ATENÇÃO: este post foi editado posteriormente em 21/03/2014 para corrigir alguns erros quanto a parte histórica da conquista dos Três Pontões.
A ideia do final de semana era ir no sábado para Afonso Cláudio (120km de Vitória) e escalar no domingo os Três Pontões de Afonso Cláudio, um clássico da escalada tradicional capixaba.
Ato No 1 – Sábado, escalada de playboy!
Pedra da Bunda, Afonso Cláudio.
Como queríamos aproveitar o sábado, resolvemos escalar uma via mais tranquila na região para não cansar demais para o domingo. Dentre algumas opções, o Afeto sugeriu fortemente a via Anga que fica a apenas 3km do centro da cidade.
Essa via foi conquistada em 2001 pelos escaladores locais Roberto Teles, Robinho e Silvestre, e tem uma característica bem incomum: agarras cavadas.
A via tem aproximadamente 120m de extensão num granito de excelente qualidade com muitos cristais sólidos e agarras de verdade. E está dividida em 5 enfiadas bem protegidas (E1) com grampos de 12mm quase a cada 2m.
Entramos na via sob um sol um pouco escaldante, mas apostamos nas nuvens que, às vezes, dava uma trégua para a cuca. A primeira enfiada (V) é uma enfiada bem vertical com muitos cristais e agarras, um verdadeiro desfrute até a P1.
A segunda enfiada é uma enfiada em arco à esquerda finalizando em uma travessia bem técnica que foi originalmente conquistada em artificial de cliff, mas que não passa de um 6o grau em livre. Na verdade, na conquista original há uma parada intermediária, mas acabamos juntando a segunda e a terceira enfiada para ganhar tempo e otimizar a escalada.
Afeto guiando a 2a enfiada.
Chegando na P3 (nosso caso, a P2), e fazendo pose para foto… Foto: Caio Afeto.
A terceira enfiada, ou a quarta, pela via original, é o crux da via. E também a enfiada mais polêmica, onde há uma série de agarras cavadas nos lances mais difíceis, finalizando com um trecho de A0 de grampo sobre grampo.
Essa não foi a minha primeira experiência em agarras cavadas. Já escalei algumas vias com agarras cavadas na gringa e realmente é algo muito desconfortável. É como se estivesse trapaceando, jogando sujo contra a pedra. Por isso, forçamos a escalada em livre, sem usar as agarras cavadas, que são bem claras, inclusive no trecho final de A0. Acreditamos que a enfiada seja um 7c bem sólido sem usar as agarras cavadas.
Não posso julgar os conquistadores, pois não sei sob que condições abriram essa via, mas para mim, essa é mais uma prova de que cavar agarras não é legal. Com certeza, na época em que abriram a via acharam que seria impossível passar essa em livre, e hoje sabemos que a via é factível e que nem é tão difícil assim.
Para as pessoas que acham legal cavar agarras, sugiro que provem essa via e sintam o quão não é legal cavar e que é possível, com treino e técnica, escalar sem trapacear. Como disse o Cris Sharma uma vez: foi preciso cavar as agarras para saber que não é legal!
Afeto passando em livre o trecho artificial (A0) da terceira enfiada (4a pelo original).
Batendo em retirada.
Independente dessas alterações, a via é muito agradável e gostosa de se fazer, com uma aproximação tranquila (5min), escalada rápida (D1) e descida fácil.
Croqui da via
Croqui da via. Considerar distorção da imagem. O trecho final, principalmente a 5a enfiada, está distorcido pelo ângulo da foto.
Dicas para repetição:
- A via está localizada a apenas 3km do centro de Afonso Cláudio. Para chegar na pedra, basta entrar à esquerda na rodoviária (para quem vem de Vitória) e seguir reto na rua, sem atravessar a ponte, em direção à delegacia. A estrada segue sempre margeando o rio e na primeira oportunidade após a ponte, dobrar à direita. Siga sempre pela principal, passe pela entrada do sítio até encontrar a pedra. Caso tenha alguma dúvida, acesse esse link para visualizar o mapa das vias tradicionais do ES;
- O proprietário das terras é o Sr Anésio. Ele não mora no sítio, mas sim na cidade de Afonso Cláudio. É conveniente avisá-lo previamente antes de entrar nas terras dele. Para entrar em contato, entre em contato comigo que tenho o celular;
- A via fica na sombra pela manhã até as 11h;
- Levar duas cordas de 60m. 12 costuras ou até 16 se quiser juntar a 2a e a 3a enfiada, embora seja possível de escalar pulando várias costuras;
- Todas as paradas são duplas, exceto a última que é em árvore;
- Em geral, os cristais são bem sólidos;
- Há um pequeno relato no blog do Baldin e uma descrição na croquiteca da ACE.
Ato No 2 – Escola de chaminé nos Três Pontões
No domingo, o dia começou cedo! Após um pequeno contratempo, acabamos nos atrasando e só conseguimos sair para a pedra por volta das 6h. A ideia era sair às 4h30…
Três Pontões que, na verdade, são quatro, visto a noite.
Dessa vez, a barca ainda deve o reforço do nosso presidente Zé Márcio e do Amaral.
Chegamos na base dos Três Pontões por volta das 6h30 e começamos a escalaminhada de uns 150m de II grau. E assim que chegamos no início da via propriamente dita, nos encordamos em duas duplas e partimos pedra acima. A ideia principal da investida era fazer o cume do Pontão Maior e do Tubarão no mesmo dia.
Só abrindo um parêntese: os Três Pontões de Afonso Cláudio, na verdade, são 4 picos que formam o conjunto: O Pontão Maior, o Tubarão, o Dedinho e o Pitoco. E neles todos já tem uma via de acesso.
Nosso campo-base.
Três Pontões, a primeira visão do dia.
Aproximação inicial, 150m de costão. Escalaminhada tranquila para aquecer as pernas.
Nessa escalada, nós escalamos vários pedaços de várias vias para completar a escalada. A primeira parte que escalamos foi a via que dá acesso ao cume do Dedinho, conquistada em 1996 pelos escaladores locais Roberto e Tristão. Escalamos apenas as duas primeiras enfiadas mais o trepa mato final para depois cair na Chaminé Norte, uma outra conquista clássica de 1970. Depois, em vez de continuar pela chaminé Norte, caímos nas últimas duas enfiadas da “Vândalos Inocentes”, conquistada em 2004 pelos escaladores mineiros Aun, Latorre e Trindade. Para só no final voltar ao lance da escada (ou do laço) da Chaminé Norte. Aliás, a tal escada não existe mais e hoje é preciso laçar o grampo com a corda para conseguir fazer o lance final em artificial. E garanto que não é fácil laçar um grampo com vento e também não é nada agradável prussikar num único grampo enferrujado com mais de 40 anos…
Amaral na variante final da 2a enfiada da Via do Dedinho, antes do mirante.
Zé Márcio no trecho da Chaminé Norte. Se arrastar na chaminé não é o problema, o problema é ter que se arrastar com a mochila…
Afeto no trecho final da via.
Zé Márcio no trecho da via Vândalos Inocentes. Aqui vale tudo: segurar na bromélia, pisar no grampo, usar o joelho… Só não pode perder a dignidade!
Afeto no cume dos Três Pontões (Pontão Maior).
Grampo original da conquista de 1970 1958. Esse é o grampo da laçada, antes do cume.
Depois do Pontão Maior, descemos e fomos para o Tubarão, o cume ao lado, guiado com muita maestria pelo Amaral.
Chegamos no segundo cume por volta das 15h30, tiramos aquela foto clássica no cume e começamos a longa jornada de volta.
Ainda me lembro que no cume pensei: que escalada agradável, tranquila e gostosa. Tem alguma coisa de errado nisso. Chegamos bem no cume, sem aquela sensação de ter passado por nenhum perrengue. Algo está errado! Não pode ser assim!
Amaral guiando chaminé do Tubarão. Só nesse trecho, o Amaral levou mais de uma hora para completar a enfiada. Então dá para ter uma ideia da complexidade física e mental da brincadeira…
Afeto contornando por fora a chaminé que dá acesso ao cume do “Tubarão”.
No cume do Tubarão!
Vendo do cume do Tubarão para o Pontão Maior.
Logo em seguida, durante o primeiro rapel, o tempo começou a virar de um jeito inacreditável. O que era para ser um dia ensolarada se transformou em um céu carregado com vários focos de chuva no horizonte. E assim, no meio do rapel uma dessas chuvas nos pegou com tudo. E para piorar, inventamos de descer por uma linha desconhecida e acabamos perdendo um tempo precioso. Com isso começou a anoitecer antes de conseguirmos chegar na base da via. Pronto, estava ali a roubada final que estava sentindo falta! E quem disse que alguém tinha anorak? E para piorar mais ainda começou a ventar tão forte que a sensação térmica despencou com o anoitecer. Então o jeito foi pagar polichinelo nas paradas enquanto esperava o outro rapelar no grampo simples!!!! Chorei!
E se existe uma combinação que não dá certo é chuva mais costão. Logo, aquele costão tranquilo de 150m da manhã virou um inferno e tivemos que fazer toda a descida rapelando em árvores, para enfim chegarmos na base da pedra às 19h.
De uma forma super e mega sucinta, assim foi a escalada, mas garanto de ante-mão que não relatei nem 10% de tudo que passamos nesses dois dias escalada. E a única coisa que posso dizer é que ainda quero voltar lá para escalar os outros dois dedos que faltam! E dessa vez vou levar o anorak!
Croqui
Croqui da face leste.
Dicas para a repetição:
- O início da via do Dedinho fica numa calha d’água que forma uma grande chaminé escura;
- A primeira enfiada dessa via começa na chaminé, depois segue à esquerda até um grande platô onde fica a P1 simples. Se não estiver usando corda dupla, é recomendável usar bastante fita longa para diminuir o atrito;
- A segunda enfiada tem apenas dois grampos e depois segue por um trecho fácil até a parada simples. Para evitar a parada simples, uma opção é passar o grampo e montar a parada nas árvores logo acima;
- O trecho que contorna a pedra por trás para acessar a Chaminé Norte pode ser realizada tranquilamente sem corda;
- A primeira chaminé da via Vândalos Inocentes requer muitas peças grandes (Camalot #6, Big Bro…). A regra é: quanto maior e em maior quantidade, melhor;
- A parada depois da chaminé é em móvel (3x Camalot #4);
- Para entrar na chaminé do Tubarão, vale a mesma regra acima, muitas peças grandes;
- Para o Pontão maior, não há proteção, somente as paradas duplas. O lance final do cume exige uma laçada em um grampo para passar o trecho conquistado com escada;
- A enfiada final, sem passar pela via Vândalos Inocentes” é por uma chaminé larga de uns 50m com apenas uma proteção fixa no meio;
- Levar fita de abandono tanto para o Pontão Maior quanto para o Tubarão.
Uma resposta em “Escalada em dose dupla”
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