Sábado
Na semana retrasada, os escaladores Sandro Souza e Xerxes Zampier conquistaram uma nova via em móvel batizada de “Misantropo” (VI) – 10m, no Parque Municipal da Manteigueira em Vila Velha.
É claro que essa notícia correu rapidamente entre os escaladores e logo fiquei sabendo. Mas primeiro: onde fica Manteigueira? Que parque é esse? Confesso que nunca tinha ouvido falar desse lugar, embora o parque exista há muito tempo. Depois, uma via de fenda de mão em plena Vila Velha?
Dias depois, saiu um vídeo no IG da ACE e a via realmente pareceu ótima, até demais para os nossos padrões.
Na última sexta-feira, o Eric jogou a proposta de fazer uma escalada de meio turno, no sábado à tarde, para conhecer a única via que tem lá.
Tomamos um baile para achar o bloco. Beta errado, falta de estudo, tudo isso nos custou uns 30 minutos de atraso, mas no fim achamos a tal fenda. Na verdade, ela fica atrás da “Gruta do Morcego” que é uma das atrações do parque. A gruta não passa de uns matacões empilhados. Já os morcegos não estavam por lá. Aliás, o parque em si é bem simples. É uma ilha de área verde com estrutura bem básica. E pelo pouco que vimos, não é muito frequentado. Talvez porque seja muito pouco divulgado. Os únicos frequentadores mais assíduos são os mosquitos pela proximidade com a área do mangue.
Assim que chegamos, o PA, Francisco e o Zé também apareceram para conhecer o bloco.
De cara vi que a qualidade da fenda, incompatível com a nossa realidade, se deve ao fato dela ser artificial. Provavelmente no passado, antes de virar parque, a área era uma antiga pedreira de matacões. E durante a extração, esse bloco rachou e formou essa fenda. A fenda é tão recente no tempo geológico que ela ainda tem borda afiada, que por sinal é bem cortante.
Na tentativa à vista, perdi o equilíbrio no crux e acabei caindo. No segundo giro, deixei cair o Camalot #4 e tive que descer para pegá-lo. Só fui mandar na terceira entrada. Fenda tem dessas coisas…
Betas para mandar a via: 2x Camalot #3 e #4. O #5 é opcional. Outro beta muito importante: Usar camisa de manga longa e/ou protetor de antebraço, além da luva claro!
Domingo
Já no domingo, Eric e eu fomos checar uma parede na face norte do monte Mestre Álvaro na Serra.
O Mestre Álvaro é a maior montanha da região metropolitana com mais de 800m de altitude. É um lugar incrível com uma vista super privilegiada de toda região. Alguns anos atrás, subi até o seu cume com a Paula numa excursão com a turma do trabalho.
E logo que vim morar no Espírito Santo, Afeto e eu demos muito roles nessa montanha explorando os boulders da região. Mas depois disso, acabei não voltando mais por uma série de motivos. Problema de acesso, histórico de assalto, motivação…
Nessa parede, em 2018, o Baldin, Brunoro e Zudivan conquistaram uma via tradicional acessando a montanha pelo Sítio Recanto do Mestre Álvaro, uma área de lazer bem bacana que fica aos pés da montanha e também onde inicia de uma das trilhas que leva ao cume passando pelas Três Marias.
A nossa motivação nessa face eram as fendas que vi numa foto do IG. Pela foto parecia que iria sair umas 3 vias em móvel de uns 60m. E se tudo isso se confirmasse, seria um incrível setor de escalada esportiva tradicional a menos de 30 minutos de Vitória!
É claro que o Eric não compactuava da minha teoria. Para ele, aquilo cheirava forte a furada, e das grandes, mas mesmo assim ele deu um crédito, vai que…
Chegamos no sítio por volta das 7h da manhã e logo encontramos o Sr. Gil, o dono das terras. Como o Baldin já tinha ido antes, a conversa fluiu bem e o Sr. Gil é bem gente boa. Agradecemos a passagem, pegamos a dica e nos despedimos com a promessa de que voltaríamos para almoçar no restaurante.
A aproximação pelo pasto foi bem tranquila, mas assim que entramos na mata sentimos falta de um facão que acabou ficando no carro. Garoteada #1.
A essa altura, a teoria do setor tradicional também já tinha ido por água abaixo. Se a gente conseguisse uma linha já seria lucro, porque 2 das 3 fendas não eram bem fendas, mas sim fraturas com calha. Depositamos as nossas esperanças na última possibilidade e fomos buscar a base.
Chegar na base não foi trivial, pois um pouco antes de chegar nas fendas, encontramos um contraforte que deu trabalho para vencer. No fim, subimos por um trepa mato trabalhoso até um platô e dali fomos tentar ganhar o platô seguinte, mas logo descobrimos que esse segundo lance seria mais difícil do que o esperado. O granito do Mestre Álvaro é bem homogêneo e praticamente não tem agarras. Eu já sabia dessa característica da época que ficávamos catando boulders na região. A montanha é crivada de boulders, mas a maioria é sem uma única agarra.
Resolvemos iniciar a conquista dali mesmo, pois não teria como vencer de tênis. Depois, descobrimos que esse lance seria um dos crux da enfiada (Vsup). A ideia era abrir uma via curta, mas o traçado em zigue-zague da fenda mostrou que seria preciso dividir em duas partes para cortar o arrasto. Assim, eu comecei abrindo os trabalhos com a incumbência de vencer o lance que não passamos de tênis, ganhar a fenda em invertida, fazer uma travessia por baixo do teto e estabelecer uma parada antes da fenda quebra para direita por uma fenda em diagonal.
A travessia à esquerda pela base do teto se mostrou muito estética. Na verdade, quando estava na travessia achei ruim, mas assim que cheguei na P1, em móvel, e vi o Eric subindo, ficou claro que a via estava nos surpreendendo.
Nós não tínhamos a ideia de abrir uma via com várias enfiadas, então estávamos totalmente despreparados para isso. Garoteada #2. Eu estava com uma cadeirinha de esportiva e não tínhamos nem uma mochila para levar as provisões para cima, mas como já estávamos ali e a parede parecia que iria acabar logo depois, fomos tocando.
A segunda enfiada ficou com o Eric que abriu uma bela diagonal toda em móvel passando por uma virada em fenda de mão cinco estrelas.
Assim que ele chegou num platô, “o que era bom acabou-se” e a fenda sumiu. Como a linha iria seguir pela face com mudança de ângulo, resolvemos estabelecer uma parada ali mesmo.
Até ali, a via por si só já estava ganha, mas como estávamos com tempo e como o cume parecia “logo ali”, resolvemos continuar até o cume da pedra.
Deixei todos os móveis para trás e segui a conquista ao melhor estilo capixaba: furadeira nas costas e pé chapado na aderência, rezando para não estourar o cristal. Nesse trecho, o granito se mostrou bem emplacado, com muita coisa quebrando. O lado bom foi que sempre que tirava uma laca solta, aparecia uma agarra, mas mesmo assim a enfiada não ficou dada. Acho que VI seja um grau justo para enfiada que ficou com 30m e 5 proteções.
Pelas contas, já tínhamos gasto 10 chapas das 12 que levamos. Garoteada #3! Sempre que vou abrir via levo umas 20 chapas porque é o que uma carga de bateria faz, mas nesse dia estávamos muito amadores.
O Eric chegou na P3, olhamos para cima e vimos uma árvore a uns 30m onde parecia ser o fim da parede. Entreguei para ele 2 chapas e disse: use com sabedoria!
Nada é pior do que ter que conquistar poupando proteção, mas aparentemente a parede parecia mais de boa. Assim que ele subiu uns 15m descobriu que a parede não acabava ali. Na verdade, estávamos chegando na metade da parede! Garoteada #4!!! E nunca iríamos chegar no cume com mais 2 chapas.
O Eric subiu até gastar as duas chapas e depois descemos.
Se demos muito mole nesse dia, pelo menos estávamos bem felizes com a qualidade da via. Foi uma coisa do tipo: da empolgação para realidade e terminamos surpreendidos!
Por volta das 13h chegamos na base da via e iniciamos a descida. A essa altura, o Sol estava no modo “maçarico” e a gente só pensava no almoço do Recanto.
Descer de uma conquista e poder almoçar uma comida caseira a fogão de lenha é um luxo que não tem preço. Nos esbaldamos comendo e o mais incrível: 30 minutos depois já estávamos no conforto do lar! Puro luxo!
Notas:
1a enfiada: 2x #4, 1x #1, #2 e #5. Parada #.75-#2.
2a enfiada: 2x #2, #3, #4.