Stigmatodon

Há quase um mês, quando estive em Pancas pela última vez e escalei a via Canaleta Joinvile, no Morro do Camelo, notei que entre ela e a via Supercanaleta, havia um trecho de parede sem vias. Como esse pedaço é mais vertical e com bastante vegetação, o pessoal acabou deixando de lado e meio que caiu no esquecimento, assim acho, pelo menos.

No último final de semana resolvi voltar a Pancas para dar uma conferida mais de perto essa possibilidade e quem sabe conquistar uma via em solitária.

Pedra da Agulha em Pancas.

Cheguei no sítio do Fabinho sábado à tarde, de olho na sombra da tarde. Como a previsão previa um dia quente, quis fazer o porteio e conquistar pelo menos uma enfiada no final do dia para pegar uma condição mais favorável.

Plantas.

A viagem foi bem cansativa, mas às 14h já estava no camping e às 15h na base do Morro do Camelo procurando uma linha no meio daquela parede de granito intimidadora.

Amanhecer em Pancas.
Papagaio verde.

Visualizei três possibilidades entre as duas vias: uma perto da Supercanaleta, mas essa descartei de início pela proximidade com a mesma; outra mais para os lados da Canaleta Joinvile, mas achei a parede muito quebrada com muitos platôs; no fim, acabei indo pela linha do meio, por uma brecha de rocha desprovida de vegetação.

Pela inclinação da rocha, presumi que a saída seria o crux da via, então fui preparado para sofrer. Tinha mais de duas horas de luz para resolver essa pendência, então subi sem pressa. Mas logo a escalada se mostrou mais tranquila do que o esperado graças aos sucessivos buracos que foram surgindo na sequência. Assim, em menos de 1h consegui esticar 55m de corda até um local razoável onde estabeleci a P1. Aproveitei o restinho de luz para subir todo material até a P1 e desci com a enfiada fixada para o dia seguinte.

Separando o material na base.
Máxima concentração para me equipar corretamente.
Iniciando a conquista.

A noite no camping foi caótica. O Fabinho já tinha me avisado que seria barulhento. O ideal seria nem ir, mas a vontade de escalar foi maior. Às 4h da madrugada, começou a verter gente por todos lados para um rapel comercial que iria ter na Pedra da Boca e o Camping seria o ponto de encontro dessa galera.

Não preciso nem dizer que às 4h 30 eu já estava em pé por falta de opção e às 5h já estava na trilha a luz das lanternas para fugir daquela bagunça sem fim. Depois falam que os escaladores não gostam dos rapeleiros e não sabem o porquê…

Cheguei na base da via e com as primeiras luzes da manhã e logo subi pela corda fixa até a P1 escutando os rapeleiros gritando para fazer a trilha. Muito insano!

A segunda enfiada começava num trecho ainda vertical e depois parecia perder inclinação. Passado o lance inicial, a enfiada fluiu bem e estabeleci rapidamente a P2 onde a corda esticou.

Iniciando a segunda enfiada.

A terceira enfiada parecia ser o crux da via. Ao final do rampão a parede ganhava inclinação e dessa vez, parecia que não teria os buracos salvadores. De fato, peguei uma sequência bem trabalhosa nesse trecho mais inclinado. Quando se está em solitária, a gente não tem direito a alguns luxos, como voltar o lance com uma queda controlada. Então tinha que subir de forma muito controlada e calculada porque não tinha volta.

Estudando a enfiada seguinte.

A 4a enfiada parecia igualmente intimidadora, principalmente no trecho final. Pensei em algumas alternativas para fugir do lance mais inclinado. Eu já estava sentido o cansaço da noite mal dormida e o esforço da terceira enfiada. Além disso, o sol estava começando a castigar lentamente e tudo começou a ficar mais desafiadora.

Outra questão que me preocupava era o quantitativo de chapas e bateria. Estava com 3 baterias mais 60 chapeletas. Teoricamente daria com certa folga, mas comecei a ficar preocupado.

A 4a enfiada saiu com certa facilidade, principalmente depois que achei um belo veio de quartzo com agarras. Esse trecho deu um bom adianto no trecho inclinado.

Indo para 4a enfiada.

Da P4, já dava para sentir o que o cume estava logo alí. As stigmatodon tinham sumido indicando que a pedra perderia inclinação e pelos meus calculos, faltava pouco para o cume. Depois explico o stigmatodon.

A 5a enfiada foi só um protocolo e por volta de meio-dia e trinta estava pisando no cume do Morro do Camelo.

Cume!

A essa altura, o sol estava fritando, então sai correndo para baixo de uns arbustos para me abrigar. 

Fiquei ali 15 minutos cronometrados, mas foi o suficiente para beber uma água e ainda conseguir dormir um pouco.

Descanso na sombra.

Iniciei a descida pela via Supercanaleta levando todo peso no haulbag. Eu tinha rapelado por essa via há um mês e notei que as paradas estavam bem ruins. Então nesse meio tempo, conversei com os conquistadores do Rio e solicitei para que eu pudesse substituir as malhas por chapeletas de argola, facilitando a recuperação e diminuindo o atrito. Com isso, a descida acabou demorando um pouco mais, mas pelo menos consegui melhorar 4 das 5 paradas de rapel. Somente a P1 ficou sem a argola porque a chapeleta estava girando e não tinha como desrosquear. Então só dei uma melhorada acrescentando uma malha extra.

Considerando as vias que escalei no Morro do Camelo, acho que essa ficou uma via mais variada em termos de estilo. Além disso, tem um pouco de navegação, pois às vezes não tem como ver a próxima proteção da anterior.

Sobre o nome da via, batizei de Stigmatodon por causa dessas bromélias que tem ao longo da parede. Essas bromélias, endêmicas do Brasil,  tem a particularidade de ocorrer somente onde a superfície rochosa é mais inclinada. Aprendi isso com a Fabiula durante uma palestra que ela deu no último encontro de escalada em Pancas.

Stigmatodon.

Por fim, preciso deixar meus agradecimentos ao Fabinho pelo apoio logístico de sempre. E também as escaladoras do Rio por compartilhar bons momentos de conversa durante a janta comunitária.

Amanhecer em Pancas.

Isso fez me lembrar como os montanhistas de verdade se diferem de escaladores normais e pessoas comuns. Na montanha, aprendemos a ajudar os outros sem esperar nada em troca e a dividir as coisas pelo bem comum vivendo dentro do mesmo espaço em comunidade.

Tucano.

 

Comentários

Uma resposta em “Stigmatodon”

Que legal! vamos entrar nessa na próxima visita ao querido Fabinho! 🙂 e adorei saber o nome dessa bromélia sempre presente nas paredes!

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