A palavra Alpinismo surgiu na região dos Alpes onde “nasceu” o esporte de subir montanhas de forma recreativa, em 1786, com a escalada do Mont Blanc (4807m). O termo vem de Alpes + ismo, sufixo grego que exprime ideia de esporte. Logo, ao pé da letra, alpinismo significa “esporte nos Alpes”. No entanto, o termo é amplamente usado de forma errônea para escaladas fora da cadeia dos Alpes. Inclusive inventaram um termo chamado “Alpinismo Industrial” que é o pior de todos.
O termo correto e genérico para o “esporte de subir montanha” seria simplesmente “montanhismo” (montanha + ismo) e a palavra Alpinismo ficaria restrita somente quando o esporte é praticado nos Alpes. Nessa linha surgiram também os termos como Andinismo (nos Andes), o Himalaismo (Himalaia) e o Marumbinismo (Marumbi), mas estes termos não caíram muito no gosto do povo e atualmente prevalece muito o termo genérico “montanhismo”.
O fato é que se você é um “montanhista”, não quer dizer que você seja também um “alpinista”. Para um montanhista poder se auto-intitular Alpinista você precisa escalar nos Alpes para ganhar esse “título”.
Dia zero
E assim começou a saga alpinística de dois montanhistas Brazucas em busca do título de “os Alpinistas”!
Saímos do Brasil, eu e o Murilo, brother de Red River e Yosemite, rumo a cidade francesa de Chamonix, berço do alpinismo!
Após 30 horas de viagem, entre voos, conexões e viagem de carro, finalmente chegamos a famosa e charmosa cidade de Chamonix!
Túnel de 14km que cruza os Alpes!
Em Chamonix, nos acomodamos num camping chamado Les Arolles que fica bem pertinho do centro da cidade. E assim que nos instalamos, logo fomos checar a previsão do tempo para a semana. Quando se escala nessa região, quem define o que você vai fazer (ou não) é o clima, não adianta fazer milhares de planos porque quem manda lá é o “Saint Pietro”.
O camping Les Arolles fica bem pertinho do centro da cidade. Dá para ir a pé sem problema. Além disso, também fica perto da estação Aguille du Midi. Tem toda a infra necessária com banheiro, chuveiro quente, lavado, internet e um pequeno abrigo para cozinhar. O único inconveniente é que ele fica perto de uma rodovia movimentada e o barulho dos carros e caminhões contrasta um pouco com o espírito do lugar.
Primeiro dia
Segundo a meteorologia, para os primeiros dois dias o tempo estaria bom e no terceiro dia, a previsão indicava uma virada brusca, inclusive com possibilidade de neve.
Assim, resolvemos fazer a primeira de uma série de planos alternativos que iriam nos acompanhar a trip inteira. Decidimos suspender o dia de descanso do dia seguinte e partir logo para montanha, a fim de aproveitar ao máximo a janela.
No dia seguinte resolvemos todos os problemas “burocráticos” pela manhã. Fizemos um pequeno rancho, alugamos alguns equipamentos (piolet´s e crampons) e compramos mais alguns equipos que estavam faltando.
As lojas de escalada normalmente possuem uma seção específica para locação de equipamentos. Você pode alugar praticamente tudo, basta ter dinheiro no bolso. Para locações mais longas, vale a pena comprar os equipos.
Centro de Chamonix.
Centro de Chamonix.
Por volta do meio-dia estávamos pronto para a nossa primeira experiência “alpinística”.
Teoricamente, meio-dia é muito tarde para fazer qualquer nos Alpes, mas mesmo assim partimos ao estilo “vamos ver no que vai dar”. Pegamos o famoso lift da Aiguille du Midi que leva de 1035m (Chamonix) ao cume da agulha (3842m) em menos de 20 minutos!!!! É como você entrar numa máquina de tele-transporte que te leva de um lugar quente e agradável para um freezer inóspito e rarefeito.
Portal para o frio!
O primeiro impacto ao chegar no cume não é nem “o que estou fazendo aqui?”, mas sim “o que vou fazer agora?” e “o que não devo fazer?” Passado o choque inicial, analisamos as possibilidades e pelo pouco tempo que tínhamos daria para fazer a clássica “Arête des Cosmiques” que é basicamente uma grande travessia pela aresta da montanha em terreno misto (gelo/neve e rocha). Um bom começo para quem não está muito familiarizado com piquetas e crampons e quer ser “alpinista”.
Tecnicamente, a travessia não é muito difícil, algo como 4o grau, AD (assez difficile -fairly difficult) e um ganho de elevação de aproximadamente 300m.
Croqui da “Arête des Cosmiques“. O lift te deixa no cume da agulha, ai você desce caminhando, cruza o campo de gelo até o abrigo Simond e começa a travessia até retornar novamente ao lift.
O problema é que começamos a travessia por volta das 14h40 e o último lift para Chamonix sai às 17h. Ou seja, tínhamos apenas 2h20 fazer a via, ou ficaríamos presos no cume…
Por isso, mandamos ver na travessia. Por conta o tempo apertado tivemos que escalar toda a via em ritmo ininterrupto e ainda por cima ir se virando com os crampons e a piqueta na rocha e na neve. Tudo isso a 3800m…
Conseguimos fechar a travessia em 2h 10! Chegamos no lift por volta das 16h50 e conseguimos descer para Chamonix para dormir no “conforto” dos 10 graus célsius de temperatura!
Tirando a dor de cabeça e a respiração fora de ritmo foi uma experiência incrível. Foi uma ótima oportunidade para colocar em prática várias técnicas clássicas do alpinismo tradicional e aprender inúmeras outras técnicas que auxiliam a escalada nesse tipo de terreno.
Segundo dia
No dia seguinte, acordamos muito entusiasmados com a possibilidade de voltar novamente à Aiguille du Midi.
Assim que chegamos na estação: mais um imprevisto. O segundo trecho do lift estava fechado por causa dos fortes ventos. Era a tempestade prometida para o dia seguinte começando a mostrar sua cara.
O lift que leva ao cume da Aiguille du Midi é uma das principais atrações turísticas de Chamonix. Alpinistas e turistas normais compartilham o mesmo lift. Por isso, durante a alta temporada, o ideal é chegar cedo para evitar as longas filas. Além disso, uma boa dica é comprar os tickets antecipadamente para evitar duas filas (uma para comprar e outra para embarcar).
Nosso meio de transporte. Teletransportador!
Mais uma vez tivemos que partir para um plano B. Estudamos rapidamente as possibilidades e decidimos subir até um lugar chamado Plan de l’Aiguille (2,317m), a meio caminho do cume da Aiguille du Midi, para tentar escalar uma via chamada Le Ticket, Le Carre, Le Rond et Le Lune’, na Aiguille du Peigne. Como não tínhamos estudado bem essa via, chegamos meio capenga de informação. O problema é que as montanhas dos Alpes são gigantescas, você facilmente vê uma montanha com mais de 1500m a sua frente e você perde toda noção de escala. A via que pretendíamos escalar tinha “apenas” 300m, ou seja, era um pequeno risco num mar infinito de granito.
Obviamente não conseguimos nos orientar corretamente e acabamos indo para direção errada. E quando finalmente, após 1h de caminhada, descobrimos a linha da via, descobrimos que teríamos que pegar “um atalho” (mais 1h de caminhada), solar uns 300m para finalmente chegar na base da via. Toda essa perda de noção espacial nos custou mais de 3h de caminhada, somando ao fato de termos saído mais tarde por causa do plano B e considerando a hora do último lift (17h40), concluímos que seria muito arriscado entrar na via.
Assim, resolvemos partir para um plano C! Em vez de entrar numa via tão dura (6o SUP), optamos por uma linha mais fácil. Uma travessia chamada Papillons Arete (5o SUP, 250m) na Aiguille du Peigne, conquistada em 1909. De longe, a linha parecia bem fácil; Parecia que daria para escalar toda ela à Francesa; Mas só parecia… Porque assim que chegamos na base da via descobrimos que não teria como escalar à francesa e que a escalada era muito mais exposta do que parecia de longe. Tivemos que abrir mão da “francesa” e fomos escalando normalmente até pegar um trânsito. Logo, acabamos perdendo o nosso ritmo por causa da dupla à frente e em seguido, do nada, o tempo começou a virar. Uma densa névoa tomou conta do vale e a nossa visibilidade caiu para uns 30m. Na hora, não dei muita bola porque ainda dava para ver a linha da via, mas quando olhei para baixo notei que não era possível ver a trilha!!! Nessa hora fiquei bem preocupado, pois a descida não seria pelo mesmo caminho da subida e nessas condições não iríamos achar o caminho de volta para o lift. Como estávamos num beco sem saída tivemos que seguir lentamente a escalada.
Murilo na travessia da via Papillons Arete, Aiguille du Peigne e o tempo se armando.
Por volta das 15h chegamos num ponto de fuga descrito no croqui. Estávamos exatamente na metade da travessia. Como o tempo não estava muito amistoso e a dupla da frente não deslanchava, resolvemos abortar a escalada e bater em retirada antes que as coisas ficassem pretas para nós.
Nós usamos um guia chamado Selected Climbs: Mount Blanc & The Aiguilles Rouges de Jean-Louis Laroche & Florence Lelong, em inglês. É um bom quebra galho com as principais vias da região. O único problema é que as descrições são muito sucintas e sempre fica faltando um algo a mais.
Nesta hora, a névoa deu uma pequena trégua e tivemos a real noção do que seria a descida. E as perspectivas não eram nada animadoras… A linha de rapel seguia por uma canaleta até a borda de um glaciar para em seguida pegar uma trilha até o lift.
Saímos desescalando o primeiro trecho até encontrar um ponto de rapel. Esse ponto de rapel era horrível. Um bloco encravado no chão com uns cordeletes velhos! Naquela hora comecei a lembrar de todas as histórias de acidente em rapel e vi como aquilo poderia ser real. Estiquei o primeiro rapel e uns 30m abaixo encontrei uma outra “parada”. Nessa parada, o segundo piton tinha quebrado e estava solto na fita. Alguém fez um backup com um nut para reforçar o outro piton que ainda estava “bom”. Não pensei duas vezes, resolvi pular essa parada e tentar buscar uma coisa melhor mais abaixo, já que estávamos com duas cordas de 70m.
Mais abaixo, outro bloco estranho com vários cordeletes velhos. Reforcei a “parada” com um cordelete novo e seguimos parede abaixo. E assim fomos, de rapel em rapel, até chegar ao fundo do vale. Rapelamos uns 300m em 1h e conseguimos chegar com certa folga no lift.
Ponto de rapel. Esse estava bom!
Terceiro dia
Conforme a previsão do tempo, na quarta-feira o tempo amanheceu ruim. Alívio por poder descansar um pouco e ansiedade por não saber o impacto desta frente fria nas vias.
Sol e chuva no camping. Só os fortes (sem grana) acampados!
Quarto dia
Para o dia seguinte, a previsão era bem animadora. Sol e frio! Mais uma vez acordamos cedo para pegar o primeiro lift e rumar para o topo da Aiguille du Midi.
Assim que saímos da barraca, algo estava diferente! As montanhas que nos dias anteriores eram cinza agora estavam brancas!!!! Tinha nevado acima de 1500m de altitude e tudo estava branco!!
Mesmo assim arrumamos as coisas e partimos para o lift. Chegando lá, mais uma surpresinha: a temperatura no cume da agulha era de -5 graus com sensação térmica de -10!!!! E mais, tinha 40cm de neve no cume!!!
Como nós não tínhamos muita noção do que era isso, subimos. Até porque não tínhamos muita escolha. Era subir ou desmontar as barracas e partir para Suíça.
Dessa vez, quando desci do lift eu pensei: o que estou fazendo aqui! Estava enfrentando o dia mais frio da minha vida e ainda tinha a pretensão de escalar! Onde estou com a cabeça??? Acho a nossa capacidade de raciocínio congelou!
É claro que, para nós brasileiros, da terra do calor, aquilo não era o nosso chão. Abortamos a escalada e resolvemos apenas dar um rolê pelo campo de gelo para curtir a paisagem.
Rolê para curtir a vista da Aiguille du Midi.
Dando uma volta a menos 10 graus de temperatura. Não parece, mas estava muito frio!
Selfe dos pés.
Por causa da neve fresca que poderia esconder facilmente as temidas gretas, não inventamos moda e apenas demos um rolê comportado até não aguentarmos mais o frio.
Saímos de Chamonix com a certeza de que ser “alpinista” não era fácil e que nós ainda teríamos uma longa curva de aprendizado pela frente se quiséssemos nos auto-intitular “alpinista”! Por enquanto, ainda somos apenas humildes “montanhistas”!
2 respostas em “Alpes 2015 – Chamonix, alpinista por três dias (Parte 1 de 4)”
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[…] palavra Arenales voltou novamente à minha mente no final do ano passado após voltar da Europa. Dois mil e dezesseis prometia ser um ano difícil para o país, a economia não ia bem, o câmbio […]