Para compreender esta trilogia, recomendo que leiam este post primeiro e depois este!
Ao final do segundo post, publicado em agosto de 2017, escrevi:
Por hora, acho que essa conquista vai dar uma pausa, pois para os próximos finais de semana, as nossas agendas não irão se conciliar, mas com certeza voltaremos lá o mais breve possível.
Pois é, o “breve” acabou levando três anos… A vida deu voltas, a vida dá voltas e nem tudo que planejamos dá certo. Talvez, ali esteja a graça da vida, a incerteza do futuro. Por isso que nós gostamos de subir uma montanha onde nenhuma pessoa passou antes, porque não sabemos o que iremos encontrar pela frente.
Enfim, três anos depois, o Eric virou pai do Davi, o Cosme virou pai também e foi morar fora do Estado. E eu fiz quarenta anos! Mas a pendência estava “riscada” naquele escudo de granito da face norte da Pedra Paulista em Itaguaçu. Odeio deixar projetos, vias e conquistas pela metade. Arianos odeiam fazer isso! Mas o medo de voltar lá para encarar todo aquele sofrimento, de encarar o trecho final, de levar peso para cima também serviram de desculpa para postergar mais um pouco, o retorno inevitável.
Não preciso nem dizer que 2020 está sendo um ano louco para todo mundo. Com essa crise, a desculpa perfeita estava na ponta da língua: pandemia, temporada acabando, fora de forma… mas o Eric lançou a “semente do mal” e aos poucos a procrastinação foi ficando de lado e o projeto ganhando forma.
Antes de mais nada, conversamos com o Cosme que participou nas investidas anteriores. Explicamos a situação e ele prontamente deu a maior força para seguirmos com o projeto sem a participação dele. Depois, avaliamos a ideia de seguir a conquista em dupla, mas achamos melhor procurar mais uma pessoa que pudesse nos ajudar a dividir as responsabilidades. E assim surgiu o nome André Tesourinho!
Aqui no Espírito Santo, temos algumas figuras que são quase “folclóricas” e o Tesourinho é, sem dúvida, uma dessas pessoas. Sempre bem disposto e com um humor afiado, é garantia de que você irá dar boas gargalhadas ao lado dele!
Fechamos a “equipe” e a partir dali começamos a monitorar o clima para achar uma janela boa de dois dias que coincidisse com um final semana.
Dia 1
Na sábado, dia 15 de Agosto, aniversário do Tesourinho, repetimos a peregrinação das vezes anteriores, saindo de Vitória às 5h, passando em Santa Teresa para pegar o aniversariante e rumando até a base da pedra. Dessa vez, não tivemos a mesma sorte da investida anterior e conseguimos levar o carro até o fim de uma estrada abandonada. Em três anos, muitas coisas aconteceram no sítio que fica na base e a estrada que nos levou aos pés da via estava abandonada e intransponível.
Separamos os equipamentos, tomamos um café da manhã reforçado e iniciamos a aproximação, levando uma leiteira de 35L para ser içado, o Toninho; um haulbag de 35L e mais uma mochila de 30L. Levamos basicamente, todo material de escalada, incluindo, um jogo de Camalot, costuras, uma corda dinâmica, uma estática, uma tag line e material de conquista (subimos com 50 chapeletas e 10 paradas). Além disso, 18L de água, material para bivaque e comida, muita comida.
Às 9h iniciamos a escalada. Objetivo do dia era subir até a P6, onde seria o nosso bivaque, levando todo material e tocar até a P8 para fixar as duas cordas (no final da postagem tem o croqui completo da via). Mesmo conhecendo a via e suas particularidades, repetir essas enfiadas iniciais não foi fácil, pois já na saída a via exige certo esforço físico e mental. Eu acho que um dos elemento fundamentais para escalar essa via é criar uma “barreira mental” contra qualquer tipo de pensamento negativo o quanto antes. Principalmente por causa das agarras em cristais que são sempre bem duvidosas. É um “escalada tocada” onde você precisa escalar rápido, não só para ganhar tempo, mas também para sair logo das situações de exposição. Sem contar que as enfiadas são longas e torturam os pés com força.
Por volta do meio-dia chegamos no platô da P4, onde na investida anterior montamos o bivaque. A essa altura, o Sol estava muito forte, mesmo sendo inverno e com vento. Nos abrigamos brevemente numa pequena sombra e ali fizemos uma longa pausa para recompor as energias.
À tarde, enquanto tirava um cochilo, o Eric repetiu a quinta enfiada em chaminé. Depois, peguei a 6a enfiada, também em chaminé, que na minha opinião é uma das mais desgastantes depois da 3a enfiada.
Às 16h todos nós estávamos na P6, local onde seria o nosso bivaque. Apelidamos o platô de “Platô das Pererecas” pela presença desses minúsculos anfíbios. É claro que isso nos rendeu boas piadas, trocadilhos a noite inteira e serviu para espantar um pouco o cansaço.
Mesmo cansado, ainda tínhamos uma missão pela frente naquele dia, tocar mais duas enfiadas para deixá-las equipadas para o dia seguinte, garantindo um adianto importante para o ataque final.
Àquela altura eu já estava um trapo. Lembro que fiquei pensando nas longas resistências que fazíamos no Calogi, entrando em 6 a 8 vias por dia para ganhar condicionamento e pensando que todo aquele esforço era para, um dia, encarar uma situação como essa. E assim busquei forças em Calogi para terminar o trabalho do dia.
Voltamos à P6 por volta das 18h, cantamos um parabéns para o Tesourinho, jantamos, contamos mais umas piadas de perereca e às 20h todos nós já estávamos num canto. O Tesourinho arrumou um canto no “oásis das pererecas” e Eric e eu montamos uma rede no diedro (uma rede para cada um!). Mesmo cansado, dormir naquele vazio, não foi muito fácil. Dormir de cadeirinha, pendurado num vão de 250m não é nada relaxante.
Por volta da meia-noite ou algo assim, acordei com pingos de chuva na minha cara! Logo, todos nós nos acordamos e começamos o corre-corre para pegar o saco de bivaque. Essa chuva não estava no script e nos pegou de surpresa. Se já estava ruim dormir de cadeirinha na rede, com chuva ainda, tudo ficou pior. Sem contar o fator pscicológico que vai nos minando com pensamentos negativos. Mas de todas as coisas, o que mais me preocupava era de que a chuva apertasse e começasse a descer água e entulho sob a nossa cabeça, pois o bivaque estava montando numa calha natural d’água.
Dicas sobre o bivaque na P6: Uma das estratégias para repetir a via seria fazer a escalada em dois dias com um bivaque na P6. Eu acho que é possível escalar a via em um dia, mas a dupla precisa estar bem alinhada e familiarizada com escalada em “agarrência” e chaminé. Caso contrário, em dois dias seria uma escalada bem tranquila. A P6 suporta até 3 pessoas: uma no chão e 2 nas redes. Há um bolt para uma das redes (outra é a parada), mas o segundo não está disponível, pois foi utilizado um bolt removível (Petzl Pulse 8mm). O platô é bem confortável e seguro, mas é preciso permanecer ancorado.
Dia 2
Por sorte, a chuva ficou só na garoa e o dia amanheceu apenas nublado, mas já sabíamos que aquelas nuvens iriam se dissipar rapidamente e que o dia seria muito quente.
Às 6h já estávamos em pé preparando um café da manhã reforçado e às 8h todos nós já tínhamos subido pelas cordas fixas até a P8 para dar continuidade à conquista.
A visão daquele ponto em diante, onde abandonamos a conquista em 2017, assolou o meu pensamento por três anos. O meu imaginário entrava em turbilhão sobre como vencer aquele trecho final que parecia um salpicado de cristais suspeitos numa parede que progressivamente ia ganhando inclinação. E o pior de tudo que, vencido esse trecho mais inclinado, parecia que para cima vinha mais coisa difícil por pelo menos uns 100m.
A escalada do dia anterior me fortaleceu de tal forma que nos próximos 100m consegui escalar em “estado de flow”, sem medo, sem me sentir cansado, apenas focado em subir rápido e de forma eficiente. Certamente o que vivenciei naqueles 100m daria para escrever um post completo só falando disso!
Após duas enfiadas bem constantes, finalmente chegamos em “águas mais calmas”, onde a pedra perdeu bastante inclinação e finalmente conseguimos ver algumas bromélias, indicando que o cume estava perto. Pela primeira vez conseguimos respirar um pouco mais aliviados e sentir que iríamos conseguir concluir a conquista.
Chegamos na P10 um pouco antes do meio-dia, muito antes do planejado. E a partir dali, a escalada fluiu com velocidade até a P12, onde finalmente achamos um platô descente, já em meio as bromélias.
Para fechar a conquista com chave de ouro, entregamos a ponta de corda para o aniversariante do final de semana para fazer as honras da casa e conquistar a última enfiada da via. Duas chapas depois e um esticão final ouvimos o Tesourinho dizendo que tinha finalizado a escalada!
Poucas vezes na vida senti tanta emoção em chegar num cume. Em geral, me considero um pouco insensível a esse tipo de prêmio, pois gosto muito mais do processo do que o fim. Mas dessa vez foi diferente!
O cume, naturalmente não era virgem, tem como subir caminhando pela aresta nordeste. E eu já estive em 2014 quando repeti a via “Nada é o que parece ser” com DuNada e Graveto. Inclusive, a ideia desta via nasceu nessa escalada, ou melhor, a durante a descida quando no lusco-fusco do final do dia vi a sombra de um grande totem.
Um pouco antes das 14h todos nós estávamos fritando no cume da Pedra Paulista. Comemos alguma coisa, bebemos muita água, escrevemos no livro de cume e começamos a pensar na longa jornada de volta. Tínhamos 13 rapéis levando para baixo uma quantidade razoável de material.
Às 18h com o último raio de luz conseguimos achar o carro. No dia anterior, demos muito mole em deixar o carro num lugar totalmente sem referência e quase que ficamos varando mato a procura do carro. Só conseguimos achar o carro porque chegamos com luz, mais 15 minutos e estaríamos até agora procurando o carro.
Por fim, mas não menos importante, faz-se necessário agradecer ao Eric por ter participado de todas as empreitadas e ter botado pilha para voltar esse ano; ao Cosme que participou ativamente da 1a e 2a investida; e ao novo parceiro do Toninho, Tesourinho que ajudou com toda logística na última empreitada fazendo o trabalho bruto.
Agora é descansar um pouco, recuperar do trauma e já ir pensando na primeira ascensão em livre. Enquanto espero os dedos cicatrizarem já estou pensando na melhor estratégia para escalar as 13 enfiadas em livre… Eta vício!
Para ler mais sobre a via, clique aqui.
Em breve (talvez daqui 3 anos) teremos um filme sobre a escalada.
Editado em 25/08/2020: Eis o vídeo!
10 respostas em “Despedida de Solteiro, investida final”
Aaah véi, quando as dores do corpo estão sumindo, vc manda esse post. Kkkkk
Obrigado Erick e Naoki pelo convite, presentão, obrigado Cosme por ceder o passe dessa seleção!
Sarah me zuou aí no comentário dela? rs
Nós que agradecemos Tesourinho, por aceitar o trabalho árduo da logística!
Obrigado Japonês por compartilhar conosco essa carta que estava na sua manga. Sempre um aprendizado escalar com você, ídolo demais!
Mais uma presente pra nossa pequena comunidade, uma via de escalada completa que vai exigir um pouquinho de cada peculiaridade da escalada em paredes. Agarrência, aderência, fenda, chaminé, psico… Não fossem as dores no corpo, já queria voltar lá! hahahaha
Valeu demais Cosme e Tesourinho, sempre bom escalar com aquela galera motivada, que é “pau pra toda obra”! Quando a parceria é boa, a escalada é boa.
Eh noix! Valeu por mais uma via! Certamente deixamos uma via irada para comunidade, sem dúvida!
Parabéns pela nova via de vcs depois dessa trilogia de perrengue! Cristais suspeitos e chaminés desgastantes explicam muito eheheh Esse presente de aniversário do Tesourinho não é la muito o estilo dele no platô das pererecas mas com certeza foi uma comemoração que ficará na memória. Muito massa!
Vlw Sarinha! Bora repetir!
Que via linda muito legal mesmo, e o relato ficou bem rico cheio de detalhes, parabéns pelo post e principalmente pela conquista.
Vlw Iury! Tomara que tenha inspirado para repetir a via!
“Grande” conquista galera, ficou incrível a linha da via!!!
Bora liberar a via!