Em 2022, quando Iury e eu estávamos conquistando a Pedra Schimitt na localidade de Montes Claros em Pancas, sempre passávamos por uma montanha que prendia a minha atenção. Um dia resolvemos encostar o carro na beira da estrada e levantar o drone para olhar mais de perto um pequeno totem. Um rápido sobrevoo logo mostrou que o totem tinha potencial para pelo menos 3 vias curtas, de uns 60m. Em Pancas, 60m não valem nada, mas se tratando de 60m com fenda é quase um veio de ouro.

A promessa de voltar lá ficou na memória e, de lá para cá, passaram quase 3 anos. Confesso que eu tinha preguiça de ir conquistar “só” 60m. Além disso, o sítio da base me parecia intimidador. Parecia que tomaríamos um fora dali.
No último final de semana, a ideia de voltar aquele totem veio à tona novamente. Fiz mais um estudo detalhado e conclui que o melhor acesso seria pela propriedade do lado, que me pareceu mais acolhedor. Então, acabei me animando mais e, mais uma vez, convidei o Iury para essa empreitada.
Chegamos à propriedade por volta das 8h da manhã, fomos recepcionados por uma senhora muito simpática. Sabe aquelas pessoas que têm uma áurea de boa energia que te contagia só de olhar? A conversa foi super agradável e logo estávamos entrando de carro pelo cafezal em direção à parede.
Pela orientação da montanha, sabíamos que a face do totem ficaria voltada para sombra à tarde, então fizemos toda aproximação sem pressa. Até porque, ao sol, o calor estava sufocante. Definitivamente, abril ainda não é uma boa época para escalar pelos lados de Pancas.
Chegamos à base do totem e ficamos maravilhados com o potencial da parede. Numa rápida olhada, vi quatro linhas naturais com potencial para vias com mais de 60m cada.

De cara, escolhemos a fenda mais fácil e óbvia. Pensamos em batizá-la de Filé Minion.
Esperamos mais um pouco até o sol dar mais uma trégua, mas por volta das 10h30 não resistimos ao chamado e comecei puxando a corda, conquistando um belo de um diedro de mão até uma árvore, onde estabeleci a P1. Chamei o Iury que, como sempre, subiu reclamando dos entalamentos. Chegou indignado na parada porque ele sabia que eu iria dar IV grau para uma fenda que ele fez força de VI.

Subimos muito leves, pois o totem parecia rápido. Levamos somente uma água, uma mochila com a furadeira e 3 jogos de móvel.
A segunda enfiada parecia mais blocosa, mas seguia vertical, o que garantiu um pouco mais de emoção. No final, alguns blocos do tamanho de uma geladeira deram uma apimentada na conquista, mas assim que achei um belo de um platô com um buraco perfeito, resolvi estabelecer a parada. Daria para tocar mais 5m direto e finalizar a conquista no cume do totem, mas o arrasto estava desconfortável e definitivamente não estava ali para passar necessidade.

Chamei o Iury que rapidamente chegou na P2. A essa altura, a parede já estava na sombra, garantindo um conforto extra para finalizar os últimos 5m.

A via poderia ter acabado nesse platô confortável, mas a laca invertida que depois virava uma laca lateral e por fim uma laca horizontal era muito convidativa. Além disso, tudo indicava que a saída seria o crux da via.
Peguei só algumas peças grandes e resolvi rapidamente o boulder da saída e entrei na sequência mais fácil. Protegi com 2 Camalot #4 e ainda tentei colocar um terceiro #4, mas a fenda alargava mais e ali só um #5 ou #6 que ficou em casa.
Sem muitas opões, toquei a laca lateral e logo ganhei a laca horizontal. Pensei em bater a parada logo na virada, mas me senti desajeitado. Resolvi ir um pouco para esquerda, num local mais amplo, para puxar a furadeira. Também já estava pensando na outra via que iria subir pela esquerda e que provavelmente iria compartilhar a mesma parada.
Dar esses dois passos para o lado ficou estranho, então resolvi descer e usar a laca como agarra de mão para fazer a travessia. Assim que peguei uma agarra atrás de uma planta e tirei a mão direita para juntar, a laca se soltou, deslocando um grande bloco. No reflexo, ainda tentei pegar numa outra laca, mas a segunda laca também saiu da minha mão e quando me dei por conta, estava totalmente fora da parede, mergulhando no vazio.


A próxima lembrança que tenho é que estava pendurado na corda com uma dor intensa na costela esquerda. Pela posição em que eu me dei conta, presumi que tivesse caído de lado, por isso a dor na costela.


O Iury estava muito assustado. Trocamos algumas palavras. Resolvi subir prussicando até um pequeno platô onde pudesse me sentar e recuperar, pois a dor na costela estava me incomodando muito.
Lembro do Iury falar com alguém pelo telefone. Parecia estar ligando para os bombeiros. Depois, ele me falou que havia ligado para o Chuck, escalador e bombeiro. Ele me perguntou também se eu estava bem e se poderia cancelar o resgate. Lembro de ter falado somente que precisava descansar. Não lembro o que ele falou.
Fiquei sentado nesse platô, de costas para a parede. Um grande bloco não me deixava me posicionar melhor, estava desconfortável. Queria jogar o bloco para baixo, mas lembrei da mochila na base.
Eu havia caído do final da laca, passado o Iury na parada e descido mais uns metros, totalizando uns 10m de queda. Como só consegui colocar duas peças logo na saída, cai quase em fator 2. Fiquei uns 5m abaixo do Iury que ficou na parada olhando para mim com os olhos esbugalhados.
Na minha mente, eu só precisava descansar um pouco para seguir com o resto, mas a essa altura uma rede de resgate já estava entrando em ação. Uma viatura do Corpo de Bombeiros de Colatina, em conjunto com uma ambulância do SAMU de Pancas já estava a caminho. O Chuck, que estava em Vitória, saiu de lá às pressas e também estava a caminho para nos ajudar. Ao mesmo tempo, a equipe do Notaer (socorro aéreo) também já estava de prontidão apenas aguardando as instruções.
Pouco tempo depois, ouvi o som da sirene e logo depois vi a viatura. Segui inerte, nada daquilo me afetava, estava muito sereno. Em geral, tenho a mente bem agitada com muitos pensamentos, mas ali estava calmo. Na verdade, eu deveria estar em choque. Em momento algum, pensei em descer, subir ou fazer alguma coisa. Nem passou pela minha cabeça ir ao encontro do Iury. Eu só queria ficar ali no desconforto do platô vendo a vida passar e esperar ficar melhor.
Assim que os bombeiros chegaram, o Iury jogou uma ponta de corda e ele puxou uma corda estática que foi fixada na nossa parada. Logo em seguida, um bombeiro subiu pela corda fixa e foi ao meu encontro. Não lembro da conversa, só lembro dele cortando a minha corda e clipando na cadeirinha dele e começar a descer com ele.
O Iury ficou para trás e desceu logo em seguida, sozinho.
Cheguei na base e reconheci mais algumas pessoas. Vi o Fabinho e mais tarde o Chuck. Fui atendida por uma enfermeira que falou que graças a mim, já tinha feito o aeróbico do dia. Achei engraçado, mas deu pena também, porque ela parecia bem cansada.
Recebi alguma coisa na veia, fui colocado na maca rígida e fui descido pela trilha até a ambulância.
Dali fui direto para o hospital São Bernardo em Colatina. De Lajinha até Colatina foi aproximadamente 1h. Lembro que estava deitado na maca, sacolejando e com bastante sede. Pedia água, mas a enfermeira não queria me dar. A dada altura, comecei a ficar enjoado devido ao movimento do carro. Achei que fosse vomitar. Fechava os olhos e sentia a gostosa sensação do remédio para dor que dava sono. Fechava os olhos, mas logo em seguida era acordado pela enfermeira que teimava em não me deixar dormir. Comecei a não gostar da enfermeira.
Dei entrada no hospital por volta das 18h30 e fiz todos os exames, uma vez comprovado que eu não tinha nada de grave, fiquei em observação até às 23h30, quando fui liberado e fomos, todos nós, para casa do Iury descansar um pouco. Para não dizer que sai ileso, além dos 7 pontos, fraturei o minguinho da mão esquerda e fiquei com hematomas pelo corpo, além de uma dor no lombar por causa da queda.
No dia seguinte, o Iury me acordou falando que a Gopro não havia registrado o momento da queda e, o pior, ela havia quebrado com o impacto.
Tirando tudo que havia acontecido, isso era o menor dos problemas.
Já na segunda-feira a noite, quando o Afeto e o Lissandro vieram me visitar em casa, fui mostrar a Gopro quebrada e descobri que, na verdade, a queda havia filmado.
Assistimos ao vídeo e fiquei mal com o que vi. A parte do áudio foi a parte mais difícil. Descobri que, após a queda, fiquei um minuto desacordado, enquanto isso, o Iury ficava me chamando incessavelmente. Depois de um minuto, recobri a consciência e fiquei mais dois minutos gemendo. Eu dava uns gemidos que parecia estar possuído. Horrível! Depois disso, o vídeo segue filmando até acabar a capacidade de gravação da máquina. Por hora, não devo publicar o vídeo devido ao áudio. Só tirei alguns frames para mostrar o ocorrido.
Também pelo vídeo descobri que a ferida no pé esquerdo foi devido à agarra que quebrou que bateu na canela. Já durante a queda, eu tento, tanto com a mão e o pé desvencilhar a corda que estava atrás do meu pé, mas a um dado momento, me enrosco na tagline e não consigo tirar o pé de trás da corda antes da corda retezar. Com isso, acabo caindo de cabeça para baixo e batendo forte de cabeça contra a pedra. Nesse momento, o meu capacete explode com o impacto e, na sequência da inércia, acabo raspando a cabeça na pedra. Isso explica a origem dos sete pontos na cabeça. Essa ferida foi uma incógnita até ver o vídeo, pois a minha cabeça não ficou com calo do impacto, graças ao capacete, mas tinha ferida grande que não sabia como fui arrumar. É claro que só consegui ver tudo isso vendo a cena frame por frame, porque isso durou menos de um segundo.

Lembro que durante o resgate, um drone sobrevoou a nossa posição, e também no transporte, vi alguém filmando alguma coisa. Assim que cheguei em casa, vi que saiu uma matéria sobre o resgate. Não dei muita bola, pois a minha cara não aparecia, mas à medida que o tempo foi passando, a notícia foi se espalhando e quando me dei por conta, o meu WhatsApp estava bombando. Tentei responder tranquilizando as pessoas, mas não dei conta e passei mais dois dois respondendo as pessoas, agradecendo as palavras e atualizando a situação. Em meio a esse caos das redes sociais, fui recomendado que não fosse ler os comentários do post que saiu nas notícias. Na primeira noite, não tive tempo para isso, mas na segunda acabei lendo. Nada de novidade, os haters de sempre falando merda, mas em meio a tudo isso, sempre achava os meus amigos brigando com os haters. Senti-me protegido e defendido. Deixei os comentários de lado com certeza de que meus amigos estavam me defendendo. Obrigado!
Por outro lado, fiquei assustado com a quantidade de pessoas mandando mensagens de solidariedade quando ficaram sabendo do ocorrido. Não sei como essa notícia chegou, mas confesso que fiquei impressionado. Respondi a todos agradecendo e tranquilizando, pois, apesar do susto, a situação estava sob controle.
Falando em agradecimentos, preciso deixar registrado meus sinceros agradecimentos ao meu parceiro de cordada Iury que passou por bons momentos de angústia, além da esposa dele que acabou sobrando também; ao Chuck que se deslocou de Vitória até Pancas (180km) em seu dia de folga para auxiliar no resgate; ao corpo de Bombeiro de Colatina; ao SAMU de Pancas; ao Fabinho que foi me ajudar; ao Alex e o John pelo apoio hospitalar e pelo resgate do carro; e a minha esposa que, mais uma vez, baixou a pressão por causa de mim!
Quando acontece algo desse tipo, sempre ficamos mais reflexivos e ficamos pensando nos erros e acertos. Por que não bati uma chapa? Por que não descemos? Será que daria para resolver sem chamar os bombeiros? Ainda sigo assimilando e tentando entender tudo que aconteceu. Quem sabe num momento mais oportuno, divagarei sobre essas reflexões, mas por hora, quis trazer apenas o meu relato pessoal do que aconteceu.
34 respostas em “Totem da Lajinha”
Ídolo!!!! Tu é o cara!!!! Só o mindinho rsrsrs numa queda dessas rsrsrs !!!!! Vibrações positivas e que sua recuperação física e espiritual seja das melhores!!!! Me sinto privilegiado e ter divido a corda com vc e algumas das escaladas mais importantes da minha vida ???? aquele abraço de cume pra vc ???? OPSMA
Grande Dani! Recuperar logo pq n posso ficar p trás! O titio so tem projetos cascas p nos!
Naoki, não o conheço pessoalmente, apenas de vista de uma das ATMs no Rio. Graças a Deus você está bem e, dos males, ocorreu o menor. A escalada é um esporte de risco, e todos nós estamos sujeitos a situações assim. Muito bacana você fazer esse relato detalhado para ajudar todos nós a entender os riscos da atividade que praticamos e para aprendermos como sair de situações assim e, eventualmente, ajudar outras pessoas que possam precisar. Boa recuperação e parabéns pelo compromisso ético com a comunidade escaladora ao mostrar que mesmo com situações adversas e indesejadas, podemos evoluir muito e aprender sempre.
Fala ae Igor, obrigado pelo pelas palavras!
passando pra deixar a vibe positiva e desejar uma boa recuperaçao japa, forte abraço!
Bora!!!! Vlwww
Isso só acontece com quem faz.
De longe acompanho algumas postagens sua e admiro muito sua dedicação e contribuição pra escalada.
É claro que sempre convem refletir sobre tudo, mas “todo pouso em que se sai andando depois, é um bom pouso”.
Nao foi bem andando que vc saiu, mas graças a Deus e a sua habilidade logo já estará pronto pea outra.
É cliche, mas o que não te mata te deixa mais forte.
Boa recuperação
Vlw Mateus! Obrigado pelas palavras! Ja ja to voltando! Mais cabeça dura d q nunca!
Passando aqui pra somar nessa corrente positiva que te cerca. Que seja uma recuperação incrível! Enquanto isso, quando quiser escalar uns lowballs pra reaclimatar, fico à disposição. ? Mas que retorne logo àquilo que te faz sentir vivo…
Grande Claudio! Obrigado pelos comentários de sempre!
Vi a reportagem sobre o que aconteceu e acabei descobrindo que ocorrido foi com você. E, apesar de não ser escaladora, eu acompanho seu blog. Fiquei feliz de saber que está bem e gostaria de parabenizá-lo pelo trabalho impecável que faz no estado do Espírito Santo. Tanto na conquista de vias de escaladas, quanto aqui na internet com a divulgação de informações de qualidade.
Obrigado Aliny! Esta na hora de começar a escalar hein?!
Muito bacana o relato, após o ocorrido fui buscar informações com os demais bombeiros que atenderam a ocorrência – inclusive com o Chuck – logo de cara foi possível perceber que se tratava de uma dupla de escaladores experientes, e que a atuação do bombeiro no local tinha sido um desafio pessoal para os militares, além disso, nós ficamos profundamente satisfeitos em saber que o nosso trabalho propiciou um atendimento adequado. Sobre o local da escalada, me parece sugestivo para um estudo de caso e para um ambiente de treinamento para capacitação em resgate técnico (não sei, talvez… vou conversar com o Chuck e ver o que ele acha disso…)
Ademais, agradecemos fortemente a confiança que vocês depositaram na nossa profissão, e gostaria de registrar para que saibam que a ocorrência foi desafiadora para nós, afinal, o que pode se esperar de uma dupla experiente e de alto rendimento? Como que fala? “O céu é o limite” para vocês?
Abraços fraternos
Capitão Peçanha – Sub-comandante do corpo de bombeiros de Colatina.
Obrigado Cap Peçanha! Transmita meus agradecimentos aos colegas de farda pelo excelente trabalho realizado. Gratidão!
Salve Naoki!
Uma plena e rápida recuperação!
E obrigado pelo relato detalhado, grande personalidade.
Abraço
Vlw Ever! Recuperação em curso!
Quando vi a matéria, o local, … eu percebi que seria com alguém conhecido e saí mandando mensagens.
A confirmação veio pelo grupo Escalada SC.
Que bom meu amigo que vc está bem!
Saiu baratíssimo!
Recupera-te e volta a DALE!
Não DESDALE que não vale a pena! 🙂
Mandei o teu relato para a Petzl.
Dale sempre! Bora q ja ja to voltando!
Baita susto Japa, que a recuperação seja o mais breve possível pra gnt poder ver você de novo nas conquistas ???
Bora Damasio! Vamos usar esses moveis novos!
Uau…. !!! Fiquei sem folego aqui. Bom demais saber que foi só um susto!! Que susto! E que relato preciso… Qualidade literária de alto nivel. Você é patrimonio da escalada capixaba. Tem que ser tombado pelo Iphan talvez até pela Academia Brasileira de Letras. kakkakakakakkaka
Hahahaahah vlw Evie! Perdi a minha vaga para Miriam Leitão ?
Logo logo você vai estar de volta e mais forte do que nunca Japa!
Assim espero, Brejaúba!
Caramba Japa, que susto! Ficamos sem entender nada por aqui, mas, o Chuck nos tranquilizou com boas notícias.
Que bom que está bem. Melhora esse dedo logo!
Oi Jana, to no time do dedo quebrado!
A Chiquinha precisa de vc vivo!!!
Kmooon Japaaa!!!!
Vlw Chuck! Te devo essa!
A vida tem dessas coisas, sempre tentando ensinar a gente alguma coisa…Que bom que está bem japa, ídolo ?
Sem duvida Afetones! Sao os ensinamentos da vida!
Japonês de aço, essa foi dura, melhorar rápido pra gente voltar a ativa.
Meu kirido! Você é um mestre em fazer as coisas certas, fica tranquilo e se recupera aí!
Volta logo! Sou teu fã sempre!
Vlw chefe! Ja ja to comendo pedra!
Aço enferrujado ?