Amanhecer na Pedra Azul.
Quando nós falamos de montanhas capixabas, a primeira montanha que vem à cabeça das pessoas é a Pedra Azul. Todo mundo conhece a Pedra Azul, até os mais leigos no assunto já ouviram falar da tal Pedra Azul. Até porque a Pedra Azul é considerada como uma das principais atrações da região serrana do Espírito Santo.
No entanto, como uma ironia do destino, a Pedra Azul não está aberta para a prática do montanhismo, uma vez que a mesma fica dentro do Parque Estadual da Pedra Azul e lá dentro há uma regra que proíbe a prática do montanhismo dentro do parque. Essa tal proibição, inclusive, se estende para o Pico do Forno Grande, uma outra montanha icônica do Espírito Santo e do montanhismo capixaba (vide a última foto do post).
Desde que vim morar no Espírito Santo em 2007, essa proibição está em vigor. Para mim, isso é um contra-senso, uma vez que no mundo inteiro, os montanhistas são sempre bem-vindos nos parques nacionais e suas práticas são bem vistas, mas no Espirito Santo, os montanhistas não são bem vindos…
No “X” da questão há inúmeros fatores que poderiam caber num post específico só sobre o assunto, mas prefiro não ficar nisso.
A questão é que eu, e todos os montanhistas do mundo, querem ter o direito de usufruir essa montanha, afinal de conta, são os meus impostos que ajudam a manter esse espaço! Nessa linha, a Associação Capixaba de Escalada vem lutando nos últimos anos pelo direito de poder usufruir esse espaço juntamente com a direção do parque. É um processo lento e bem moroso, mas que nos últimos anos vem trazendo alguns resultados positivos.
No ano passado foi firmado um acordo oficial de cooperação técnica entre a ACE e o Parque da Pedra Azul e naquele mesmo ano, foi realizada a primeira ação conjunta, onde todos os degraus que levam ao cume da Pedra Azul foram retirados por apresentar perigo e substituídos por uma via de escalada bem protegida (IIo – IIIo grau).
Já nesse ano, dando continuidade ao processo de liberação, foi realizada no último final de semana, uma visita técnica à Pedra Azul para avaliar um via “pirata” foi aberta na face sul da pedra. Essa via foi aberta por um escalador local durante o período em que a prática do esporte era proibida e que num belo dia foi descoberta pelos guarda-parques.
Como não tínhamos maiores informações sobre essa via, um grupo de escaladores teve a incumbência de conhecer a via, fazer uma avaliação e gerar um relatório técnico oficial para o parque como parte do processo de liberação da escalada.
Vale ressaltar que esse post não faz parte do relatório técnico e que as impressões aqui descritas não refletem necessariamente a ideia do grupo. As impressões são pessoais e é apenas um relato de um dos membros que participou desse trabalho.
Para essa empreitada, participaram o Sandro, Zé, Porko, Xerxes e eu, além do Ricardo e seu pai, o Sr. Giraldo do Ecoparque Pedra Azul, que nos auxiliaram na parte da longa aproximação.
Chegamos na sede do Ecoparque por volta das 8h da manhã e após uma prosa, partimos para a longa aproximação de 2,5km até a base da via “pirata”. Durante a aproximação ficamos sabendo que a via “pirata”, na verdade se chamava “Mulambo” e que ela está com corda fixa em vários trechos.
Quando falaram que a via se chamava “Mulambo” já ascendeu uma luz amarela avisando: roubada à vista! Durante a aproximação também ficou claro que a face sul não era tão “descaída” como o esperado. E como o granito da Pedra Azul é muito lisa e sem agarra, se a pedra for muito inclinada não há a menor chance de escalar ela em livre, por isso comecei a imaginar que a linha transcorresse por alguma calha ou grota e o nome “Mulambo” era bem sugestivo.
Aproximação matinal. Longo trecho em costão até base da via.
Quase lá. Trecho com corda velha.
Após uma aproximação exaustiva com ganho de terreno representativo, incluindo um longo trecho de costão bem úmido, chegamos na base da via.
A via começa em A0 de grampo sobre grampo para ganhar um pequeno platô de mato para acessar a famigerada grota (chaminé) que seria a nossa companheira inseparável do dia!
Comecei os trabalhos passando o A0 em “french style” para logo em seguida encarar o trepa mato. Por sorte, ou azar, encontrei uma corda fixa velha, aquelas de amarrar boi, que me ajudou a vencer os trechos mais complicados até chegar na P1, um pequeno platô com um grampo de 1/2.
P1. Porko na poltrona esperando a vez e a corda fixa com um nó desconhecido.
Dali para cima, a linha seguia claramente pelo chaminé em direção ao cume do contraforte da Pedra Azul. Também ali ficou claro que a corda fixa que estava na primeira enfiada seguia pela linha a perder de vista. O Sandro assumiu a enfiada e foi tocando, de tênis mesmo, alternando trechos de escalada em rocha (chaminé), com trepa-mato e corda fixa até esticar 60m e fazer uma base em grampo simples no meio de uma chaminé claustrofóbica.
Quando cheguei na P2 tive certeza de que estávamos no meio de uma roubada clássica e que nós não iríamos baixar dessa montanha sob “condições normais”!
O Zé pegou a terceira enfiada e seguiu pela chaminé que a essa altura também servia de calha d’água. E como andou chovendo nos últimos dias na região, a calha estava em modo “play” e sobrou para o Zé esfregar as costas na chaminé molhada para chegar na P3.
Zé criando coragem para vencer a chaminé úmida com vegetação. Início da 3a enfiada.
P3. Parada em grampo único…
A chaminé seguia parede acima, mas a linha deixava ela no meio pela face da pedra até sumir na virada. Aquilo trouxe um pouco de ânimo para a galera que estava farto de chaminé molhada. Como a ponta da corda caiu no meu colo, fui feliz da vida que ia escalar na rocha, mas… Antes da face, tinha uns 30m de chaminé molhada com corda fixa que a essa altura já estava safo, mas logo acima tinha um daqueles mato de bambu impenetrável obstruindo a passagem. Quem já deve a infelicidade de enfrentar um daqueles sabe do que estou falando… Fui me movendo do que jeito que dava xingando o Deus e o mundo! Quando finalmente sai do mato e cheguei no trecho que ia por fora da chaminé descobri que a pedra era lisa demais para a inclinação e que não teria como escalar em livre. E pela quantidade de grampos, logo descobri que seria em artificial de cliff!
Como nenhum de nós cinco lembrou de levar um par de cliff, me restou subir puxando pelas cordas fixas e rezar para que ela não arrebentasse com o meu peso.
Cheguei na P5 com a corda de 60m no limite. “Equalizei” o grampo único com uma bonsai do jeito que deu e chamei o resto da galera. A essa altura, o desânimo da galera era geral. Assim, só o Sandro subiu pela corda fixa para finalizar a via e o resto do pessoal decidiu ir descendo devagarzinho com uma corda 60m que estava sobrando.
Sandro limpando a enfiada em A1 da 4a enfiada.
A última enfiada era um trepa-mato estranho que o Sandro venceu com certa velocidade graças a corda fixa que persistia desde a primeira enfiada!!
Chegamos no cume do contraforte da Pedra Azul por volta das 17h. Andamos um pouco pela mata fechada do “cume”, tiramos algumas fotos para o registro e tratamos de descer logo, pois tínhamos um longo caminho de volta e o sol já estava se pondo no horizonte!
Cume principal da Pedra Azul visto de um ângulo incomum a partir do contraforte.
Em 40 minutos, tudo vai ficar escuro e nós ainda estamos no cume do contraforte… Roubada à vista…
Se a subida foi ralação pura, a descida não poderia ser diferente! E na escalada, há uma regra de ouro que diz que a subida é apenas a metade do caminho, e esse dia, a regra fez jus total.
Já no segundo rapel de 60m, ao puxar a corda, ela laçou um olhal do trecho em artificial e não desceu por nada. Sobrou para o Sandro a função de enfrentar novamente a “floresta impenetrável de bambu” para conseguir soltar a corda!!!
Após o contratempo partimos para o próximo rapel de 60m. E na hora de puxar a corda novamente… Nada de a corda descer… Dessa vez, por causa das cordas fixas que dividiam o olhal do grampo, a nossa corda ficou presa pelo atrito e não conseguia correr pelo olhal!!!! Ai, sobrou para mim, subir 60m pela chaminé molhada para liberar a corda!!!
Depois de tanto perrengue, os outros rapeis foram até “tranquilos”, tirando que chegamos morrendo de frio e fome na base da via e que ainda teríamos que enfrentar mais 1h de caminhada pela mata para chegar até a sede da fazenda…
Últimos raios de sol iluminando o Pico Forno Grande, outra pedra proibida.
Não posso falar que foi uma escalada tranquila, foi muito mais ralação do que escalada em si. Também não sei se a galera vai animar de encarar essa depois de ler um relato desses, mas a via está lá.
Vale lembrar mais uma vez que A ESCALADA CONTINUA PROIBIDA NA PEDRA AZUL. E que essa escalada (ou roubada) foi autorizada pelo parque para que pudéssemos fazer um levantamento dessa via para ser incorporado no projeto de liberação da escalada no Parque. Por isso, solicito encarecidamente que não atrapalhem o andamento do projeto escalando às escondidas, pois estamos no caminho para a liberação da escalada!