Desde que saí do Rio Grande do Sul há 10 anos, religiosamente, todo feriadão de Carnaval volto à querência amada para descansar um pouco. O bom de passar o Carnaval no Rio Grande do Sul é que em algumas cidades não tem Carnaval. E para quem, como eu, não gosta de folia é tudo que quero.
Esse ano, aproveitei os dias para passar um tempo em casa com a minha mãe, dar uma volta pela Serra Gaúcha com a Paula e reencontrar os viventes Chico e Camila, pois não os via desde que fomos subir o Caparaó em 2016.
Aliado a todo esse clima social, o tempo também não colaborou muito esse ano e choveu quase todos os dias. Somente na terça-feira entrou uma boa “ventana” e aproveitei para dar uma escalada em um pico que não visitava há 14 anos: Pico da Canastra em Canela.
O Pico da Canastra é um grande morro testemunho de basalto com altitude estimada de 740m acima do nível do mar e é a principal área de escalada tradicional do Estado, contando atualmente com mais de 20 vias.
O pico, acessível apenas via escalada, foi conquistado em 1984 pelos escaladores Ricardo Capelari, Eric Schinkoeth e Luíz Henrique Cony pelo colo que liga o pico principal à montanha que fica ao lado. Nesse mesmo ano, uma grande turma de escaladores incluindo Ricardo Capelari e Luíz Henrique Cony conquistaram a via Ronco do Bugio (V) pela face frontal da pedra. Essa via, até os dias atuais, é a rota mais frequentada por quem inicia esta modalidade nesta montanha.
Em 1996, a dupla de escaladores Carlos Wolf e Boguer Júnior conquistaram a via Bugio Solando (VI), à esquerda da via Ronco do Bugio. Recentemente, esta via entrou para lista das 50 vias clássicas do Brasil, conforme o guia lançado pelos escaladores cariocas Flávio e Cíntia Daflon.
Segundo meu caderninho, repeti essa via em solitária em junho de 2004 e duas semanas depois, a via Porca Tróia (VII), também no mesmo estilo. Mas sinceramente não tenho a menor lembrança dessa repetição. Por essas e outras, resolvi voltar novamente à via para ver ser rolava um momento eureca e também para curtir um pouco esse estilo de escalada que aprecio bastante desde que comecei a escalar.
Como choveu bastante nos últimos dias, planejei sair tarde de Ivoti para deixar a pedra secar um pouco ao sol. Como a via é relativamente curta, 130m, sabia que iria precisar de umas 2h para escalá-la. Contanto a caminhada e a descida, 3h seriam mais do que suficientes.
Saí de casa às 10h da manhã e por volta do meio-dia já estava no Refúgio Canastra para reencontrar alguns amigos de longa data (Moi, Sequinho, Ren). Um pouco de conversa fiada, fofocas em dia, alguns betas da via e às 13h30 saí rumo à pedra.
Quinze minutos de caminhada e já estava na base da via e por volta das 14h iniciei a escalada. A maioria das pessoas que escala a Bugio Solando começa pela Ronco do Bugio e no meio da enfiada sai da via e segue pela Buigo Solando. A saída original da via fica à esquerda, mas pelo visto pouca gente escala por lá.
Eu também comecei pela Ronco do Bugio e quando cheguei no ponto onde deveria sair da via acabei me deixando seduzir pela travessia à direita e mesmo sabendo que estava fazendo uma grande cagada, fui para P1 da Ronco do Bugio. Chegando lá, me conformei com o erro e toquei dali, voltando em travessia para Bugio Solando novamente. Quando se escala em solitária, o arrasto de corda é inexistente, por isso nem dei muita bola para “tricotada” que estava fazendo. Passei batido pela P1 da Bugio e continuei subindo. Mais acima encontrei um grampo muito familiar em terras capixabas, uma cópia tupiniquim do grampinho Stubai de ¼. Era só o que faltava… Esse grampos são usados para progressão e não para segurança, mas vários escaladores das antigas usaram como proteção por ser rápido de fixar. Esses grampinhos devem ter uns 3cm para dentro da rocha e para piorar, têm um perfil quadrado fixado num buraco redondo de 6mm. Isso sem contar que estão lá há mais de 20 anos…
Costurei o primeiro grampinho, subi mais um pouco e costurei mais um grampinho. A medida que ia subindo, a pedra ficava cada vez mais vertical e mais complicada. Até então estava escalando sem sistema de backup para ganhar tempo, mas como as coisas estavam ficando estranhas, achei prudente fazer um backup no meu sistema. Mais acima, ufa, um grampo de verdade! Mas mal batido… Deve ter entrado só a metade, tanto é que tive que laçar pelo tarugo para não alavancar muito. Dali para cima, por nada neste mundo conseguia ver o próximo grampo. Sabia que por ali tinha um tal teto para vencer, mas não sabia bem onde era. O meu croqui, feito por um japonês lazarento não estava me ajudando. Maldito croqui mal feito! Com certo custo achei o próximo grampo. Ele fica escondido atrás de um batente e só dá para ver quando se está ao lado dele! Pelo menos esse ficou bem batido! Dali para cima a cena se repetiu novamente, nada de ver o próximo grampo. E o croqui, erroneamente, indicava um grampo mais acima. Explorando em volta, vi algumas chapas à esquerda, mas sabia que não eram da via. Na verdade, são as chapas da via “Eta coisa marvada”. Mesmo sabendo disso, fui em direção às chapas, pois sabia que poderia acessar o platô por ela. Costurei uma chapa, virei um teto estranho, costurei a próxima e quando olhei para cima vi mais uma chapa, mas também vi um parafuso no meio! Pronto, era uma passada em artificial. É claro que eu não tinha nenhum cabo de aço para laçá-lo. Insisti em livre, consegui costurar a próxima chapa e já estava vendo a parada logo acima, num platô, mas para isso tinha que dominar um matinho com gravatá… Tentei passar o trepa-mato, mas como ele estava bastante molhado os tufinhos respiravam… Como já tinha esticado quase 50m de corda, achei melhor não forçar uma passagem por ali e resolvi voltar à via. Por sorte, enquanto voltava, achei uma passagem pelo teto que presumi ser da via. Voltei ao grampo escondido e virei o teto. Mais uma vez, em vão, procurei o tal grampo que eu tinha marcado no croqui. Mais tarde, o Moisés me contou que tinha um piton depois do teto, mas ele acabou enferrujando com o tempo e caíra.
Cheguei na P2 aliviado e ao mesmo tempo um pouco decepcionado com a presepada que acabara de fazer. Descansei um pouco, desci para limpar a enfiada e toquei para cima.
A terceira enfiada tem um piton quase caindo logo na saída. Nada muito convidativo. Logo acima, há uma fissura frontal perfeita que leva ao domínio do bloco. Na hora, me lembrei dos Camalot´s que eu tinha trazido de Vitória e que estavam na mochila dando sopa. Substitui o piton velho por um #.4 bomber e mais acima ainda coloquei um #.5 e um #.75.
Cheguei no famoso “platô do almoço”, mas como eu não achei a parada fixa da via, resolvi emendar a enfiada e tocar direto até o cume.
A quarta e última enfiada é bem tranquila e muito gostosa de fazer. Embora seja protegida com grampos, há muito espaço para proteção móvel. Como os grampos são bem velhos, os móveis ficam mais seguros. Ainda bem que carreguei esses bichinhos para cima!
Após 2h e meia cheguei no cume do Pico da Canastra. A essa altura o sol estava castigante e fui obrigado a me refugiar numa pequena sombra para comer um bentô que a minha mãe fez e beber os últimos goles d’ água antes de iniciar a descida.
Após 4 rapeis em menos de 30 minutos, já estava na base da via feliz da vida por ter concluído mais uma escalada.
Mais uma vez lembrei da máxima da escalada:
Não existe escalada fácil, existe é dia fácil!
E hoje não foi um dia fácil. Era para ser um dia fácil, mas acabei menosprezando algumas regras básicas e quase me embolei. Também serviu para lembrar que quando se escala em solitária, uma via fácil nunca será uma via fácil. E quando se está somente você e a montanha, as responsabilidades e o grau de comprometimento ficam em um outro patamar.
Uma resposta em “Pico da Canastra, o retorno”
Que irado mano, essa nivel de consciência e autonomia para fazer uma via como essa em solitario é pra poucos, parabéns.