O Caio “Afeto” Salomão (@caioafeto2) é um cara que dispensa apresentações. Ele é literalmente “uma estrela Global”. Ou você tem algum amigo já foi ao programa da Fátima Bernardes? Eu tenho!
Conheço o Afeto de longa data. Em 2007, quando vim pela primeira vez ao Espírito Santo fui apresentando ao menino para escalar no Morro do Moreno. O post sobre esse dia está aqui! Na época, ele nem tinha terminado o ensino médio. Depois, em 2008 quando me mudei para o Estado começamos a escalar juntos e assim seguimos até hoje. Em alguns períodos, quando ele foi mais Global, acabamos escalando pouco devido à agenda dele, mas sempre que conseguíamos fechar as datas aprontávamos alguma coisa.
A minha esposa Paula até já sabe: se vai escalar com Afeto, eu não tenho hora para voltar. Talvez nem volte no dia programado. Ela já sabe que com ele é só furada. Até uma simples escalada no Calogi pode virar uma experiência épica.
É claro que a combinação explosiva só piorava quando o DuNada entrava na barca, aí era certo que seria ralação infinita. Puro sofrimento!
O último feriado de Páscoa não foi diferente. Em fevereiro, ele já tinha “cantado a pedra” falando sobre uma montanha que achou pelos lados de Santa Rita do Itueto (MG), quando rodou a região para abrir um exit na Cachoeira da Fumaça.
Quando ele mandou as fotos da parede sabia que seria uma empreitada dura. Parede vertical, fendada, exposta ao Sol e bem extensa. Ele me jurou que não tinha mais do que 300m, mas pelas minhas contas, teria facilmente uns 400m de extensão. Mas a parede era única. Nunca tinha visto uma parede com tantas fendas de qualidade num único lugar. E a fenda mais óbvia ia da base até o topo num único sistema de fendas. Na hora lembrei de uma escalada que fiz com o Murilo na Itália em 2015, quando escalamos a via “Luna Nascente” em Val di Mello. Essa via também transcorre por um único sistema de fenda de cabo a rabo. É uma escalada tão singular que essa via é considerada uma das mais clássicas da Europa pela Planet Mountain.
Achar algo assim no Brasil? Nem no meu sonho! Por isso, a foto atiçou o imaginário e não pude resistir ao convite, mesmo sabendo que seria uma roubada.
Santa Rita do Itueto fica em Minas Gerais, perto da divisa com o Espírito Santo. Já rodei por lá com Iury a procura de preciosidades em 2021. Sei que o Baldin tem uma via na região onde aflora um grande plutão granítico.
De Vitória até a pedra foram 5h de carro, 300km. Umas perdias aqui, outras ali e muita estrada de chão.
Chegamos na base a parede na 6a feira de Páscoa, perto do meio-dia. Conversamos com os proprietários para conseguir acesso e permissão para pernoitar por ali. A liberação não saiu de mão beijada. Pelo menos no Espírito Santo o povo é mais tranquilo quanto a isso. Talvez tivéssemos um pouco de azar, mas no fim deu certo.
A aproximação nos custou 1h, entre abrir picada e levar muito, mas muito equipamento para cima. Para piorar, as condições não estavam perfeitas. O Sol nos castigava e a ausência de vento deixava o ar pesado e úmido.
Chegamos na base da montanha mortos! Esperamos o Sol ir para trás de uma pequena nuvem e o Afeto começou os trabalhos por uma chaminé que tínhamos mirado de longe. A ideia era subir por essa chaminé para ganhar o topo de um pequeno totem e assim entrar no sistema de fenda principal.
A chaminé se mostrou razoável e logo ganhamos o totem após esticar 40m de corda. Pior foi para mim que tive que subir jumareando, levando tudo no haulbag numa chaminé estreita. Só quem já teve esse desprazer na vida para saber o que é isso.
Cheguei no totem muito mal. Foram raras às vezes que fiquei nessas condições. Normalmente fico assim quando estou conquistando em solitária devido ao esforço contínuo. Não deu “teto preto”, mas também não acharia estranho se desse.
Ficamos ali um bom tempo esperando me recuperar. Assim que consegui me restabelecer, assumi a ponta para abrir a próxima enfiada. A ideia era abrir 3 enfiadas na tarde, deixar corda fixa e fazer o ataque final no dia seguinte.
A enfiada seguinte mostrou que a rocha é realmente ímpar, uma saída de fenda de dedo me levou a base de uma diedro fechado com uma fenda de mão no fundo. Esse tipo de escalada é muito estranha porque é uma mistura de chaminé, diedro e entalamento. Consegui progredir bem até o final e quando sai para um diedro no fim, fiquei sem peça e tive que descer para recuperar. Mesmo levando 3 jogos e tentando otimizar, não consegui tocar tudo porque a fenda é muito regular, não aceitando peças variadas.
A ideia era tocar até uma árvore que tinha visto, mas aí, a enfiada ficaria com 60m. Pela quantidade de peças que tínhamos seria quase impossível. Então resolvi bater uma parada mista aos 30m num pequeno platô e deixar o resto para o dia seguinte.
Ali tivemos a real oportunidade para entender onde estávamos nos metendo. Na verdade, era um misto de sonho e pesadelo. Tínhamos acabado de conquistar duas enfiadas que facilmente seriam 5 estrelas no Espírito Santo. Para cima parecia que vinha mais enfiadas estrelares, mas tudo isso teria um preço.
À noite passamos num galpão sem teto onde montamos um pequeno bivaque com rede. Jantamos qualquer coisa e por volta das 21h nós já estávamos nas redes, pois a alvorada do dia seguinte seria às 4h.
Ainda naquele momento, em algum lugar da minha mente, alimentava uma esperança de que no dia seguinte faríamos cume. Achava que em alguma momento as fendas ficariam mais fácies, que ganharíamos velocidade que o tempo iria cooperar e nós acordaríamos mais fortes. Muitas esperanças e sonhos.
Acordei às 4h e estava me sentindo bem, mesmo dormindo mal na rede. O Afeto não estava pegando no tranco, mas foi se orientando no automático. Às 5h20 iniciamos a caminhada. Subimos leves e rápidos, pois tínhamos deixado tudo na parede, só levamos mais água, comida e chapas extras.
Por volta das 6h estávamos na base da via novamente. O tempo estava entranho, mais úmido, nublado, com uma cara de que iria chover a qualquer momento.
Subimos pelas cordas fixas até a P3, onde o Afeto começou conquistando a 4a enfiada. A segunda enfiada é uma escalaminhada. A enfiada parecia linda. Fenda de mão em oposição, vertical e perfeita. O alvo era uma árvore que parecia ser um bom lugar para estabelecer uma parada.
Mais uma vez a regularidade da fenda cobrou seu preço e o Afeto também teve que descer para recuperar as peças. A ideia era montar uma parada natural, mas as raízes estavam duvidosas e resolvemos bater duas chapas para garantir o nosso lado. Estávamos num lugar tão isolado e ermo, que sabíamos que qualquer tipo de socorro iria demorar muitas horas para chegar, então todo cuidado era pouco.
Comecei a 5a enfiada com a expectativa de que iríamos fazer cume! Pensava: depois dessa enfiada a pedra vai dar arrego! Só preciso vencer esse trecho! A enfiada era perfeita, laca, fenda de mão e vertical com força. Mais uma vez as peças repetidas acabaram e tive que descer para catar as peças de baixo. Eu acho esse estilo de escalada muito deselegante, mas naquele lugar, seria muita irresponsabilidade abdicar da segurança em nome da elegância.
Estiquei 30m por uma bela laca em oposição até uma boa quebra de ângulo onde estabeleci a P5 (não é a P5 do croqui abaixo).
Logo, o Afeto se juntou a mim e seguiu para próxima enfiada. Dali era meio difícil saber o que nos aguardava. A fenda parecia mais suja do que o esperado. O Afeto tocou uns 5m por um diedro e logo a fenda sumiu. O diedro seguia, mas sem fenda. Vimos que o progresso por ali seria muito lento. Provavelmente em artificial de piton. Como queríamos uma via em livre resolvemos buscar o sistema de fenda da direita que já tínhamos visto de longe.
Para passar para fenda da direita tivemos que descer uns 10m, estabelecer uma nova P5 e dali bater duas chapas na face para fazer a passagem. Por um capricho da natureza, essa era a única passagem possível, pois a rocha, em geral, é bastante lisa e vertical.
Entramos na fenda da direita e o Afeto seguiu tocando até encontrar um platô numa laca. Era uma lugar desconfortável, mas considerando que todas as paradas eram ruins até então, essa se mostrou uma benção. E mesmo não tendo esticado 30m de corda resolvemos fazer a parada para aliviar o sofrimento.
Cheguei na P6 e vi que a pedra seguia sem dar trégua. A enfiada seguinte parecia tão trabalhosa quanto as anteriores. Na reunião da parada, o Afeto achou que não iríamos conseguir fazer cume, pois a pedra não facilitava. Conheço o Afeto de várias roubadas e é muito difícil ele falar algo assim. Ele é um daqueles caras que não “joga a toalha” facilmente na montanha. E sabia que ali ele não iria desistir por pouco. Pensando nisso, eu estava subindo preparado espiritualmente para ter que encarar um bivaque forçado em algum platô, até por isso, estava racionando ao máximo a água. Eu conheço meu eleitorado.
Provavelmente daria para ter subido mais uma enfiada, uns 30m, mas ainda estávamos muito longe do cume. Seria preciso mais uma dia full com baterias cheias para, talvez, fazer cume. Descer equipando a via e voltar no dia seguinte estava fora de cogitação, pois estávamos muito cansados, então resolvemos aproveitar o resto das energias para gastar com a descida, pois ainda tínhamos muito material para baixar e uma boa caminhada.
Chegamos no carro ainda de dia e aproveitando a luz resolvemos adiantar a volta, já que no dia seguinte não teria escalada de qualquer jeito.
Segundo nossos cálculos ainda tem um bom trecho de escalada nos aguardando e pelo visto a pedra não irá baixar a guarda.
Não sei se conseguiremos voltar ainda nesta temporada, mas confesso que já esqueci o sofrimento e às vezes me pego planejando a volta. Espero que possamos voltar quanto antes a esse sonho chamado “Totem da Fumaça” para terminar esse projeto épico!
Anotações pessoais para o futuro: levar 4 jogos de Camalot. Repetir #.5 ao #3. Levar 2x Camalot #5 e #6. Talvez seja útil lá para cima. Deixar peças pequenas (micro). Hauling ok. Levar menos chapas. Bivaque na parede?
4 respostas em “Presente de Páscoa do Afeto”
Incrivel!! top demais
Que parede linda, e dura, parabéns em breve mais uma linha 5 estrelas.
Inspirador de mais!!
Mais uma história pra contar, que roubada #arimatur ???