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A força da mente

^ Sandro Souza trabalhando a via “Inconsciente  Coletivo” (8o) – Santa Joana, Itaguaçu.

Eu tenho muitas teorias sobre escalada e uma delas diz que “o que define se você vai mandar uma via, ou não, não é o tamanho do ante-braço, mas sim a força da mente”. E no último sábado pude colocar novamente em xeque essa teoria e ver como ela é poderosa.

No ano passado, Sandro, Zé, Gillan, Amaral e eu fomos a Santa Joana, um distrito da cidade de Itaguaçu (160km de Vitória) para conhecer um famoso setor de escalada em fenda. Na ocasião entrei numa via chamada “Quem matou Joana d’Arc” “Inconsciente Coletivo”, uma fenda frontal perfeita e vertical (de verdade!) de aproximadamente 70m divida em duas enfiadas de 40m e 30m respectivamente. Naquele dia tomei (mais) uma das maiores surras da minha vida e fui solenemente expurgado da fenda.

O tempo passou e aquela máxima “quem bate esquece, quem apanha não” ficou na minha memória. Na semana passada, o Sandro me convidou para voltar à via, pois ele também queria “passar a limpo” essa história. Juntamos 4 jogos de Camalot do #.4 ao #5 e botamos o pé na estrada.

Devido a frente fria, o tempo não amanheceu bonito, mas mesmo assim fomos. Na estrada tudo estava bem seco, indicando que não havia chovido no dia anterior, mas faltando uns 2okm para chegarmos na pedra, começamos a encontrar poças d’água na estrada. E quando chegamos na pedra, para a nossa surpresa, era possível ver tiras de água escorrendo em vários pontos. A frustração tomou conta de nós na forma de silêncio e ficamos ali, cada um, mergulhado no seu pensamento olhando para pedra.

Resolvemos dar um tempo, tipo uma hora, para deixar secar um pouco a pedra e depois subiríamos até a base para ver.

Esperando a pedra secar. Enquanto isso, lendo o livro "Por um triz" de André Ilha.
Esperando a pedra secar. Enquanto isso, lendo o livro “Por um triz” de André Ilha. Ah, e o Sandro vendo uns boulders…

Subimos até a base e por sorte constatamos que a via estava sequinha!!! Botamos a cadeirinha e partimos para os trabalhos. A meta do dia era trabalhar apenas a primeira enfiada da via (40m). Tiramos no palitinho quem iria começar a escalada e o Sandro assumiu os trabalhos. Depois de carregar os 4 jogos de Camalot, o Sandro entrou na via e uns 20m depois sucumbiu ao cansaço. Revezamos a ponto, carreguei os quase 6kg de equipamento e “fui me entalar”. Vinte metros depois, os meus braços estavam tão tijolos e o meu corpo tão extenuado que também achei melhor dar um tempo e desci.

Fizemos uma pequena pausa para recompor a consciência e as energias. O Sandro voltou à via e dessa vez ele foi até o final dos 40m trabalhando todos os movimentos.

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Totem de Santa Joana em Itaguaçu. A via fica à direita da grande tira laranja, antes do diedro mais evidente.

Como sabia que seria a minha última entrada do dia, resolvi “botar para jogo”. Coloque a “manilha de 6kg” e parti para luta. Mesmo tendo tomado uma surra nas outras entradas, mentalmente estava me sentindo muito confiante. Pensei comigo: se eu chegar, pelo menos até a metade da via sem ficar tijolado, mando essa via, pois a segunda parte é menos difícil que a primeira parte (pensamento positivo). Para isso, pensei em escalar usando ao máximo a técnica e poupando a força para o final.

Cheguei à primeira metade, a uns 20m, tijolado. Não cheguei mal, mas cheguei desconfortável. Como a via não tem muito pontos de descanso e a maioria dos descansos são uns “cansos”, então tratei de subir logo o restante. Tentei não olhar muito para cima, porque a visão era muito desoladora. A parada, sem nenhum sinal;  a parede, imaculadamente vertical, sem dar arrego; e a fenda seguia intimidadora a perder de vista. Pouco metro acima estava tão tijoladado quanto da primeira vez. E em pouco tempo, todo o corpo doía. Os ante-braços estavam tão tijolados que, às vezes, clipar era muito difícil; mesmo usando uma corda de 9.1mm, ela parecia pesar uma tonelada; Isso sem contar os pés que machucavam com os entalamentos.

A estafa física e mental era tão grande que por várias vezes pensei em desistir e deixar isso de lado, afinal de contas, era apenas uma via. Mas algo não me deixava desistir. A certa altura, já estava escalando desapegado, queria poder cair naturalmente, queria que um pé escorregasse e fosse libertado daquele sofrimento, mas isso não acontecia. Outora, comecei a usar uns cristais suspeitos por fora, assim, se quebrasse, tudo acabaria sem ter o peso da culpa de ter desistido, mas os cristais pareciam de diamante e não quebravam.

Num momento de distração cai no erro de olhar para cima e vi como a parada estava longe. Parecia que aquele sofrimento não tinha fim. De imediato olhei para o rack para ver se eu teria peças suficientes. Olhei de um lado, olhei do outro e só via duas peças!!! Pronto, era a desculpa que eu estava precisando. Não tinha a mínima chance de chegar a até a parada com as peças que estavam sobrando. Agora eu poderia desistir sem culpa. Só precisava pedir para o Sandro retesar! Mas logo percebi que eu ainda tinha algumas peças na parte de trás do rack… Não poderia desistir.

Segui me entalando, contorcendo sem opção de desistir. Mais uma vez, olhei para cima, mas dessa vez vi a parada e ela estava muito perto, uns 5m. Nessa hora, botei na minha cabeça que todo esse sofrimento não seria em vão. Se antes eu queria cair, agora não queria cair por nada nesse mundo. Estava tão perto da cadena, não queria ter que repetir tudo isso novamente. Nesse instante, quase que por um milagre, me senti muito leve. Ver aquela parada me trouxe força e energia. Parecia que eu estava inteiro novamente e assim fui até a parada, com sangue nos olhos! Clipei a parada cansando, tão cansando que mal consegui comemorar. Mas eu estava feliz, feliz por ter acabado e feliz por ter mandado a via.

Dias atrás, durante o treino semanal, ouvi alguém comentar que estava muito cansando e que não conseguiria mais escalar. Nessa hora, lembrei-me de uma frase que dizia que quando nós estamos fisicamente cansados, nós ainda temos 30% de força extra que fica guardado no nosso corpo que é ativada somente com a força da mente. E agora, enquanto escrevo esta postagem, todo dolorido, fico imaginando como isso é verdade…

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Rack para fazer a via “Inconsciente Coletivo”, quase 6kg de equipamento móvel. Foto: Sandro Souza.

Meu agradecimento especial ao Sandro por ter botado pilha para voltar à via e pela segue preciosa e pacienciosa. Afinal de contas, uma via de 40m e em móvel leva tempo para mandar! Principalmente se estiver tijolado.

Quanto ao grau da via, não tenho muita ideia. Comparando o esforço físico que fiz na via “Trem Voador” (9b) a batalha foi muito mais dura, mas por outro lado, penso que eu ainda escalo muito mal em fenda e talvez por isso tenha feito muito mais força. Um Alex Honoold da vida, com certeza mandaria a via tranquilamente sem o mínimo esforço. Mas como sugestão inicial, daria um oitavo grau para via.

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