Tudo começou mais ou menos assim: Durante o treino semanal no muro da ACE, o Eric me perguntou o que faria no feriado de primeiro de maio. Eu sugeri a via “Obra do Acaso” (5° VI (7c/A0), E2, 650m) no Pico do Baiano em Catas Alta (MG). Já tinha ouvido falar dessa via, então achei que seria uma boa oportunidade. O Zé ouviu a conversa e pediu para entrar na “barca”. Logo em seguida o Amaral que estava por perto também embarcou nessa e as duplas estavam montadas.
Ao longo da semana iniciamos os preparativos e também ficamos de olho no tempo. Logo de cara vimos que uma frente fria estava varrendo o Brasil e vindo em nossa direção. E para piorar, iria passar pela região de Catas Alta bem no feriado!
Partimos para o “Plano B”! Mais uma consultada na minha base de dados e eis que surge o nome Moonwalker (5º VI+ E3, D5, 1010m) na Pedra Riscada, também em Minas Gerais. Segundo o prognóstico meteorológico, a frente fria iria sair para o mar na altura de Vitória e aquela região seria “poupada” da chuva.
Aproximação
No sábado, saímos de Vitória, Eric, Zé Márcio, Amaral e eu rumo a cidade de São José do Divino (SJD) distante a aproximadamente 350km. Como a cidade de SJD fica lá nos “cafundó dos Judas”, tivemos que ir serpenteando as tortuosas estradas do Espírito Santo e Minas Gerais. E após 6h de estrada, finalmente chegamos na pacata cidade de SJD. Aproveitamos os últimos momentos de “civilização” comendo um açaí e comprando o resto do mantimento. Mais meia hora de estrada de chão e finalmente tivemos a primeira visão da Pedra Riscada. De longe, a pedra parece normal, igual a qualquer montanha grande do Espírito Santo, mas a medida que nos aproximávamos, o bicho ia crescendo, crescendo e crescendo. Só me dei conta da real dimensão quando fui enquadrar a montanha para fotografar e notei que ela não cabia no frame…
Procurarmos os proprietários das terras para pedir passagem e prontamente fomos muito bem atendidos. Estacionamos o carro num curral em frente à pedra e logo arrumamos as mochilas.
O nosso plano era subir até a base da via, bivacar e no dia seguinte, bem cedo, entrar na via e escalar até a P12 onde iriamos bivacar novamente para no dia seguinte subir até o cume, P19, depois descer e rodar até Vitória. Na melhor das hipóteses, iriamos no primeiro dia até o cume, depois descer até a P12 para bivacar e rapelar o resto no dia seguinte. Mas o Amaral que passou algumas temporadas na Patagonia quis usar uma estratégia mais ousada, usando um método “patagônico”. Em vez de sair cedo no dia seguinte, sair de madrugada e tentar o cume no mesmo dia, e se desse, descer até a base no mesmo dia. Segundo os relatos que andei lendo na internet (aqui, aqui, aqui e aqui), o mais comum era ir até a P12 no primeiro dia e no dia seguinte fazer o ataque. Por outro lado, li outro relato de uma investida de 24h da Nereida, mas essa opção me pareceu muito insana.
Bivaque
Seguimos por um pasto muito sujo em direção à base da via e após 1h de caminhada chegamos no nosso bivaque. Para poupar peso levamos redes para dormir e dispensamos vários itens comum a um acampamento, a começar pela lona em caso de chuva… Matamos um nhoque com atum e fomos para as redes por volta das 21h, já que o plano era acordar às 3h e começar a escalada às 4h.
Em algum momento da madrugada, senti um pingo de chuva na minha cara. Pensei que fosse um sonho, mas logo os pingos ficaram mais intensos e começou a chover de verdade. Desespero no acampamento!!!! Eu usei a estratégia “o que é um peido para quem está c$%#do” e fiquei quietinho esperando a chuva parar… Alguns minutos depois, a chuva diminuiu e voltamos a dormir “tranquilamente”. Mentira!
Escalada
Às 3h o despertador tocou e iniciamos os preparativos. Comer um pedaço de pão integral às 3h da manhã foi quase um suplício. Ninguém merece comer com sono… Às 4h12min, com 12min. de atraso Eric e eu começamos a escalada sob a luz dos headlamps. Como o céu estava nublado e sem Lua o breu era absoluto. O lado bom foi que a gente perde a noção dos esticões, mas o lado ruim é que não vemos os grampos… Assim, comecei a escalada com pé esquerdo pulando de cara dois grampos na sequência protegido pela “coragem da escuridão”. Uns 30 minutos depois, o Zé e o Amaral também iniciaram a escalda numa dupla à parte.
Seguimos no escuridão total até a P4, quando finalmente os primeiros raios de sol, ainda que escondido pela densa nuvem, iluminou a pedra e pudemos dispensar as lanternas de cabeça. Por sorte, as primeiras 4 enfiadas transcorrem por uma grande canaleta d’água, tornando a orientação bem fácil. O trecho inicial também é a mais vertical da via. O fato de levar para cima todo material de bivaque (rede e saco de dormir), mais 3L de água e comida, deixava a verticalidade mais evidente.
Assim que a luz do sol iluminou a pedra pude ter, pela primeira vez, a real noção de onde estávamos nos metendo. Decidimos que se chegássemos até às 13h na P12 seguiríamos direto até o cume e retornaríamos até a P12 para o bivaque. Caso contrário, ficaríamos na P12 e só faríamos o ataque no dia seguinte. Por isso, imprimimos um bom ritmo de escalada e por volta das 10h40 chegamos no platô da P12 com uma boa margem em relação ao plano original.
Nos demos ao luxo de parar por 30 minutos na P12 para comer alguma coisa, separar o material que iríamos levar para cima e beber alguma coisa. Às 11h20, o Eric assumiu a ponta novamente e partimos para mais 7 enfiadas até o cume. A P12 é um grande platô de mato que separa a via em dois estilos bem distintos. Até a P12, a via transcorre por dentro das canaletas e na segunda parte, a escalada já é mais em “placa”. Além disso, conforme o esperado, no segundo trecho, as proteções são mais escassas, deixando a orientação mais trabalhosa e os lances mais expostos.
Seguimos a escalada imprimindo um bom ritmos, pois a essa altura nós já estávamos cogitando a ideia de descer até a base no mesmo dia, dispensando o bivaque na P12. Como deixamos o material do bivaque na P12, conseguimos escalar mais rápido as últimas 7 enfiadas.
Cume
Chegamos na P19 pelo traçado original, fugindo do trepa-mato da variante, e às 14h todos nós estávamos no final da via para comemorar a escalada e a chegada de uma nova do fase Eric! Como a parte final da via fica a aproximadamente 1200m do chão, o clima era mais instável com bastante vento e chuviscos devido à alta nebulosidade. Por isso, tratamos de sair logo dali e descer quanto antes. Pelo horário, calculamos que seria possível descer até a base com uma boa margem de segurança. Assim, iniciamos a longa seção de 19 rapéis até a base. O que nós não contávamos é que as paradas duplas, dotadas com apenas uma argola por chapeleta, deixavam o trabalho de puxar a corda insano devido ao atrito. Tentamos melhorar alguns rapeis críticos re-abandonando alguns mosquetões para minimizar o atrito, mas mesmo assim sofremos bastante.
Após 6h de intermináveis rapeis, finalmente chegamos na base da via às 20h. Comemoramos a escalada com um belo prato de arroz com lentilha e carne de sol e desmaiamos na rede. Durante a madrugada, a cena da chuva se repetiu novamente, mas como já estava com a cabeça feita da escalada, deixei me molhar com prazer até a chuva cessar logo em seguida.
Acordamos no dia seguinte sem pressa, arrumamos as coisas e descemos em direção ao carro para pegar mais 6h de estrada, mas antes, ainda demos uma “volta olímpica” na Pedra Riscada para ver as outras faces da montanha e ir estudando os próximos projetos!
Algumas considerações sobre a via para quem for repetir:
- A graduação da via está um pouco super-cotada. Na minha opinião, a via é um 4o grau com crux de 5o SUP. No croqui abaixo coloquei a graduação pessoal, além de alguns melhoramentos;
- Os lances de exposição estão dentro da normalidade, não há nenhum lance perigoso, apenas lances longos em seções tranquilas;
- O rapel é bastante trabalhoso e braçal devido às argolas simples, o ideal é levar algumas fitas ou malhas extras para os rapeis mais críticos. Puxar 19 rapeis em dupla após escalar o dia inteiro é bastante complicado;
- Outra dica é levar um bloqueador (Mini-traxon) e uma corda mais fina para melhorar o rapel;
- Tecnicamente a via não é difícil, mas exige velocidade para vencer as 19 enfiadas caso queira fazer em D3/D4;
- Escalar a via em um dia é totalmente plausível (D3/D4). Com certeza, se nós subíssemos sem o material de bivaque teríamos escalado mais rápido ainda (D3);
- Eu levei 3L de água para 2 dias. No final consumi apenas 1,5L e trouxe de volta a outra metade. Lembrando apenas que escalamos em um dia bastante nublado, sem sol;
- A via, principalmente no final, fica bastante exposta ao vento; por isso, é imprescindível levar um agasalho extra para o frio além de um anoraque;
- Se for bivacar na P12, há espaço para rede. E leve roupa para frio!
- Nós levamos apenas 12 costuras (60cm) e 2 cordas de 70m. Fitas extras não são necessárias.
Croqui
Leia mais sobre a Pedra Riscada, aqui!
10 respostas em “Moonwalker, Pedra Riscada”
Gostei muito do relato e do croqui. Vai me ajudar bastante. Parabéns!
Muito grato pelo relato! Fizemos cume neste ultimo domingo e decidimos seguir a dica de vocês sobre fazer em um dia, mas vocês fizeram parecer muito fácil! Parabéns! Grande abraço e boas escaladas
Muito bom Fernando! Parabéns pela escalada! Feliz que as dicas tenham sido úteis!
Excelente relato, já deu emoção aqui ! Pretendo fazer esta escalada em Julho, será que o clima firma nessa época por la ?
Obrigado Rodrigo! Com certeza, vai pegar uma época muito boa. Vai fazer é frio! Bom levar umas roupas extras.
Parabéns a equipe, ótimo relato.
As dicas de planejamento vão ajudar muito, esse ano pretendo conhecer o local.
Abraço, Alex e Cris Ribeiro
Vlw Alex! Essa vocês tiram de letra!
[…] capixaba (Rebit e Felipe). Trip irada, muita escalada e muitas cadenas. Na semana passada fui para Pedra Riscada com a galera da escalada tradicional capixaba (Zé, Amaral e Eric) e fizemos a via Moonwalker […]
Valeu demais galera, tudo a nosso favor nessa trip! Saiu melhor que a encomenda!
A febre no sábado que não vingou no dia da escalada, as noites frias mal dormidas que poderiam ter sido piores se a chuva tivesse caído pra valer, o tempo nublado que poupou nossas energias durante a escalada, a chuva que rodeava e não caía sobre nós, o saco de dormir que felizmente não rolou pedra abaixo, a maneira séria que encaramos o desafio sem subestimar a pedra e a via, o que rendeu o ótimo ritmo e permitiu executar o ousado plano B do Amaral. Só aquele trânsito horroroso de volta de feriado que não deixou tudo perfeito!
Cervejinha e rangos no bivak foram luxo! Quanto mais o tempo passa, vamos esquecendo os perrengues e ficando com as lembranças boas! hehe
Altas Aventuras!!! maneiro galera mas pelo visto está muito fácil !! quero ver as próximas!!!