– Pega, pega, pega! Pega Japa!
Quando ouvi os gritos do Iury eu já sabia! Era o freio dele caindo na minha direção!
Mais cedo, ele já tinha me “cantado a pedra”:
– Naoki, eu gosto de levar dois freios para parede porque tenho medo de deixá-los cair…
– Deixa disso, leva só um. Hoje não vai cair!
Quando olhei para cima, vi o freio preto picando na pedra e caindo na minha direção. Posicionei me para catar o freio e no último pique na pedra, deu uma desviada, mas ainda assim consegui fazer a defesa e salvar o freio.
O fato inusitado virou motivo de piada e conversa. E logo saiu a palavra “Gol de placa”. É claro que a minha defesa evitou o “gol”, mas o nome pegou! “Gol de Placa”, o nome da primeira via da “Pedra Esticada” em Pancas!
É claro que ninguém sabe onde fica a “Pedra Esticada“, porque só a “Lala” chama essa pedra assim. “Lala” é o nome da filha do dono das pedras por onde acessamos a montanha. Na verdade, a Pedra Esticada é bem conhecida da maioria dos escaladores mais atentos que já foram a Pancas, pois fica à esquerda da Pedra do Córrego, junto às margens da rodovia que leva à cidade.
Certamente muitos “conquistadores” já namoraram essa pedra; alguns até tentaram acessar sua base, mas ninguém de fato iniciou uma conquista até então. Sempre que fui a Pancas, também dei uma namorada nessa pedra, mas a longa aproximação sempre desanimava a investida. Imagino que outras pessoas também desistiram por causa disso, mas dessa vez eu estava decidido!
Na sexta-feira à tarde cheguei a Pancas e me encontrei o Iury no Camping Cantinho do Céu. De lá fomos direto até a base da pedra para solicitar passagem para o dia seguinte, sábado. A tarde estava insuportavelmente quente e seca para essa época do ano. Em Vitória, quando sai, o tempo já estava virando, mas a previsão do tempo indicava que o tempo iria permanecer agradável e sem chuva para sábado. E o melhor tudo, queda na temperatura. Tipo de 31 graus Celsius para 25o graus. Já é muita coisa por aqui!
No sábado, às 4h30, o despertador me fez acordar no susto. Por um instante pensei se realmente queria isso mesmo, mas assim que olhei para fora e já vi lanterna do Iury indo em direção à cozinha, tratei de espantar o pensamento sensato e tomei o café da manhã.
Às 5h30 chegamos de carro na propriedade e por volta das 5h45 iniciamos a caminhada pelo pasto. A ideia era subir até o ponto mais alto do pasto, entrar na mata e subir encarando o costão até a base da grande oposição que dá para ver de longe.
A nossa maior preocupação era o trecho da mata, pois parecia mata secundária. Em geral, esse tipo de mata é muito ruim de caminhar e demanda muito trabalho de facão para abrir a picada, mas por sorte a mata se mostrou bem agradável e não foi preciso abrir picada.
Assim que vencemos a mata, chegamos no primeiro costão. Tocamos os 60m iniciais (II) de tênis mesmo e entramos na mata novamente. Depois, pegamos um segundo costão, dessa vez mais curto, uns 20m, mas mais a pique (III). Como estávamos com tênis de aproximação conseguimos passar sem grandes dificuldades. Entramos na mata novamente e assim que caminhamos para direita, encontramos, como que num passe de mágica, o início do grande diedro em oposição.
Nem acreditei que conseguimos chegar de primeira na base. Até demos uma olhada em volta para certificar estarmos no lugar certo, pois há vários diedros no entorno.
Por volta das 6h30 iniciamos a conquista pelo diedro. É claro que a fenda do diedro não era páreo para o meu maior Camalot, o #4, mas a escalada era bem tranquila (III SUP) e não foi preciso proteger muito.
Estiquei 60m e bati uma parada dupla no final do diedro em oposição. Dali para cima, conforme nossa leitura da base, tínhamos que seguir em diagonal à direita até encontrar o segundo diedro para ganhar um grande platô. Sai esticando até a base do diedro. Dessa vez, ele era mais técnico, mas por sorte aceitava mais peças. Assim que a fenda acabou, toquei em direção ao grande platô para montar a P2.
O platô da P2 é uma mata suspensa que proporciona boa sombra e um momento de descanso. Dali para cima, a leitura dizia que tínhamos que ir segundo à direita para evitar o “headwall” final, mas logo ficou claro que a melhor opção seria pela esquerda seguindo uma linha que ia conectando fendas desconectadas até a base do headwall. Pela direita, evitaria o headwall final, mas teria que sair batendo chapa; pela esquerda dava para ir em móvel, mas a linha te levaria diretamente para o headwall.
Adotamos a estratégia “depois a gente resolve, mas antes vamos nos divertir nas fendas” e assim toquei pela esquerda caçando 3 fendas desconectada até chegar no topo de uma laca, esticando 65m de corda, no talo, para conseguir chegar no platô.
Resolvemos um problema e criamos outro. Chegamos na base do headwall e como de se esperar, as fendas acabaram. Sabíamos que o trecho era relativamente curto e como tinha bastante vegetação sabíamos que teria agarras, então resolvemos traçar uma linha reta para cima para sair quanto antes disso. “A distância mais curta entre dois pontos é uma subida íngreme!” Lei de Murphy!
Na saída ainda consegui usar um Camalot #4, mas depois tive que bater 8 chapas para vencer os 60m. Embora a conquista tenha sido trabalhosa, a enfiada ficou muito legal com bons lances técnicos de leitura. Acho que essa enfiada deve dar um VI/VI SUP.
Dessa vez não consegui esticar a corda até o próximo platô e tive que bater a parada num lugar desconfortável, mas estávamos felizes, porque o pior passou e parecia que com mais uma esticada de corda bateríamos no cume. Na saída da última enfiada ainda peguei um “veneninho”, mas logo depois a pedra perdeu bastante inclinação e toquei até o cume.
Chegamos no cume por volta das 11h da manhã. Graças as fendas do trecho inicial conseguimos escalar muito rápido e em menos de 6h estávamos no cume após 280m de escalada.
Sempre sou suspeito para falar da própria via, mas essa ficou muito legal, principalmente por usar material móvel em terreno fácil. O trecho com chapas também ficou muito legal por ser num trecho mais vertical em agarras. Com certeza será uma excelente opção para quem estiver um pouco cansando do mesmo estilo de escalada da região. A única ressalva sobre a via é em relação à navegação, tanto na aproximação quanto na escalada.
Voltamos ao camping com uma melancia embaixo do braço e encontramos o Geison e o Zé Luiz para compartilhar a conquista. Eles vieram de Vitória e estavam planejando escalar no Morro do Camelo no dia seguinte.
Quanto a nós, como o “plano A” acabou levando menos tempo do que o planejado, ficamos pensando numa “sarna” para o dia seguinte.
Lembrei que recentemente o Pedro Bugim e a Luara estavam por esses lados conquistando várias vias e resolvi dar uma olhada nas novidades. Logo descobri que eles conquistaram uma via no lado esquerdo da Pedra do Jacaré, abrindo uma linha de 250m com dificuldade máxima de 7b e uma passada de A0.
Pronto! Agora tinha que convencer o Iury de que depois de um dia de conquista, um 7b de parede seria a melhor escolha para o dia seguinte.
No dia seguinte o ritual matutino foi o mesmo, mas dessa vez acordamos sem pressa, pois seria, teoricamente, um via mais leve. Aliás, para essa via adotamos a estratégia fast and light. Subimos com uma corda e um tagline, nada de tênis na cadeirinha, nem mochila, nem lanche. A água, uma garrafa de 750mL para nós dois e mais nada. Tudo para ganhar tempo e velocidade, até porque olhando a pedra e o croqui parecia que o negócio era para cima e avante!
As 3 primeiras enfiadas são bem de boa, bom para aquecer. A 4a é um VI SUP (no croqui está 7a) quase vertical com várias passadas em agarras pequenas! Estilo Calogi em agarras estilo Pancas! Linda de morrer!
A 5a enfiada é teoricamente o crux da via, com uma saída em A0, segundo a proposta inicial dos conquistadores. Conseguimos “mepar” o A0 e acho que 7a seja um grau justo para enfiada, que por sinal é bem legal também.
A última enfiada tem uma saída estranha, mas depois é só um protocolo para chegar no cume.
Batemos no cume perto do meio-dia e em menos de 1h depois estávamos na base da via arrumando as coisas para o retorno.
Como a via foi conquistada recentemente, a trilha de acesso ainda estava bem demarcada (o acesso será um crux no futuro), inclusive os furos ainda estavam com aquele pó da furadeira.
Para mim, de todas as vias que eu já fiz em Pancas essa é uma das melhores. A verticalidade da 4a e 5a enfiada é inacreditável. O Pedro teve muita sagacidade em ver a linha e conquistar essas duas enfiadas. Parabéns ao casal pelo presente que deixaram para comunidade!
Por fim, preciso agradecer ao Iury pela parceria do final de semana. Sei que no final ele já estava bem cansando da escalada. Para quem não sabe, ele começou a escalar recentemente e continua conhecendo o caminho das pedras. Sei que as duas vias foram acima do seu limite, mas acho que no final, entre dores e machucados, prevalecerão as boas lembranças. Até porque “mar calmo não faz marinheiro!
2 respostas em “Gol de placa”
Caramba!!! Vocês não imaginam a minha felicidade em ler este texto! Primeiramente, parabéns pela conquista na Pedra Esticada!!! De fato, váááárias vezes fiquei de olho por lá, mas sempre deixando pra depois. Uma bela parede e que merecia uma via. Já a repetição da “Cavalo Velho”, ainda mais com tantos elogios, me enche de energia para continuar brindando nossas montanhas com mais vias. Agradeço DEMAIS a confirmação das graduações! A conquista foi dura… principalmente pelas MUITAS horas batendo facão para chegar à base (vocês viram o drama! rs…), além de termos pego dois dias de sol intenso. Une-se a isso o peso do equipo…. daí, a complexidade de passar no lance do crux, com as energias lá embaixo. Mas fico bem feliz em ver que o lance foi feito em livre e que a graduação é bem razoável, ainda mais, com as proteções bem justas. Parabéns novamente à dupla e MUITO OBRIGADO!
Pra mim foi surreal esse final de semana, alguns momentos pensei em inventar qualquer desculpa pra desistir kkk afinal tinha varias delas (pouparei vcs), mas a determinação do Japonês é contagiante e é claro a maior parte do trabalho vinha dele, de qualquer forma pra mim foi uma grande superação, eu sou muito grato por essa oportunidade.