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Yosemite, terceira temporada

Estava sentado no shuttle bus que faz o transporte gratuito dos turistas pelo vale do Parque Nacional de Yosemite. O ar-condicionado estava no talo. Lá fora era puro breu. Não sabia exatamente para onde o ônibus estava indo, mas isso, pouco me importava, pois estava quebrado, cansado. Eu só queria descansar um pouco depois de três dias de escalada pela via Regular Northwest Face (RNWF) do Half Dome com o brother Daniel Casas.

Mas nosso descanso era constantemente interrompido por um turista, que pelo sotaque, pressuponho que seja italiano, puxando conversa. Afinal de contas, nós éramos, no mínimo, bem exóticos naquele ônibus. Mal vestidos, sujos e com mochilas cheias de equipamentos pendurados. Tentava não dar muita bola para ver se parava de falar conosco, mas estava difícil. O italiano queria papo. Lá pelas tantas, ele nos perguntou:

– Por quê? Por que vocês fazem isso? 

Rolou um grande silêncio. Olhei para o Dani e ele não respondeu. A pergunta era profunda e filosófica. Não tinha menor condição para um papo cabeça. E mesmo que quisesse, meu inglês limitado não permitiria divagar sobre o assunto.

Lembrei uma técnica argumentativa de Schopenhauer e joguei a pergunta de volta.

– Você já subiu o Half Dome?

E o italiano respondeu:

– Sim, pela trilha, subindo pelo cabo de aço!

Então refiz a pergunta:

– Por quê?

Ele ficou pensativo e não falou mais nada conosco até o final da viagem.

Escalar a RNWF era uma coisa que estava num lugar muito longínquo dos meus sonhos. Sabia da existência da via desde 1995, quando comecei a escalar. Em 1994 os escaladores Eliseu e Beth Frechou realizavam, provavelmente, a primeira ascensão brasileira dessa via. E o relato desta escalada saiu no jornal Mountain Voices que eu assinava. Numa época onde as notícias e informações eram escassas, esse jornal era uma espécie de janela para o mundo. Como o jornal era bimestral, ficava lendo e relendo a matéria incansavelmente.

A via em si foi conquistada em 1957, após cinco dias de parede, pelos lendários escaladores Royal Robbins, Mike Sherrick e Jerry Gallwas em estilo cápsula. Em 1975, os escaladores Jim Erickson e Art Higbee realizaram a primeira ascensão em livre e em 2012 o escalador Alex Honnoud realizou a primeira ascensão em solo (livre) da via.

Atualmente a RNWF é uma das vias mais repetidas e almejadas do vale de Yosemite pelo valor histórico e estética da linha que transcorre a imponente face vertical do Half Dome.

Para mim, subir o Half Dome era um projeto concluído. Em 2014, exatos 10 anos atrás, escalei com o Murilo Lara a via Snake Dike. Mas a ideia de voltar ao Half Dome, pela face Noroeste reacendeu no final do ano passado, após termos escalado a via Lurking Fear no El Capitan com o Dani e o Otaviano.

A ideia começou a ganhar contornos no início de 2024, quando o Dani falou que provavelmente voltaria ao Vale no final do ano e gostaria de escalar o Half Dome.

Na hora, me lembrei do texto do Eliseu que falava sobre a famigerada aproximação da via, chamada pelos gringos de Death Slabs. Depois, estudei um pouco mais o croqui da via e observei que, diferentemente da Lurking Fear, essa via teria muitos trechos em livre. E se quiséssemos ter sucesso na empreitada, seria mandatório escalar o máximo possível em livre as 23 enfiadas da via.

Croqui da via.

Atualmente, a via pode ser escalado usando três abordagens: em estilo tradicional levando bastante peso e escalando em artificial; num estilo mais conservador, mas ainda pesado em 2 dias; ou ainda num estilo mais leve e rápido em um longo dia de escalada.

Com a possibilidade da viagem se concretizar, tratei de fazer uma boa temporada no Espírito Santo. Embora o estilo daqui não tenha nenhuma semelhança com o estilo do Vale, tentei focar no lado psicológico e condicionamento geral. 

Faltando alguns meses para viagem, o Lissandro e o Felipe Moura ficaram sabemos da trip e também resolveram embarcar nessa jornada, fechando assim o bonde do Espírito Santo.

Durante os preparativos finais, já na reta final, acabamos cometendo um erro logístico e perdemos a janela para reserva do Camp 4. Nos confundimos com o fuso horário e quando fomos ver, já não tinha mais vaga para o camping. Com isso, corremos para um plano B e tivemos que adiar a chegada ao Vale e três dias.

Assim, em vez de chegar direto no vale, passamos quatro dias na região de Bishop, no outro lado da High Sierra, escalando boulder.

Bishop

A ideia de conhecer os boulders de Bishop era um sonho antigo. Ficava vendo aqueles vídeos do Chis Sharma no Mandala e sonhava em um dia escalar na região vendo as montanhas nevadas da High Sierra ao fundo.

Em 2022, passei pela região com a Paula e a vontade reacendeu. Em 2023 escalei em Pine Creek com o Otaviano, mas acabamos não escalando boulder. Então esse contratempo acabou se transformando numa grande oportunidade.

Chegamos a Bishop após quase um dia inteiro de estrada, saindo de San Francisco e cruzando o Tioga Pass até a simpática cidade de Bishop.

Na cidade, alugamos 3 crashpads por U$10,00 cada/dia. Como o nosso carro era pequeno e tínhamos muitos equipamentos, tivemos que fazer uma grande operação para amarrar os pads no teto do carro.

Pegamos umas fitas de 120cm e começamos uma operação de guerra no meio da cidade. De repente, uma moça surgiu de bicicleta e perguntou se iriamos fazer boulder. Respondi animado que sim! Aí, ela me estendeu um guia de boulder de Bishop e seguiu pedalando, sem olhar para trás. Meio que sem entender, só consegui agradecer e vê-la sumir virando a esquina.

Agora tínhamos tudo que precisávamos para alguns dias de boulder na região!

Acampamento em Bishop.
Amanhecer no camping Pleasant Valley Pit com as montanhas da High Sierra ao fundo.
Estudando os planos para o dia.

No primeiro dia fomos direto para o famoso setor Buttermilks. Esse é um setor clássico de boulder em granito com fama de ter problemas exigentes. Estávamos fora do período prime, então sofremos com o calor e tivemos que ficar buscando boulders na sombra ao longo do dia.

De cara, já entendemos que o grau de Buttermilks tem pelo menos dois números de diferença em relação ao Brasil. Um V2 de Buttermilks, no Brasil vale tranquilamente V4. Além disso, o granito é um misto de pés polidos e agarras de mão abrasivas. Por isso, era preciso escalar de forma muito controlada se não quisesse abrir um talho nos dedos logo de saída.

Lissandro trabalhando a saída do boulder Fly Boy Arête (V5).

O dia em Buttermilks foi bem proveitoso para nós. Meu highpoint foi um V6 promo no final do dia, após algumas tentativas, e de quebra ainda consegui mandar o famoso Iron Man, um V4 bem consistente.

No famoso boulder Iron Man, V4. Foto: Felipe Moura.
Virando o boulder Perfectly Chicken (V5). Foto: Felipe Moura.

Já no dia seguinte fomos para outro setor de boulder com sugestivo nome de Happy Boulder, também na cercania de Bishop. Diferentemente de Buttermilks, nesse setor, a pedra é uma rocha vulcânica que fica num grande vale. Logo, o estilo de escalada também é bem mais atlético, lembrando um pouco mais o muro.

Happy Boulder foi um alento para os nossos dedos sofridos pelo dia anterior, mas como o setor fica mais baixo que Buttermilks, sofremos um pouco mais com o calor.

Achei os boulders de Happy um pouco mais fáceis do que Buttermilks, provavelmente devido ao estilo que estou mais acostumado. Embora mais fácil, ainda achamos que há uns dois números de diferença em relação ao Brasil. Nesse dia, o meu high point foi um V6 à vista (The Gleaner).

Lissandro no boulder Kling and Smirk (V3).
Felipe no boulder Córner (V0).
Lissandro no boulder Pocket Problem (V3).

Saímos de Bishop com gostinho de quero mais. Quem sabe um dia! 

Noite em Bishop.

Yosemite Valley

Chegamos ao Vale numa segunda-feira a tarde, agora com as reservas devidamente marcadas para o Camp 4.

No ano passado, quando deixei o Vale, pensei que não voltaria mais aquele lugar. Lembro que sai de lá pensando exatamente isso. Então foi bem estranho estar de volta um ano depois. 

A nossa chegada no Camp 4 foi um pouco conturbada, pois marcamos as reservas separadas e acabamos cada um ficando num canto do camping. Já no segundo dia, conseguimos ajeitar as reservas e acabamos conseguindo juntar todos num mesmo site. E melhor ainda, conseguimos ficar no mesmo site onde estavam todos os brasileiros. Nesse site já estavam o Daniel Casas de Joinvile, o Gabriel “Lou” e Formighieri do Paraná e a Monica Filipini do Rio. Aí já deu para sacar como ficou o Camp 4. Para completar o time Brasil, ainda frequentavam o nosso site o Nick e o Claudio Clement que também estavam na área.

Literatura básica do Vale
Site 24. Foto: Felipe Moura.

No dia seguinte fizemos aquela readaptação ao estilo do Vale, onde viramos a chave e entramos no espírito do pé liso, dos entalamentos perfeitos e a calibração do olho para sacar as pecas. 

Mesmo já estando no final de setembro, o calor seguia intenso, então resolvemos ir num crag chamado Sentinel Creek que fica majoritariamente na sombra.

Para mim, cragging é uma parte importante de Yosemite, assim como os boulders, pois eram nessas pequenas pedras que grandes escaladores treinavam e aprimoravam as técnicas antes de se lançarem nas grandes paredes. Por isso, sempre gostei muito dessa parte para fazer um aquecimento e entender como me sinto físico e mentalmente.

O dia foi bem produtivo nesse setor. Os meninos estrearam as peças novas recém compradas e tiveram o primeiro contato com as fendas mais famosas do mundo. E eu consegui meu melhor desempenho até então mandando em flash um 5.10d de dedo com um crux de placa no final. Assim como no ano passado, mandar essa via foi muito importante para melhorar minha confiança e me sentir bem para os desafios à frente.

No dia seguinte, Dani e eu fomos fazer um aquece na via Absolutely Free, uma via relativamente curta de 5.9 no setor Lower Brother.

Foi uma escalada bem agradável e tranquila, mas bem proveitosa para alinhar o entrosamento e bater martelo que iríamos entrar na face norte do Half Dome.

Conversamos sobre a escalada e chegamos num consenso de que a melhor estratégia seria fazer a escalada em dois dias, usando uma estratégia mais conservadora, a final de conta, não estávamos escalando tão rápidos e nem conhecíamos bem a via.

No momento que combinamos a escalada, uma chave virou nas nossas mentes e entramos num outro estado de espírito. A ansiedade aumentou e ficamos mais introspectivos. Passamos mais tempo pensando na via, na estratégia e ficamos focados na preparação.

Escalador desconhecido em solitária no El Cap.
El Cap ao entardecer.
Wildlife!
Cordada brasileira na Nutcracker (5.8).
Entardecer no Vale.

Half Dome

No dia seguinte, tiramos o dia para descansar e se dedicar aos preparativos. Separamos os equipamentos que iriamos levar e decidimos subir com 3 jogos de cams até o #1 e mais 2 jogos até o #4. De corda resolvermos levar uma corda de 70m para poder fixar as duas primeiras enfiadas e uma tagline para içar a mochila em algumas enfiadas.

Separando o material.

A nossa segunda preocupação foi a água. Segundo algumas fontes, a bica que fica na base da via estava seca. Em geral, a galera sobe sem água e pega água na base, mas com essa notícia tivemos que rever os planos. Consideramos 2,5L de água por pessoa dia. Com isso teríamos que levar 15L para os três dias que tínhamos planejados.

Como a história da água meio que nos pegou de surpresa, contamos com a ajuda mais do que essencial do Lou que se prontificou a portear 15L de água até a base.

Um dos grandes desafios dessa via é, sem dúvida, a aproximação. A aproximação tem um ganho de elevação na ordem de 1000m por uma trilha íngreme que intercala lances de 4o grau com corda fixa. O guia de escalada é bem claro ao dizer que a aproximação já faz parte da escalada, devendo levar a sério essa parte, da mesma forma que a escalada em si.

Esquilo sendo esquilo!

No dia seguinte emitimos o nosso permit e por volta das 10h da manhã iniciamos a caminhada de aproximação. Daria para subir à tarde, mas como sabíamos que a tarde a aproximação seria sob um sol implacável resolvemos aproveitar a sombra da manhã e assim poupar um pouco mais de água.

Aproximação!

Fizemos a aproximação em quase 4h e chegamos na base da via por volta das 14h. Para nossa surpresa, descobrimos que a nascente estava com água. Não era uma nascente convidativa, mas fervendo e usando para cozinhar parecia ok. Pelo menos não passei mal nos dias subsequentes.

Agradecemos imensamente a ajuda do Lou que logo em seguida desceu sozinho até o Camp 4. Enquanto isso, nós tratamos de fixar as duas primeiras enfiadas para adiantar o dia seguinte.

A primeira enfiada foi meio um soco no estômago, mas sabia que para cima ficaria melhor. Logo em seguida, o Dani guiou o 5.9 seguinte e entre alguns resmungos típicos da idade fixou a corda na P2 e descemos até a base para descansar um pouco.

Logo em seguida, uma dupla de escaladores coreanos chegou na intenção de escalar a via em um dia. Como eles estavam na preferência, cedemos a nossa corda fixa para agilizarem a escalada no dia seguinte.

Durante a noite vimos mais algumas luzes subindo a trilha e logo ficou claro que teríamos mais gente na via.

No dia seguinte acordamos por volta das 4h e a base da via estava uma balbúrdia. Pela manhã, mais uma dupla havia subido e agora estávamos em 4 duplas para entrar na mesma via. Como nos éramos a única dupla de iria subir em dois dias, deixamos duas duplas subirem antes de nós e subimos pelas fixas enquanto a 4a dupla escalava as primeiras enfiadas.

A nossa estratégia era subir em bloco. O Dani pegaria o primeiro bloco até o início da grande travessia, P9, antes dos lances de pêndulo, e eu o bloco final com a meta de chegar até o Big Sandy Ledge, na P17, onde há o único ponto de bivaque sem portaledge.

Para mim, as enfiadas iniciais foram as mais difíceis de toda escalada. Jumarear com uma mochila super pesada, uma parede vertical foi extremamente desgastante. Estimo que a mochila estava pesando tranquilamente 25kg. Para piorar, ainda tivemos que compartilhar algumas paradas com a quarta dupla que vinha no nosso encalço. Além disso, o Dani estava uma máquina de comer pedra.

Nesse trecho inicial estávamos tão focados que mal conversamos nas paradas. Fazíamos a transição sem perder tempo, pois sabíamos que se não chegássemos na P17 estaríamos em apuros.

O ritmo estava tão frenético que a uma certa altura estava muito cansado a ponto de considerar desistir da empreitada.

Em algum momento perdemos contato com a 4a dupla que ficou para trás e presumimos que logo em seguida devem ter baixado.

Dani tocando a 9a enfiada com os coreanos na 10a.

Chegamos na P9 por volta das 11h, não tenho certeza. Eu estava no limite da exaustão física por subir com aquela mochila pesada.

Fazer aquela troca de bloco parecia insanidade. A parede parecia mais vertical e sabia que depois da travessia para direita não teria mais volta. Ou sai pelo cume, ou de helicóptero!

O Dani deve ter visto meu semblante e não falou nada. Só disse: vai no teu tempo!

Sentei de costa para pedra e fiquei olhando para o Vale. Pensei comigo: quem tem paciência tem tudo. Foquei em me recuperar comendo alguma coisa sem pensar na via. A prioridade era ganhar um pouco de energia. Depois iria me preocupar com o que me aguardava. Eu só tinha que me focar em fazer direito cada coisa, sem cometer erro. Uma coisa de cada vez! Com paciência!

Comecei a 10a enfiada fazendo um A0 em chapa fixa para fazer um pêndulo e ganhar um platô. Foi uma enfiada bem curta, boa para ganhar ritmo. A 11a foi um repeteco da 10a, mais um artificial e um novo pêndulo. 

Resolvi dividir essa enfiada em duas partes porque o atrito estava difícil. Chamei o Dani numa parada móvel e toquei a próxima até a P12. Nesse trecho, em 2015, um grande desprendimento de rocha alterou parte da via. Na verdade, uma enfiada inteira de chaminé caiu e só sobrou uma placa lisa. 

Dani limpando a 12a enfiada com a mochila carregada nas costas.

Dali para cima sabia que o bicho iria pegar. A moleza do artificial de chapa sobre chapa havia acabado e agora teria que tocar em livre, com o compromisso de chegar antes do anoitecer na P17 se não quiséssemos dormir numa parada qualquer. Também tínhamos a consciência de que a descida pela via também seria complicada devido à travessia.

Busquei a força na vontade e determinação e converti em energia. Sabia que as próximas cinco enfiadas seriam as mais épicas. Seria a escalada da vida. Então queria escalar bonito, curtir cada momento e aproveitar a escalada, mesmo cansado. E assim fui!

Pausa na P12 com as fendas perfeitas da 13a enfiada.

Na enfiada 14 tive que encarar uma chaminé que não estava nos meus planos. Chaminé média, mal protegida, onde cair não era uma opção. Sem dúvida foi o momento mais difícil do meu bloco. 

As enfiadas 15 e 16 foram, conforme descrito no croqui, um verdadeiro deleite. E a coroação do dia foi a 17a enfiada, a última antes de chegar no platô do bivaque.

Toquei essa ultima enfiada com o sol se pondo no horizonte e a luz deixando o granito dourado. O sistema de fendas da enfiada era de primeira qualidade e a verticalidade imposta da rocha vertiginosa.

No início da 17a enfiada. Foto: Daniel Casas.

Chegamos na P17 com as últimas luzes. Olhei para cima e vi os coreanos 3 enfiadas à frente, já fazendo a famosa travessia do Thank God Ledge.  Mais acima também conseguíamos ouvir a 1a dupla batalhando as últimas enfiadas.

Lentamente, o silêncio dominou o vale. A escuridão tomou conta e começamos a pensar no nosso bivaque.

Para poupar peso, levamos uma comida liofilizada pronta e subimos sem o fogareiro. Então bastou abrir o saco e comer a massa gelada. Mesmo gelada, ela estava saborosa e revigorante.

Estômago forrado, o próximo passo foi resolver o lugar para dormir. Para poupar peso, subimos com um colchão inflável, um liner e um saco de dormir. Fiz uma cama de corda e me cobri com o saco de dormir. O Dani ficou com o colchonete e o liner. Para auxiliar no conforto, ele ainda pegou uma manta de emergência para melhorar o isolamento.

Descreveria a noite como mal dormida, mas já estou ficando galo velho nessas coisas. Então já sabia das três fases do sono num bivaque. No começo, a pessoa desmaia devido ao cansaço; lá pela meia-noite, a gente acorda porque o corpo deu uma carga e tudo fica desconfortável. Aí vem a pior fase, onde ficamos rolando por umas 3h; por fim, vem a última fase, onde voltamos a dormir em sonos curtos, sempre sendo acordado por algum desconforto. Sem dúvida, a pior parte é um pouco antes do amanhecer quando a temperatura cai, o sono chega, mas precisamos acordar.

Amanhecer no Big Sandy.

Para o dia seguinte teríamos mais 6 enfiadas. Considerando que no dia anterior fizemos 17, fazer 6 parecia fácil. Era muito fácil a mente pregar essa peça e baixar a guarda. Então constantemente repetia para mim mesmo que só estaríamos com o jogo ganho quando estivéssemos de volta ao Camp 4. 

No segundo dia, o Dani começou pegando o famoso Zigue-zag, uma sequência de fendas que leva ao famoso Thank God Ledge, aquele famoso platô que virou capa da National Geographic com Alex Honnoud, sem corda, e fotografado pelo fotógrafo Jimmy Chin.

A minha ideia era repetir a foto. O Dani começou a enfiada, mas logo precisou se agachar para fazer a passarela. Não demorou muito estava deitado e se rastejando. Foi no mínimo engraçado. Fizemos umas piadas e nada de refazer a foto. Para coroar a enfiada, ele ainda teve que encarar um 5.9 sandbag em chaminé para chegar na parada.

Dani na travessia do Thank God Ledge.
Fazendo um “Honnouing” na travessia.

Na P21 trocamos de bloco e toquei o artificial com pêndulos até a P22.

A última enfiada parecia simples, mas logo se mostrou mais exigente do que o esperado. Uma travessia em aderência lisa e mal protegida me levou a uma sequência de balcões, onde sabia que, ali tínhamos, finalmente vencido aquela muralha!

Chegamos no cume por volta das 14h e fomos recebidos por turistas chineses indiferentes aos nossos esforços. Eles estavam mais preocupados com as selfies do que com aqueles seres estranhos que apareceram do nada.

Gastamos um tempo no cume enquanto olhávamos onde ainda tínhamos que chegar, lá no fundo do vale.

Foto no cume!

A descida foi igual a todas as outras. Cansativa, demorada e concentrada para não cometer nenhum erro. A única diferença era que, dessa vez, tínhamos acabado de fazer a grande escalada das nossas vidas. Durante a descida, às vezes, me pegava pensando nisso, mas logo tentava voltar a atenção para descida. Tínhamos 1400m de altimetria para descer e o nosso plano era tentar chegar no fundo do vale sem precisar recorrer à luz das lanternas.

Uma vez no Vale, pegamos o shuttle e fomos até o Camp 4 onde fomos recebidos pela galera com um churrasco a moda americana. Que banquete! 

No dia seguinte, finalmente pude acordar com calma e refletir mais tranquilamente sobre tudo que aconteceu nos últimos três dias.

Ver o Half Dome após ter escalado trouxe uma nova perspectiva da pedra.

No final do dia, ainda subimos, de carro naturalmente, até o Glacial Point para ver o por do sol e mergulhar num turbilhão de pensamentos.

Half Dome a partir do Glaciar Point.

O segundo dia depois da escalada foi mais um dia estranho. Eu estava em Yosemite, na Meca da escalada, mas não queria escalar. Contei para o Dani sobre isso e ele também falou que tinha a mesma sensação. 

Considero me um fanático, um fominha por escalada, que não nega uma ponta de corda, mas pela primeira vez, estava me sentindo pleno e satisfeito. Eu simplesmente não me importava em não escalar, mesmo estando em Yosemite.

No terceiro dia, resolvi fazer uns boulders, o Dani descansou mais um dia e os meninos foram passear em Mariposa. 

Mandando um V0 super polido perto do C4. Foto: Felipe Moura.

Desde a nossa chegada no vale, o Lis e o Felipe fecharam uma dupla e se aventuraram pelas fendas de Yosemite. Tirando os dias de crag, quando escalávamos em grupo, os dois pegaram firmes nas clássicas do Vale. Com certeza passaram por vários apuros e várias vezes chegaram tarde após fritar ao Sol na parede, mas tenho a plena convicção de que isso ajudou a forjar espírito da escalada tradicional nos dois.

Wildlife!

No último dia, todos resolvemos fazer mais um dia de cragging numa parede mista, sem perrengue. Vias mistas, base plana, sombra e paradas duplas com mosquetão. Dia de playba.

Dani escalando a via Kung-Fu Panda.

E para coroar a trip, a noite, o Wesley, um gringo de Novo México que sempre colava conosco quando estávamos no Vale preparou a noite dos tacos, com muita pimenta e regrado a cerveja com limão.

Eu só lembro que depois da segunda cerveja dei um p.t. que não conseguia ficar acordado e dormi a festa inteira ao lado da fogueira para felicidade do Formigheri que me filmou a noite inteira.

Site 24!

Agradecimentos ao Dani pelo convite pelo segundo ano consecutivo. Ao Lis e o Felipe pela parceria no trip; Ao Gabriel pelo porteio mais do que especial; a  Mônica, Formighieri e Daniel Carioca pelos momentos de descontração no C4; ao Nick pelas dicas preciosas de sempre; e ao Cláudio Clement pelas conversas fiadas.

Delegação do Espírito Santo.
Panorâmica do Vale.

Comentários

5 respostas em “Yosemite, terceira temporada”

Imagino a experiência fantástica que foi essa escalada Japa, obrigado por compartilhar esse relato com a gente, parabéns para você e o Dani!!!

Ráááááá!!!!!
Muito massa bitcho!!!!
Privilégio ter você como parceiro. Escala muito, foca no propósito, se prepara e no momento certo, flui !!!!!
Obrigado por ser meu amigo!!!!
??????

Powwww
Emocionante relato!
Ver as lindas fotos do lugar e entender um pouco como aconteceu a trip e inspirador, provocou uma vontade de fazer também um dia
Baita rolê!!!
Parabéns dupla!

Dani, mais uma vez obrigado por propor esse desafio! Sem dúvida uma grande escalada com um grande escalador!

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