Neste post, falo sobre o acidente que sofri semanas atrás escalando. Lá, tentei fazer um relato cronológico dos acontecimentos de uma forma imparcial, apresentando somente os fatos. Agora que já se passaram alguns dias e consegui processar com mais calma os últimos acontecimentos, sinto-me mais à vontade para escrever de forma mais crítica.
Sempre acho que podemos aprender com os erros e acertos dos outros, assim como dos próprios erros. Por isso, sempre que consigo, leio e estudo acidentes de escalada para melhorar a minha escalada. Então, nada mais justo do que, agora que fui o protagonista, aprender com os próprios erros e disseminar as lições aprendidas.
Se você caiu de paraquedas aqui, recomendo que leia o relato antes para entender os fatos.
Todo acidente é resultado de uma sucessão de erros. Não existe um único motivo. O que existe é um fato catalisador que leva ao evento final.
Pensando desta forma e na cronologia dos fatos, vejo que outro aspecto inerente ao esporte teve papel relevante: a assumpção ao risco. Na escalada, constantemente ponderamos risco versus prêmio. Durante a escalada, toda hora precisamos tomar essa decisão e às vezes precisamos fazer isso sob condições adversas e sem muito tempo para pensar. Por isso, sempre é muito fácil julgar certas ações sentado no conforto do lar sem ter a pressão do momento.
Dito isso, lembro que o primeiro “erro” foi na avaliação de risco diante de um perigo contornável.
Assim que comecei a guiar a 3a enfiada, coloquei dois Camalot #4 na sequência. O segundo coloquei em redundância. Tínhamos 3 Camalot na ocasião. A ideia era colocar um terceiro logo acima, mas assim que cheguei no ponto de colocação, eu vi que o #4 não entraria, teria que ser um #5 ou #6. Até tentei colocar o #4 no fundo, mas não travou e acabei tirando. Pensei em bater uma chapa, mas a posição não estava boa. Olhei para cima e vi que o lance era fácil com boas agarras na laca. Lembro que suspirei e toquei para cima. Ali era um daqueles pontos críticos onde precisávamos decidir rapidamente. Poderia ter desistido ali porque o lance era longo; poderia ter batido uma chapa; deveria ter levado as peças grandes (tenho 2x #5 e 2x #6), mas as deixei em casa.
Pensando agora com mais calma, ainda acho que tomei a decisão mais plausível naquele momento, principalmente porque o lance era fácil e não parecia oferecer risco de queda em platô, bico de pedra ou árvore. Sobre a possibilidade de bater uma chapa, acho que teria que ser um lance muito extremo com alto potencial em caso de queda para ter batido uma chapa no lado de uma fenda e definitivamente ali não era o caso. E o fato de ter uma fenda afastou essa possibilidade sem pestanejar muito.
O mecanismo catalisador que levou a minha queda foi a ruptura da agarra de mão. Sabemos que agarras quebram e nas conquistas esse potencial aumenta significativamente. O ideal é sempre checar as agarras antes de usá-las. Quando peguei na agarra em questão, não fiz nenhum teste de força, pois considerei visivelmente firme. Confesso que não tenho muito costume de tracionar agarras antes de colocar o peso. Na verdade, é bem comum eu usar agarras soltas e duvidosas, usando de apoio ou até mesmo tracionando para o lado oposto. Confesso que vejo uma certa beleza em escalar terrenos instáveis. Ao longo da via, peguei várias agarras duvidosas, inclusive passei por um lance super delicado em bloco, então quando vi aquela laca, considerando as anteriores, me pareceu muito sólida.
Outro ponto onde vejo um erro foi no gerenciamento da corda. Na queda, tomo uma rasteira e caio de cabeça para baixo, batendo a cabeça com força. Lembro claramente que eu havia mapeado esse risco, no próprio vídeo dá para notar que olho e mexo na corda para saber como ela está. Como fiz uma passagem para direita e depois para esquerda, eu tinha que gerenciar a corda para ela ficar na posição correta entre uma passagem e outra. Estava tão consciente da situação que, durante a queda, ainda tento arrumar a corda com os pés e a mão, mas não consegui me desvencilhar a tempo. Se a queda fosse mais longa, talvez tivesse mais tempo para vencer a corda.
Quedas grandes colocam em jogo uma quantidade de corda muito grande que às vezes é difícil gerenciar numa fração de segundos. Tentei controlar isso, mas não consegui fazer em tempo hábil. No vídeo, ainda dá para ver que a tagline se enrosca na minha corda. Aparentemente, ela tirou um pouco o movimento da corda, ajudando a enroscar mais ainda.
Na queda, virei de cabeça para baixo e bati a cabeça com força, explodindo o capacete. Muitas pessoas comentaram esse fato e questionaram a durabilidade e eficiência do capacete. O capacete em questão era um Sirocco da Petzl, versão 2017. Acho que o comprei em 2012 quando quebrei o antigo da Black Diamond durante o transporte. Não despache esse tipo de capacete na bagagem!
É importante salientar que esses e outros capacetes de EPP/EPS são projetados para quebrar sob alto impacto, ajudando a dissipar a energia. Eles usam o mesmo princípio dos capacetes de ciclismo. Então, não há nada de errado em ele ter quebrado. Antes o capacete do que a minha cabeça.
Outro aspecto positivo desse capacete que salvou o meu melão é que ele é homologado para impactos laterais. Em geral, os capacetes mais baratos e de plástico com fitas são homologados somente para impacto superior (queda de objetos, por exemplo). Na minha queda, o impacto maior foi na parte posterior do capacete, com base na explosão do capacete. Se estivesse usando um capacete mais simples, provavelmente teria um TCE TCF bem maior.
Após a queda, foi dado início ao processo de resgate. Acho que não cabe a mim julgar o trabalho dos socorristas, então vou me ater a analisar os fatos até a chegada do socorro.
A primeira pergunta seria se deveríamos ter chamado o socorro. Após a queda, em menos de 3 minutos, ainda comigo convulsionando, o Iury chamou os bombeiros. O fato de ter levado celular e ter sinal foi crucial nesse momento. Sempre que escalamos, fazemos questão de levar um celular parede a cima. Caso a região seja muito remota, levamos um rastreador satelital parede acima. Um fato importante que observei só depois foi sempre deixar o celular com o segundo. Se eu estivesse levando, poderia ter quebrado com a queda e/ou o participante não teria acesso fácil ao meu aparelho para pedir socorro. O ideal seria ter dois por redundância, mas ali não parecia oferecer riscos.
Em 2023 fiz um curso da WMA e lá foi bastante enfatizado sobre quando chamar ou não socorro. Aprendi que não existe uma receita de bolo para isso. A urgência sempre será proporcional ao risco de vida e o difícil sempre será avaliar esse risco. Às vezes, uma hemorragia interna nem sempre é bandeirosa quanto uma fratura exposta. No caso de um TCF, o grau de urgência aumenta significativamente, então acho que essa decisão foi bastante coerente e pertinente. Tive ferimento na cabeça com sangramento e desmaio seguido de convulsão.
Outro aspecto que às vezes não consideramos é o transporte da vítima da base até o veículo. Baixar 50m uma vítima na corda é tecnicamente complexo, mas requer pouco esforço físico porque trabalhamos a favor da gravidade, mas uma vez no chão, transportar uma pessoa mata adentro num terreno difícil requer muito esforço, pessoas e por vezes equipamento adequado. E nessas horas, ter um grande efetivo de pessoas ajuda a agilizar o deslocamento. No meu caso, estava com muitas dores na cintura e costela com dificuldade para ficar em pé. Então, uma vez no solo, precisaria de ajuda para me deslocar até o veículo. Com o resgate, fui colocado na maca rígida e fui transportado confortavelmente até o carro. Outro ponto positivo foi que fui medicado já na base. Tomei analgesia, o que permitiu eu descer sem sentir dor mesmo com os solavancos.
Outro ponto de questionamento seria descer ou não até a base para esperar o socorro. Lembro que discutimos isso na hora. Recordo que pedi ao Iury um tempo para me recompor para descer. Só que o meu recompor levou tempo suficiente para a ajuda chegar.
Caso o socorro demorasse mais, poderíamos ter adiantado essa parte. Eu poderia ser descido do jeito que estava até a base, pois teríamos corda para isso. Outra opção seria eu descer assistido com Iury, mas aí teríamos mais alguns fatores complicadores. Tanto eu quanto o Iury fizemos o PAARE com o Nativo, mas o fato que mais pesa nessas horas é a falta de prática. Fiz uma reciclagem recentemente, mas devido à pancada não estava em condições de liderar a manobra.
Entendo que, não havendo urgência, esperar a ajuda externa seria a melhor opção por oferecer mais recursos e condições para uma descida mais segura.
Para mim, uma das coisas que não tinha levado em consideração e me afetou bastante foi o fato de ter batido a cabeça e isso ter afetado minha capacidade cognitiva, deixando muitas responsabilidades ao Iury que por sinal se virou bem com uma abordagem bastante conservadora, sem precisar expor ninguém a riscos secundários e sairmos de lá ilesos.
Em linhas gerais, essas foram as reflexões que fiz após o acidente. Sigo me recuperando, principalmente, de uma lesão do dedo, mas logo estarei de volta às escaladas para o desespero e preocupação da minha esposa!
6 respostas em “Dedo na ferida”
Boa reflexão Naoki!
O mais importante de um relato como o seu é a análise dos fatos de forma objetiva para que todos possam aprender com o evento, e não com a intenção de apontar erros. Há muitos aprendizados que podem ser extraídos do seu relato, outros acidentes deveriam ser analisados da mesma maneira.
Bom saber que você está se recuperando e não sofreu grandes lesões. Com uma queda como a sua, havia um grande potencial para problemas mais sérios.
Parabéns por se colocar neste difícil lugar e expor o ocorrido.
Espero que você esteja totalmente recuperado e de volta à ativa em breve!
Oi Chu! Obrigado pelos ensinamentos! Lembrei, na medida do possível, daquelas aulas na pracinha.
Só cresce a admiração por vc, e agradeço demais as oportunidades que tenho de escalar junto. Obrigado por ser essa pessoa incrível e divulgar com a gente tanto conhecimento e paixão pela escalada.
Vlw Iury! Vlw a paciência de sempre!
Parabéns pela análise objetiva, cheia de reflexões importantes e até observações que poderiam ser tomadas como diretrizes para situações similares e escolha de equipamentos. Todos estamos muito aliviados e muito felizes com seu bem-estar! Já passou. Importante o que podemos aprender com isso e muito sucesso nas novas conquistas!
Vlw Sarinha! Sempre é importante compartilhar conhecimento e experiência!