A sutil arte de ler pedra

Na escalada tradicional, uma das habilidades que um escalador precisa ter para se dar bem na pedra é saber “ler a pedra”. Não é algo fácil, demanda tempo, experiência e um pouco de sorte.

Aqui vão algumas dicas de alguém que já se perdeu bastante na vida. Espero que seja útil.

Saber chegar na base da via

Antes de começar a escalar é preciso chegar na base da via, seja de carro e/ou caminhando. Esse é um ponto crucial que muitas vezes negligenciamos em detrimento à fome de querer escalar a pedra. Saber onde a pedra fica, quanto tempo leva a caminhada e saber os caminhos alternativos são cruciais para começar bem uma escalada. Nos dias atuais, muitas dessas informações estão disponíveis na internet e nos guias de escalada, além disso, temos o Santo Google Maps que facilita muito nosso trabalho. 

Perdido em algum lugar.

Algumas dicas práticas: Saber onde fica a pedra e o início da via no Google Maps. Se você não sabe onde fica no Google, você não saberá no dia. Marque o ponto, salve no celular e baixe uma versão offline do mapa. Se tiver uma descrição da aproximação, leia e tente fazer isso acompanhando no Google Maps. Se não conseguir chegar assim, não chegará na hora da verdade. Além disso, sempre considere a possibilidade de a descrição estar errada. E não se esqueça de imprimir o croqui e a descrição da aproximação, não confie na sua memória.

Levemente fora da trilha.

Em 2014, Murilo, Zé, Sandro e eu escalamos a Royal Arches no Parque Nacional de Yosemite. Como a ideia era começar cedo a escalada, planejamos chegar na base da via ainda sob a luz das lanternas, afinal de conta, tínhamos 16 enfiadas para o dia. No dia anterior fizemos a aproximação de carro para certificar o caminho e a noite estudamos detalhadamente a aproximação final. Com isso, no dia seguinte, não tivemos nenhum problema e conseguimos começar a escalada dentro do horário planejado.

Croqui da via Royal Arches.

Saber identificar a base da via

A depender da via, a identificação da base da via poderá ser bem complicada, principalmente se a via for em móvel ou se as primeiras proteções estiverem escondidas. Além disso, há também a possibilidade de ter várias vias no mesmo local, dificultando a identificação. Outro aspecto que precisa se considerado é o horário. Para algumas vias que demandam muito tempo é preciso chegar cedo, ainda de noite, e nestas condições tudo poderá ficar mais complicado, por isso, ter informações prévias é muito importante.

Dicas úteis: procure por fotos que mostram como é a base da via. Isso ajudará na hora de identificar o começo. Procure por fotos que mostram o traçado da via. Tente estudar a vegetação e as rochas da base para ter uma referência.

Tem uma história aqui no Espírito Santo que é bem famosa. Um dia, um escalador foi repetir uma via na região e acabou entrando numa via inacabada sem saber. No meio da escalada ele começou a esticar a corda e nada de achar o próximo grampo. Ele foi tocando, tocando até acabar a corda e descobrir que estava na via errada. Sem poder descer, teve que ligar para uns dos conquistadores que trouxe um martelo, batedor e um cliff. O escalador fez um furo de cliff e rapelou nele.

Estudando a via.

Navegando na parede

Uma vez na via, um croqui impresso é mandatório. Eu gosto de levar um croqui devidamente protegido num saco plásticos e preso na cadeirinha. Nada de levar no celular! Bateria acaba, celular cai… O croqui é, sem sombra de dúvida, a melhor fonte de informação sobre a via, por isso, além de ter ele por perto, é preciso estudar com calma antes de iniciar a escalada. Outro aspecto que precisa ser considerado são os possíveis erros no croqui (número de proteções, traçados…). É preciso uma boa dose de equilíbrio entre confiar totalmente no croqui e a realidade que está à frente. Isso sem contar a questão interpretativa do autor e do escalador. Em caso de dúvida, uma das melhores dicas é: pensar como o conquistador da via. Perguntando-se sempre: o que o conquistador faria nessa hora?

De olho no croqui para não se perder no mar de gravatás!

Existe uma máxima da Geografia que aprendi na escola e que serve para escalada também: “por onde o Homem passa, ele modifica o meio”. Saber identificar essas alterações é uma habilidade que pode ser trabalhada com a experiência. Vegetação removida, laca de pedra retirada, pedra desgastada são pequenos indicativos que ajudam a saber se você está no caminho certo ou não. Em vias frequentadas, quando você sai da via, costuma encontrar um terreno mais sujo e/ou agarras (lacas, blocos) soltas que indicam que você está fazendo alguma coisa errada.

Murilo estudando a escalada do dia seguinte.

Uma pegadinha que você precisa ter muito cuidado são os materiais abandonados e/ou pontos de rapéis. Nem tudo que reluz é ouro. Nem toda parada é uma parada; nem toda árvore com fita faz parte da via. Às vezes, você poderá ser induzido ao erro ao ver uma fita abandonada num bico de pedra e achar que é da via para descobrir que aquela fita foi abandonada por alguém que errou a linha da via e foi obrigado a descer dali. E você só foi ali para engrossar a estatística.

No início da ano repeti uma via no Complexo do Itabira em Cachoeiro de Itapemirim. Embora a via seja toda grampeada, em alguns trechos não é possível ver os grampos. A uma certa altura, cheguei num ponto assim e fiquei bastante na dúvida, como não existia um croqui fiquei um bom tempo pensando. Como eu sabia que o conquistador buscava sempre a linha mais desafiadora, na hora que fiquei na dúvida entre o lado mais fácil e o mais exposto, optei pelo lado mais exposto. Por sorte, alguns metros acima encontrei um grampo.

Porko curtindo as “ondinhas”. Pedra do Macaco, Complexo do Itabira – ES.

Descida, a metade do caminho

Mais importante do que saber subir é saber descer. Em geral você tem 3 opções de descida de uma montanha. Pela própria via, por uma outra via ou caminhando. Essa é uma informação que você precisa ter antes de começar a escalada e melhor ainda, ter mais de uma opção em mente. Em geral, descer pela própria via é menos complicado, pois você já passou por ali uma vez. Descer por outra via já é mais complicado, pois exige achar o ponto inicial que nem sempre é fácil, além disso, sempre há a possibilidade de descer no escuro ou pegar a linha errada. Se uma via tiver essa opção, é preciso estudar a descida com o mesmo afinco da escalada. Descer caminhando é a opção mais segura, mas também a mais traiçoeira, por tendemos a baixar a guarda.

Rapel em bico de pedra por uma linha desconhecida.

Em 2014, iniciei uma conquista na Pedra da Onça em Itarana com o “Chuck”. Na ocasião, após esticar 3 enfiadas de corda, encerramos os trabalhos e iniciamos a descida à noite pela própria via. Na empolgação da conquista, subimos de carro até onde ele conseguiu chegar e o largamos no cafezal. Na hora de achar o carro no escuro quem disse que sabia onde o carro estava. Saímos varando cafezal à dentro e quase que por um milagre achamos o carro. Às vezes, contamos com a sorte…

Já se você não quiser fazer nada disso, a melhor opção é escalar com alguém que conhece a via ou contratar um guia e deixar toda responsabilidade com ele, mas posso garantir você que vai perder 90% de toda aventura de uma escalada tradicional e não terá boas histórias para contar. 

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3 respostas em “A sutil arte de ler pedra”

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