência, onde bati a 3a chapa e ganhei a fenda que começa bem fina e progressivamente vai aumentando. O lance do trecho vertical consiste em vencer uma dominada de árvore. Na hora que estava negociando a passando, lembrei de um movimento em particular da Chaminé Cachoeiro no Pico do Itabira, onde é preciso vencer um tufo de mato para ganhar o platô. Por sorte, a passada aqui era muito mais suave, mas mesmo assim trabalhosa.
A essa altura, o Sol já estava nos castigando com força. Mesmo sendo inverno, o Sol estava bem forte. Para piorar, durante o inverno, o ar costuma ficar mais seco e a gente acaba ficando com a boca seca. Vencer a 3a enfiada foi uma luta. De longe a mais sofrida devido ao calor e da sede. Para piorar, não segui esticar a corda até uma árvore providencial que estava um pouco mais acima e tive que bater mais duas chapas num local desconfortável. Pior foi ficar ali passando calor olhando para sombra da árvore sem poder chegar lá.
A essa altura, tanto o Zé quanto o Iury também estavam bastante esgotados. O Zé vinha escalando e limpando a enfiada e o Iury subia pela corda fixa trazendo nas costas o famoso haulbag com todo material de apoio.
Assim que nos reunimos da P3, decidimos fazer uma enfiada curta só para migrar a parada para árvore. Estabelecemos a P4 na árvore. Ironicamente, descobrirmos que a combinação árvore, posição do Sol e nossa posição não formava uma sombra… Foi um golpe pesado para nossa moral que a essa altura não estava em alta.
Dali para cima, toquei pela esquerda onde tive que bater mais 2 chapas até chegar numa fissura cega para finalmente ganhar um platô decente. Olhei para esquerda, vi uma árvore com sombra e toquei para lá para fazer a P5.
Chegamos na P5 por volta das 14h. Como já estávamos mais alto, ali rolava um vento agradável que ajudava refrescar um pouco, mas, por outro lado, deixava o ar mais seco, com mais sede! Pelo menos, à tarde as nuvens aumentaram e por vezes as nuvens tampavam o Sol para dar um pouco de trégua.
A sexta enfiada seria o segundo crux da via. Pois tinha um lance de dominada de teto entre duas chaminés. É uma coisa difícil de explicar em palavras, mas o fato é que tem uma transição entre chaminés. Esse lance acabou ficando o lance isolado mais difícil da via, um VI grau, ou um boulder atlético de V2.
Estiquei mais 60m de corda onde estabeleci a P6 em duas árvores num platô. Olhando para cara do platô, cheio de blocos e pedras soltas, presumi que o cume estava próximo. Tirando a sede, o resto estava ficando mais agradável, a montanha já estava na sombra, o vento aumentara e o cume parecia próximo.
A última enfiada eu já sabia que tinha que pegar a fenda da esquerda, porque de longe estava claro que era mais limpa. Embrenhei numa fenda suja, toquei mais uns metros de costão e estiquei a corda até uma grande árvore onde estabeleci a P7 da via. Dali para cima, uma pequena caminhada em terreno instável levaria ao topo. O Zé subiu limpando a enfiada e o Iury resolveu ficar na P6 para garantir energia para descida.
Segundo nossas estimativas, chegamos no cume por volta das 16h30 e logo iniciamos a descida. A descida foi mais tranquila do que o esperado. Estava preocupado com alguns rapéis em árvores, mas no fim deu tudo certo. O único inconveniente da descida mesmo foi a sede.
Chegamos no carro por volta das 19h e fomos direto para o distrito de Vila Verde procurar um bar para comprar água e sorvete, mas para o nosso desespero, a essa hora da noite não havia uma alma viva na rua e muito menos um bar aberto. Sem muita opção, tocamos para Pancas, mais 30 minutos de carro, mas no meio do caminho, no lugar mais improvável, achamos um bar sujo que só vende cachaça e cerveja. Com muito custo, a dona do bar achou 2 garrafas de 500mL de água para nos vender!
Sobre a via, posso dizer que é uma escalada muito diferente de tudo que Pancas tem por usar bastante material móvel. A nossa recomendação para futuras repetições é levar dois jogos de Camalot do #.3 ao #4 e um jogo de nut (usei offset e caiu como uma luva). O único aspecto negativo da via é a presença de vegetação em alguns trechos, mas nada que te faça sair imundo. No mais, posso garantir que é uma grande escalada digna de muita aventura e emoção!
Já o nome “Pedra do Gato” é porque o Zé Luiz, na primeira visita, viu na pedra a forma de um gato Persa. Na verdade, só ele que viu o tal gato. Acho que ele ando bebendo muita solução para lente de contato. E o nome “Olho de Gato” ficou por conta do “olhar” oftalmológico da pedra.
Por fim, gostaria de agradecer ao Zé Luiz por ter me chamado para essa conquista e o Iury que estreou na arte de subir pelas cordas fixas levando o famoso haulbag. Obrigado equipe!
2 respostas em “Olho de Gato”
Vlw Japa e Zé, tamo junto, via incrível.
Vamo!!!!