As grandes viagens

Este texto tenta seguir uma sequência de postagens que venho fazendo ao longo desta quarentena falando sobre os primórdios da escalada e os “anos dourados”. Não tinha intenção de escrever uma “trilogia”, mas seguindo a ideia do Eric, resolvi escrever o capítulo final, já que depois os acontecimentos vão “linkar” no início deste site. O blog foi inaugurando em abril de 2007. Então a ideia aqui é falar de 2000 a 2007 e fechar o ciclo. Para ler a primeira parte clique aqui! E para ler a segunda, aqui!

Paraná

Um pouco antes de 2000, em 1999, quando ingressei na faculdade, para variar, entramos em greve por longos 6 meses. Como estávamos em greve, resolvi subir até Curitiba para conhecer as escaladas daquela região. Sem saber, essa foi a minha primeira viagem para fora do Estado. Embora tenha viajado sozinho, me encontrei com o Thiago Balen em Curitiba e ficamos de “bactéria” na casa do Kavamura. Ainda lembro que nesse BBB, o Marius Bagnatti (SC) também se juntou e ali ficamos por duas semanas. Não lembro como fomos parar na casa do Kava, mas lembro que o conheci no campeonato da Ar Livre. O Kava, como um bom anfitrião, nos levou para diversas áreas de escalada da região, incluindo o Anhangava, São Luis do Purunã, Salto São Jorge e Morro do Canal. Naquela época, no Setor 1 de Purunã tinha apenas uma dúzia de vias e o Kava lançou o desafio de fazer todas as vias no mesmo dia. Foi um dia pesado…

Escalando a clássica “10a Sinfonia” (8b) no Morro do Anhangava, PR. Foto: Kavamura.
Hambúrguer (7a), São Luis do Purunã – PR. Foto: Kavamura.

A lembrança mais marcante que tenho dessa trip foi que conheci outra mentalidade de escalada que não existia e, nem existe, no Rio Grande do Sul. Uma mentalidade de pessoas com foco na montanha que vivem e respiram escalada, os fanáticos. Absorver um pouco desse pensamento foi muito enriquecedor e ajudou a forjar um pouco o meu pensamento sobre estilo de vida.

Cipó

Em 2000, ouvindo as histórias do Antonio Nery, que já tinha ido ao Cipó anos antes, fiquei fascinado pelas aventuras e estabeleci como meta conhecer esse paraíso. Lembro que a melhor parte da história era:

– Japa, lá as vias são fáceis, vai mandar todos os nonos!

No inverno de 2000, parti com Nery para o Cipó. Depois se juntaram o Toni e o Eduardo e ficamos no sítio do Seu Bigode, com a galera do Paraná (Kava, Diogo, Sid, Schen, Diogão…) e mais uns perdidos (Balen, Fluber).

Chegando lá, sem perder muito tempo, fomos “começar os trabalhos”. Para “aquecer”, entramos na Jungle Boy (8a)! Via curta e “tranquila”, parecia um 8a fácil para começar “o rodo”. Lembro que cai na segunda costura, sofri para mandar o crux e ainda chorei com o grampo torto. Desci com a moral lá embaixo. Precisei de mais um dia para mandar o “aquecimento”…

Ao longo da semana fui me acostumando com a textura do mármore e o estilo de escalada do Cipó e a viagem rendeu boas escaladas. Como naquela época não tinha muitas vias, ou você mandava tudo, ou não mandava nada. Fiquei na turma dos que só sobraram as pancadarias.

Na segunda semana, partimos para o Sítio do Rod, pois a nossa intenção era escalar na Lapinha, Bauzinho e no Rod. Lembro que me adaptei melhor ao estilo do calcário, pois as vias eram mais parecidas com as do Sul e aproveitei bem a viagem.

Naquela época, o que tinha de vontade faltava de grana. Viajei com a grana contada até os centavos. Levamos toda comida de casa para não comprar nada lá. A grana estava tão contada que não estava no orçamento comer em restaurante, nem fazer nenhum outro tipo de luxo.

No dia de voltar para casa, chegamos direto do Rod para rodoviária e ficamos sabendo que já não tinha mais passagem para Curitiba naquele dia. Com a grana curta, não tinha essa de ir de avião para o Cipó. Tínhamos que pegar um busão de Porto Alegre até Curitiba (10h), passar o dia na capital e pegar o ônibus noturno para Belo Horizonte, mais 14h, para enfim, pegar outro ônibus até o Cipó. Acho que isso dava uns 2 dias… Mas naquela época, nem ligava. Queria escalar!

Como não tínhamos grana para hotel, nem para janta, Nery e eu resolvemos caminhar até a academia “Das Pedras” para mendigar um pouso na academia. Pensamos: poderíamos esperar a academia fechar e dormir por lá no 0800 ou ser acolhido por alguma alma caridosa. Foi assim que conheci o Fabinho, ilustre escalador mineiro e dono da academia, que nos levou para casa, alimentou e arrumou um canto para passar a noite no apartamento. Gratidão Fabinho!

Como eu não mandei todas as vias do Cipó, no ano seguinte (2001) queria voltar lá para resolver as pendências. Na verdade, a minha mente estava focada em apenas uma via: Heróis da Resistência. À época, a via ia até a segunda cadena e era graduada em 9c. Nem o 9a existia. Como sempre, viajei sozinho de busão, grana contada e muita disposição. Mandei a via projeto da trip na 6a entrada e ainda dei segue para o Sid (PR) na cadena dele, o que me garantiu uma janta “0800” no Marquinhos (?). Por tradição, o “encadenante” pagava uma janta ao segue. Acho que paguei a janta para o Kava que me “segurou” na Heróis enquanto jogava xadrez na base…

É claro que no final da viagem ficou claro que iria faltar grana para voltar. Afinal de contas, tive que pagar uma janta que não estava nos meus planos. O jeito foi vender uns equipos para uns argentinos que estavam por lá e ficaram fascinados com umas novidades que eu havia levado para lá: o clipstick e o saco de corda! Não lembro por quanto vendi, mas sei que consegui levantar a grana para passagem de volta.

Se vocês repararem, em várias fotos estou usando uma camiseta amarela que era do meu apoiador, a loja Montanha do Newton Reis. Para quem andava sempre sem grana, o apoio do Newton foi muito importante para realização dos meus projetos, pois ele me ajudava com “equipos” e inscrições para os campeonatos. Graças a ele sempre tive bons equipos e roupas decentes para as minhas escaladas. Valeu Newtão!

Nessa mesma viagem, além dos argentinos, conheci um chileno muito gente boa, o Léo e sua esposa. Acabamos trocando contato e no ano seguinte, a convite dele, resolvi conhecer as escaladas na região de Santiago no Chile.

Em 2002 ganhei do meu irmão a minha primeira câmera digital, uma Sony Cyber-shot. Naquele ano, o mundo da fotografia estava passando por uma grande transformação, passado do analógico para o digital, por isso os cartões de memórias ainda eram muito caros e eu só tinha um que era bem limitado. Com isso, a maioria das fotos está em 480px por 640px, que era a resolução que permitia tirar mais fotos. Lembro que para o Chile, eu tinha 1 cartão de memória e uma bateria para fotografar toda viagem.

Com a minha primeira câmera digital.

Chile

Para minha primeira trip internacional (2002), convidei o Ricardo “Canguçu” que era outro fanático. Mais uma vez viajamos com a grana contada, o que nos obrigou a uma longa viagem de 36h de ônibus até a capital chilena. Lembro que entrei no ônibus e pensei: 

Daqui a 24 horas ainda estarei dentro desse ônibus e ainda faltarão 12h até Santiago…

Lá, fomos recebidos pelo Léo que nos acolheu em sua casa em Santiago. O Ricardo tinha uma restrição alimentar e não comia várias coisas. Basicamente só comia pão, carne, arroz, feijão e fritas. Assim que chegamos na casa do Léo, como um bom anfitrião, para agradar os viajantes brasileiros, nos ofereceu uma iguaria local: Ostra crua com limão! Comi amarradão, mas para o Canguçu, naturalmente aquilo não desceu bem. Comeu para não fazer desfeita, mas passou os próximos dois dias com “vazamento hidráulico severo”.

Assim que ele melhorou das ostras, partimos de ônibus para Las Chilcas! O point de escalada mais famoso do Chile por concentrar várias vias duras em um conglomerado de excelente qualidade. Acho que passamos uns 7 dias escalando alucinadamente! Nunca esquecerei a cena da nossa chegada a Las Chilcas: Descemos do ônibus, corremos com as cargueiras lotadas como se não houvesse amanhã até a base do Setor Cubo, nos equipamos e escalamos qualquer coisa! É claro que isso teve um preço, pois como chegamos tarde no setor e ficamos escalando alucinadamente, anoiteceu e tivemos muita dificuldade para achar o acampamento…

Depois de Las Chilcas, voltamos para Santiago, fomos parar numa rave (não sei como, nem com que grana) e ainda passamos alguns dias em Las Palestras e Piedra Romel para conhecer as famosas aderências em rocha vulcânica (tufo).

No nosso último dia em Las Palestras, acordamos normalmente no acampamento que montamos na base das vias e enquanto tomávamos o café da manhã ficamos olhando para baixo do morro coberto por uma mata fechada. De repente, vi algo se movendo lentamente. Chamei o Canguçu para me certificar de que não estava louco e ele também confirmou que era um cara camuflado. Ok, tranquilo. Logo sem seguida, vi mais um camuflado, depois outro e mais outro. Quando nos demos conta, tinha pelo menos umas 50 pessoas camufladas subindo. Depois descobrimos que eram soldados do exército chileno que estavam indo fazer um treinamento de montanha. Como estávamos de saída, escapamos daquela muvuca e fomos escalar em Piedra Romel, ali perto.

Argentina

Voltando do Chile, o mosquitinho da viagem internacional tinha me picado e no ano seguinte (2003) parti para região de Córdoba na Argentina, dessa vez com o Toni.

O esquema de Córdoba foi dentro do mesmo padrão: low cost universitário! Mas dessa vez, a viagem seria mais curta, seriam “só” 24h de ônibus! Na primeira semana passamos em La Olla, uma zona de escalada esportiva em granito que fica na beira da rodovia. Lá, conheci o que era escalada esportiva em granito. Sofri com o estilo e apanhei bastante, mas o pior era a pele que não voltava mesmo após um dia de descanso.

Na semana seguinte fomos para Los Gigantes, uma área de escalada tradicional na Serra de Córdoba. Infelizmente chegamos com a frente fria e passamos uma semana bem ruim. Escalamos algumas vias quando o tempo permitia e a rocha secava um pouco, mas passamos a maioria do tempo na barraca esperando o tempo melhorar. Lembro que passei o meu aniversário na barraca com uns “lokos” que conhecemos por lá. Aliás, o que mais aparecia naquela montanha eram os “loques”. Depois conhecemos um cara que foi acampar sozinho. Um dia, o convidamos para jantar conosco no nosso acampamento. Depois da janta, ele foi embora para sua barraca e nos retiramos para o saco de dormir.

De repente o Toni fala:

-Japa, tem alguém gritando!

-Ta louco? Vai dormir!

De repente ouvi:

-Chicooooooooo, ayuda-meeeeee!!!!

Agora sim! Era o nosso amigo em apuros. Saímos da barraca e não víamos mais do que 1m devido à densa cerração. Achamos que seria mais prudente o Toni ficar na barraca e eu ir ajudá-lo. Como tínhamos um rádio de comunicação (!!!) fui com rádio em direção aos gritos. Quando achei o cara, vi que ele havia caído num buraco e com o impacto, a lanterna quebrado, ficando no breu sem saber onde estava a barraca. Com muito esforço o guiei até a barraca e depois retornei para o acampamento. Graças ao rádio e ao apito do Toni consegui voltar para barraca naquela cerração sinistra.

Uns dias depois, apareceu outro grupo de “loques”. Eram 3 caras. Um deles chegou em nós e perguntou se não tínhamos vareta de barraca sobrando! Oi? Os caras esqueceram no ônibus… Algum tempo depois, ele voltou novamente ao nosso acampamento, perguntado se não havíamos visto os amigos dele, pois eles foram caminhar e não tinham voltando ainda. Como já estávamos há uma semana, sabíamos que eles estavam perdidos na névoa que sempre baixava no final do dia. Infelizmente nós também não tínhamos como ajudá-lo sob pena de ficarmos perdidos. No dia seguinte, quando fomos embora, encontramos os perdidos na parada de ônibus e contaram que passaram a noite numa caverna morrendo de frio e que só acharam o caminho de volta no dia seguinte, quando a cerração baixou…

Naturalmente na volta à civilização, as nossas contas não fecharam mais uma vez e ficamos sem dinheiro. Tínhamos Real, mas como era domingo, não achamos uma casa de câmbio. Por sorte, reencontramos um dos amigos que conhecemos em Los Gigantes e ele quebrou o maior galho trocando a grana para nós, o que garantiu uma noite num “muquifo”, que mais parecia motel, ao lado da rodoviária de Córdoba. Viajamos por toda Argentina sem um centavo em Peso e quando chegamos em Uruguaiana, finalmente pudemos comprar uma pizza com o resto do Real que ainda tínhamos. Ainda lembro do sabor horrível da pizza. Foi a pior pizza que comi na minha vida, mas estávamos felizes porque era comida. Chegando em Porto Alegre, o Toni tinha um vale-transporte e eu só a grana para o busão.

São Bento

Depois dessa viagem, passei um tempo sem viajar, pois precisava acabar os  estudos de alguma forma. Só em 2006, após entregar o mestrado, voltei a viajar, agora para São Bento do Sapucaí (SP). Dessa vez, eu já estava “motorizado” e fomos, Roni Andres, Chico, Toni, Leozinho e eu de carro até o refúgio do Eliseu. Lá ainda encontramos o Vini (Todero) que chegou mais tarde.

Em algum lugar entre Curitiba e São Paulo o carro não quis mais ligar depois de uma parada, mas foi só desligar o alarme que tudo estava resolvido. Foto: Roni Andres.

Chegamos no refúgio do Eliseu e nos acomodamos por lá. O Eliseu muito prestativo e empolgado nos deixou vários filmes de boulder que ele produziu para assistir e foi embora. Olhamos uns 10 minutos daquele vídeo “trancendético” e desligamos. No dia seguinte, fomos até a cidade, compramos uma antena de TV e instalamos no refúgio. A partir de então, passamos todas as noites assistindo às novelas, das 6h até às 9h. Bem melhor!

Pensando hoje, aquela viagem foi muito massa, porque foi tipo uma de despedida da turma que sempre andava junto, pois depois disso, cada um foi para um canto do mundo e nunca mais nos encontramos.

Escalando no Setor da Coruja, Pedra da Divisa (SP/MG). Foto: Roni Andres.
Todo mundo bebendo suco de uva. Foto: Eliseu Frechou.

Rio de Janeiro

No dia 3 de janeiro de 2007, o ônibus me deixou no cruzamento da Av. Rio Branco com a Av. Getúlio Vargas no centro do Rio de Janeiro. Eu estava de “muda”, saído do Rio Grande do Sul onde morei por 28 anos para começar uma nova vida. Nunca vou me esquecer daquela cena de eu ser jogado para fora do ônibus e sentir aquela energia estranha do Rio de Janeiro em pleno domingo. Era uma mistura de medo, ansiedade e motivação. Até hoje, quando passo por lá, lembro desse dia. 

No Rio de Janeiro, morei por 8 meses e tive a oportunidade de desbravar um pouco o cenário da escalada carioca. Cheguei no Rio com a motivação a mil, mas em pleno janeiro foi quase impossível escalar. Lembro que os primeiros meses foram bem difíceis, tanto para escalar quanto para achar parceria. Recordo que várias vezes fui ao CE2000 sozinho de ônibus na esperança de encontrar um segue-amigo. E também lembro da vez que fui para Barrinha sozinho e não encontrei ninguém na pedra. Então resolvi tirar uma soneca na base da via na esperança de alguém chegar mais tarde. De repente, fui acordado aos chutes pelo Hilo (Santana) que achou que eu era um “presunto” e eu achei que estava sendo assaltado. Tomamos o maior susto…

A localização do Rio de Janeiro em relação ao Brasil também era um privilégio que eu não tinha morando no último Estado ao Sul do Brasil. Com isso, lembro que fiz alguns bate-voltas de final de semana para Sete Lagoas, Ubatuba e outras regiões. Além de ter conhecido Cocalzinho guiado pelo meu conterrâneo, Rafael Torres que tinha se mudado para lá.

Escalando em Cocalzinho (GO). Foto: Rafael Torres.

Outro lugar do Rio que frequentava religiosamente todas as 3a e 5a era a academia Limite Vertical do Bagre em Botafogo. Ali era o point da galera durante a semana e fiz memoráveis sessões de boulder com o Cláudio, Tadeu, Alex e Daniel

Participando do “Desafio do Hulk” na academia Limite Vertical (RJ). Foto: Marcela Chaves.

Espirito Santo

E em agosto daquele mesmo ano, novamente a minha vida ganhou outro rumo, quando a empresa me mandou para o Espírito Santo. Lembro que fiquei sabendo numa 5a feira que iria me mudar para lá e no domingo estava tentando embarcar num voo para Vitória com uma maleta de mão contendo uma furadeira de impacto. É claro que fui barrado no raio-X e o moço da segurança não deixou subir com a furadeira. Que absurdo! Onde já se viu isso. Essa seria a furadeira que usaria para abrir várias vias no Espírito Santo nos próximos anos.

Bom, o resto da história está escrito aqui no blog até os dias de hoje. 

Em curta, e de forma super, mega resumida, essa é a minha trajetória. Com certeza deixei de fora muitas outras histórias legais e não falei de várias pessoas especiais. Quem sabe no futuro eu não sento para escrever com mais calma as minhas memórias.

Comentários

10 respostas em “As grandes viagens”

Bah, esses relatos são cheios de boas dicas pra quem vai pra AR de busão, heheh

Boa, Japa! Tá bem de memória!
Lembrei da vez que a gente foi pra Caxias, íamos dormir nos bancos da Gruta e acabamos na casa do Thiago, como se fosse ontem!

Caramba, lembro desse dia, mas não lembrei dessa parte. Que massa, bons tempos!

Você gosta de sofrer desde novo né japones, ir pra Argentina de busão levando crashpad… raiz!

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