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O óbvio precisa ser dito

Na semana passada, na volta de Castelo, passei na região de São Manuel para conferir uma montanha que havia visto no Google Maps. Olhando de longe, e de drone, parecia bem promissora, com muitos veios, buracos e totens.

Chegando em casa, fui estudar um pouco mais sobre o achado e descobri um artigo científico sobre a geologia da região (Decol et al., 2021), e para meu desagrado descobri que a rocha é um granito tipo G5. Os granitos G5 são, em geral, granitos com textura bem fina e homogênea, ou seja, sem agarras. Mas quando vi de longe não parecia tão homogênea, muito menos parecido com os outros granitos G5 como a Pedra Azul, por exemplo.

De qualquer forma, na face norte dessa montanha visualizei uma linha fendada bem natural que levava ao seu cume. Parecia uma escalada rápida e fácil. Fenda, granito com muitas agarras aparentes e pedra pouco inclinada. Jogo rápido!

Assim resolvi dar um pulo no último final de semana para fazer essa conquista “expressa”.

Convidei o Graveto e o DuNada que logo toparam sem perguntar muito sobre as pretensões.

A previsão para o final de semana não era das melhores, uma forte instabilidade marítima prometia trazer muita umidade e chuva para o Estado. Mais uma vez estudei os mapas e entendi que essa frente não avançaria muito para dentro do Estado. E como a região de Castelo fica bem para dentro do Estado, teoricamente não seria tão afetada.

“Fichas na mesa” e pé na estrada! Saímos de Vitória às 5h da manhã sob chuva, mas assim que chegamos na região de Pedra Azul, a chuva cessou e o céu azul apareceu timidamente. Dali até a região de São Manuel foram mais 50km e nada de chuva pelo caminho. Aparentemente as nuvens se concentraram em volta do Pico do Forno Grande que estava funcionando como um atrator de chuva.

Pedra Azul com nuvens e céu azul.

Encontramos o DuNada no caminho e fomos direto até a propriedade do senhor Agostinho. Na semana passada, já tinha conversado com ele sobre a intenção de escalar a montanha anexa a Pedra da Nogueira, então a conversa fluiu bem. De início, o senhor Agostinho não parecia “botar muita fé” nas nossas intenções, mas mesmo assim foi bastante cortês em nos mostrar o melhor caminho para chegar na base da montanha.

Separando o material.

A aproximação foi tranquila e rápida. Logo encontramos a base do grande totem/fenda. A primeira coisa que vi ao tocar na rocha foi que o artigo científico estava certo. A rocha tinha uma textura fina, logo sem agarras. Segunda coisa que chamou a atenção foi que a fenda era uma chaminé larga. De drone parecia mais estreita, mas era o que tínhamos para hoje.

O tempo estava estranho, uma hora parecia que iria chover, outra hora parecia que iríamos fritar na pedra, mas no geral estava suportável, considerando a clima atual.

Começamos a conquista subindo um trepa-mato na esperança de encontrar rocha limpa logo acima. Subi uns 15m e já fiz um zig-zag na corda e tive que estabelecer uma P1 para cortar o atrito. Dali para cima uma chaminé larga com um afunilamento estranho me aguardava. Mais uma vez não consegui conciliar bem o atrito e tive que estabelecer outra parada a uns 15m acima, num segundo platô.

Dali para cima parecia que a fenda iria estreitar e a escalada se tornar mais interessante, mas antes tinha que passar por uma “provação”, uma seção de oposição em Camalot #4. Para mim, essa largura é a pior que tem junto com a fenda de #.75. Nessa largura, a minha mão não é grande o suficiente para entalar nem para enfiar o ombro e subir em fenda de meio corpo. Por isso, preciso usar as duas mãos para fazer um entalamento conjugado (stacking) e ir subindo, um suplício. 

Passado trecho de #4 estabeleci uma parada numa grande árvore e chamei os meninos. O Graveto subiu de segundo, em oposição, sem esboçar muita dificuldade. O problema de subir guiando em oposição é que fica difícil ver e proteger o lance. Em Indian Creek ouvia muita gente gritando “no lieback” quando alguém fazia isso em top rope, justamente por isso.

Lance do Camalot #4.

A próxima enfiada parecia melhor. Cada vez mais, a fenda ia diminuindo de tamanho. Agora, a minha preocupação era a fenda sumir e virar um diedro cego num granito liso, mas por sorte, por mais 30m, o diedro se mostrou imaculadamente perfeita.

Graveto limpando a 4a enfiada.

Estabeleci a P4 no final do primeiro sistema de fendas, onde bati as primeiras proteções fixas da via. Até então havíamos subido uns 80m sem precisar bater nenhuma chapa.

A essa altura, eu estava começando a entender que essa conquista não seria tão fácil quanto estava imaginando. A pedra estava mais inclinada do que o esperado e a fenda estava consumindo bastante tempo e energia. Para piorar, havíamos levado poucas chapeletas. Se quiséssemos fazer cume numa única investida, teríamos que ser mais rápidos e econômicos na via.

E para piorar, enquanto contava as chapas, por descuido, acabei deixando cair uma chapeleta! Agora teria que substituir a chapeleta faltante por coragem!

A próxima enfiada seria uma transição de um sistema de fenda para outro, passando por um longo trecho de aderência. Por sorte, a pedra deu uma trégua na inclinação e a transição foi relativamente fácil.

A essa altura, nós já éramos a atração dos moradores da região. Conseguia ouvir as pessoas comentando sobre a nossa escalada e dava para ver que muita gente estava acompanhando de perto a nossa conquista.

A travessia nos levou a um segundo sistema de fendas, dessa vez um pouco mais suja. Pelo menos a pedra era menos inclinada, o que facilitou a conquista.

DuNada limpando a 6a enfiada.

Carreguei dois jogos no rack e subi largando peças com força pela enfiada até esticar a corda. Como subi muito pesado, resolvi deixar a mochila com a furadeira na parada e içar somente se fosse necessário. Assim que a fenda acabou, pedi para amarrar a furadeira na retinida para puxar a furadeira. Puxei 55m de retinida que teimava em prender em tudo que encontrava pela frente. Quando finalmente a furadeira chegou, descobri que os dois inteligentes esqueceram de colocar as chapeletas na mochila. Logo estava com a furadeira, mas sem as chapeletas para fazer a parada. Devido à vegetação não tinha como jogar a retinida de volta para içar novamente. Sem muita opção, estabeleci uma parada móvel e chamei os dois desatentes. No meio da discussão sobre o esquecimento das chapas o Graveto largou:

– O óbvio precisa ser dito!

Pronto, já tínhamos o nome da via!

Parada móvel usando a retinida como fita porque já não tinha mais fita.

A essa altura, o horário estava bem adiantado. Também dava para ver que a chuva estava nos rodeando e a qualquer momento poderíamos ser sorteados, então o sentimento de urgência se fazia onipresente.

A partir desse ponto, também comecei a ficar preocupado com o nosso estoque de chapeleta, pois o rapel parecia complicado com tantos zig zagues. Talvez fosse necessário bater algumas paradas de rapel ao longo da descida, logo teria que considerar isso na conta.

Estiquei a próxima enfiada economizando chapas. Pensei em esticar uma corda inteira, mas assim que encontrei um headwall resolvi cortar a enfiada para facilitar a virada final. Não tentem emendar essa enfiada!

A essa altura o DuNada já estava com a bateria na reserva. Perguntou se a via não poderia terminar na base do headwall, mas ali não parecia um “cume” de montanha. Contei umas mentiras e tentei levantar um pouco a moral para ganhar o último trecho.

Assumi a ponta novamente e parti para conquistar o último tiro. A virada do headwall ficou bem aérea e bonita. A luz dourada do final do dia trouxe um pouco de inspiração e acelerei para cima. Bati a parada num pequeno platô e chamei os dois. O meu relógio marcava 16h30. Foram aproximadamente 6h30 de escalada para conquistar 8 enfiadas, iniciamos a conquista às 10h30. Mas ainda nos restava o longo caminho de volta. Ali, já sabíamos que a descida seria a luz de headlamp.

Vista do cume para os lados do Forno Grande (encoberto).
Foto no cume com Forno Grande ao fundo.

Descemos estabelecendo uma linha de rapel utilizando as últimas 4 chapeletas que sobraram. Enquanto descíamos concentrados, ouvi alguém lá de baixo gritando:

– Fulano, o pessoal está descendo! Venha ver!

Assim que chegamos na casa do senhor Agostinho, toda famíla veio nos receber e contar que passaram o dia vendo nossa escalada. Pelos detalhes do relato deu para ver que realmente passaram praticamente o dia inteiro acompanhando a nossa escalada. E de quebra, ainda fomos recepcionados com um saboroso mocotó que desceu redondo depois de tanto esforço.

Ainda passamos um bom tempo contando as histórias da conquista para o pessoal. Depois dali fomos direto para casa da tia do DuNada em Apeninos onde passamos a noite.

Uma das coisas mais legais dessas conquistas é quando há esse engajamento dos moradores locais com o nosso esforço. Dava para ver e ouvir que eles estavam torcendo pelo sucesso da nossa escalada e ser recepcionado desse jeito, depois de um longo dia de escalada, fez valer qualquer esforço e sofrimento.

Linha da via

No dia seguinte, após uma boa noite de sono, ainda demos uma passada na Parede de Apeninos para conferir dois projetos que abrimos na semana passada. Fiz o FA da “Joelho de Porco” e graduei em VI. E o Graveto ainda fez o FA da “A saída me condena”, sugerindo um 7a/b. E o DuNada ficou dormindo na rede!

Apeninos!

Para mim, a região de Castelo tem a paisagem e as montanhas mais bonitas do Espírito Santo. A maioria das pessoas que vem ao Estado escalar nem passa por lá e vão logo para região de Pancas que também é muito legal. No entanto, ainda acho que Castelo seja mais completo por possuir uma geografia bem ímpar, com várias gemas escondidas que estão apenas ao alcance das pessoas que desejam se perder pelas estradas vicinais da região!

Montanhas do complexo de Alto Chapéu.

Gratidão ao DuNada por mais essa conquista e ao Graveto por voltar às conquistas depois de tantos anos off. Acho que a última vez que nós três nos reunimos para conquistar foi há 10 anos, na conquista da via “Ascendência Térmica” em Itarana.

Largartixa.

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