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Língua de Boi

Em abril deste ano, Afeto e eu fomos aos Cinco Pontões de Laranja da Terra e repetimos a Filhote da Foca. Na ocasião, a missão incluía ainda repetir o artificial da Língua de Boi, mas no primeiro dia acabei me machucando na trilha ao segurar num espinho. A minha mão inchou de um jeito que mal consegui escalar a Filhote. Assim tivemos que adiar essa escalada.

No último final de semana, o Afeto voltou novamente ao Estado e a mensagem de texto estava clara: vamos voltar à Língua de Boi!

A Língua de Boi foi conquistada em 1974 pelos escaladores cariocas Jean Pierre, Carlos Braga, Heckel Bastos, Luiz Franca, Marcelo Werneck e Orlando Butler após 5 dias de trabalho para vencer a vertical face leste em artificial fixa. O relato da conquista está no livro “Horizontes Verticais” (2006) do Jean Pierre.

Novembro já não é uma boa época para fazer parede por aqui. Em geral, é um mês chuvoso e quente, mas esse ano anda bem atípico. As chuvas não chegaram e a temperatura segue relativamente amena.

Li o relato da conquista do Jean Pierre no livro Horizonte Vertical e mergulhei no tempo e na história. Logo percebi que as paradas das enfiadas são em grampo simples de 3/8, original da conquista, ou seja, com 48 anos. Fiquei um pouco apreensivo com isso e resolvi procurar o Jean Pierre para saber se poderíamos duplicar as paradas, principalmente para o rapel. Em uma rápida conversa, Jean Pierre gentilmente autorizou a duplicação da parada. Assim, além da missão de repetir a via, tínhamos a responsabilidade de realizar essa intervenção numa das vias mais clássicas do Espírito Santo.

Durante os preparativos lembramos de uma conversa que tivemos em 2014, quando fomos pela primeira vez aos Cinco Pontões com Afeto e DuNada. Naquela ocasião o DuNada tinha comentado sua vontade de repetir a Língua de Boi. Assim, estendemos o convite e ele saiu de Cachoeiro até Itaguaçu para nos encontrar no Recanto dos Cinco Pontões na 6a a noite.

Mesmo sendo novembro, na 6a noite o termômetro marcou 14 graus célsius na região e passamos o maior aperto porque levamos pouca roupa. O frio só não foi pior que o ronco do DuNada.

Separando os equipos.

No dia seguinte, sábado, acordamos às 4h e às 5h seguimos rumo a base da agulha. Cortamos o caminho pelo atalho que leva direto à base da via pelo costão que existe entre a Língua de Boi e a Filhote da Foca. Esse atalho é ótimo, mas como todo atalho é uma subida solo bem íngreme. Não é o melhor café da manhã, mas é divertido, ainda mais com o DuNada.

Iniciamos a escalada às 6h30. Pelo croqui tinha pelo menos uns 200m de artificial em grampo de 1/4 nos aguardando. Se quiséssemos ter sucesso nessa escalada, teríamos que deslanchar bem essa parte que compreende quase a totalidade da escalada. Usei 4 estribos e duas autorreguláveis para ganhar velocidade.

Logo de cara descobrimos que a posição dos grampos de 3/8 não batia com os 2 croquis que tínhamos. Provavelmente era uma cópia da outra. Há grampos intermediários entre as paradas. Subimos duplicando as paradas oficiais com chapeleta Pingo e chumbador inox. A sessão de artificial em grampo de 1/4 é bem repetitiva e monótona, mas a gente ia subindo e se motivando com a real possibilidade de liberar as enfiadas. No próprio livro do Jean Pierre ele fala dessa possibilidade. Olhando por alto e com base na minha experiência, creio que todas as enfiadas do artificial podem ser liberadas e não deve passar de um oitavo. Os desafios para “destravar” as enfiadas serão a rocha com qualidade duvidosa e os grampos do 1/4 com quase 50 anos.

Artificial da 1a enfiada.
Limpando a 1a enfiada.

Subi abrindo as enfiadas, imprimindo velocidade para ganhar tempo, mas aos poucos comecei a observar que as contas não fechavam. As enfiadas tinham menos de 50m. Em nenhum lugar está escrito que cada enfiada tem 50m, mas pela extensão da via, 280m, cada enfiada teria que ter 50m para fechar as contas. 

Na P3, local onde foi o bivaque suspenso durante a conquista em 1974, passei a ponta para o Afeto seguir a escalada. Há tanto grampo de 1/4 nesse lugar que ficamos confusos no início. Logo descobrimos que a maioria dos grampos da 4a enfiada estavam escondidas pela vegetação rala. Esses grampos são extremamente difíceis de ver na rocha porque tem a mesma cor e forma da rocha e quando tem vegetação é muito difícil de achar.

P3, utilizado como bivaque durante a conquista.
Afeto na saída da 4a enfiada.

Vencida a 4a enfiada, sabíamos que tínhamos passado o trecho mais demorado e o cume estava perto. Uma travessia à direita nos levou a uma dominada para ganhar o platô principal até chegar na P6. Ali tivemos um pequeno momento de dúvida porque o croqui sugeria subir reto, embora a linha mais obvia fosse pela esquerda. O Afeto tocou uns 15m pela crista da esquerda e com muito esforço achou um grampo escondido atrás de uma bromélia. Mais um esticão de 15m e P7!

Afeto procurando o grampo da 7a enfiada.

A última enfiada foi apenas um protocolo e logo ganhamos o cume. Chegamos no cume ao meio-dia em ponto. A essa hora, o Sol estava onipresente e mostrando porque não é legal fazer parede em novembro. Como tínhamos subido preparados para o pior, tínhamos muita água e comida sobrando. Levamos uns 3L de água para cada um.

Assinamos o livro de cume, tiramos umas fotos, duplicamos a parada (era um grampo simples de 1/4!) e iniciamos a descida. Durante a descida contabilizamos as enfiadas e observamos que há um erro de metragem de uns 70m. A via, na verdade, tem uns 210m e não 280m como mostra o croqui. Pode parecer pouco, mas 70m numa parede com aquela inclinação faz muita diferença. Por isso, tratei de registrar direitinho todos os detalhes da via para elaborar um croqui mais acurado que está abaixo:

Assinando o livro sob o Sol do meio-dia.
Foto no cume.
Grampo Stubai de 1/4 do cume.

Espero que com base nessas informações mais pessoas se motivem a repetir essa via. Segundo o registro de cume, fomos apenas a oitava repetição em quase 50 anos.

  1. 26/02/1983 – Sergio Bruno e Sérgio Poyares
  2. 03/05/1995 – André Ilha e Ricardo de Moraes
  3. 16/7/1995 – Luciano Bender, Jeferson Monteiro, Jullian Kroenberge
  4. 06/07/1997 – Gustavo C, Ivan Carlos, Ricardo Moraes, Jean Pierre
  5. 08/01/2000 – Oswaldo Baldin e Pedrosa
  6. 07/07/2002 – José Márcio Dorigueto e Eduardo Camiletti
  7. 25/10/2005 – Anderson e Mônica

Com isso, o Afeto completou a escalada de todas as vias dos Cinco Pontões. E quando digo todas são todas mesmo! Parabéns garoto!

Foto clássica na base dos pontões.

Dicas para repetição da via:

Sombra pela manhã;

O artificial é longo e demorado. É muito importante saber a técnica de progressão em artificial fixo para não perder tempo ali;

Todas as paradas até a P4 são muito desconfortáveis, talvez um banquinho seja uma boa;

Os grampos de 1/4 estão em condições de uso. Alguns estão tortos ou mal batidos, mas nada excepcional;

Com 20 costuras curtas é possível escalar alternando os grampos de 1/4;

Levar uma corda dinâmica (50m) e uma estática para ascensão por corda fixa. Talvez seja possível descer com uma corda de 70m, mas não tenho certeza;

O uso de uma joelheira e luva para o guia é altamente recomendado porque a rocha é bem afiada;

O rapel da 3a enfiada em diagonal é disparado o pior!

Maciço Cinco Pontões e a vila homônima.

Comentários

2 respostas em “Língua de Boi”

“…o frio só não foi pior que o ronco do DuNada…” kkkkk. E essa difamação aí?! Nos veremos novamente nos tribunais!!!

Sensacional Japa, muito obrigado por compartilhar mais um cume com você e o Dunada, esse foi muito especial, opsma!!!

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