Atenção: texto longo!
O meu “caso” com o Vale de Yosemite (Califórnia, EUA) já havia sido “resolvido” em 2014 quando fui pela primeira vez com Murilo, Zé e Sandro. No ano passado, em setembro, voltei novamente ao Vale, mas dessa vez com a minha esposa Paula para um passeio mais turístico. Naquela ocasião, enquanto “zanzava” pelo Camp 4, reacendeu a gana de escalar novamente naqueles granitos lisos, então secretamente, prometi a mim mesmo que voltaria mais uma vez ao Centro do Universo para uma temporada de escalada.
No início do ano fiquei sabendo que o “Caiçara” Daniel Casas iria voltar ao Vale em 2023. Cantei a pedra e combinamos que em meados do ano bateríamos o martelo, a depender da agenda dele.
Conheci o Daniel em 2000 ou 2001 quando estava descendo para Argentina com o Kava e passou uns dias por Ivoti para uma escalada.
Em abril, quando batemos o martelo, iniciei os preparativos, pois sabia que o Dani tinha pretensões audaciosas. Tratei de fazer uma temporada bem consistente no Espírito Santo para chegar minimamente calejado ao Vale.
Mais para o final, o Otaviano Mones ficou sabendo da trip e entrou na barca para fechar a equipe.
O Otaviano é um crack master com ampla experiência em escalada de fenda com passaporte carimbando em vários países do mundo, incluindo também várias temporadas no Vale. Conheci o pela primeira vez em Piraí quando escalamos um dia no Setor Torre dos Ventos, com Ed e Willian.
Cheguei aos Estados Unidos com Otaviano, via Bogotá até Los Angeles, o Dani havia ido antes. Descansamos um dia na cidade e partimos de ônibus até Sacramento para pegar a velha van do Otaviano na casa do Zach. Dali cruzamos a Sierra Nevada passando por Lake Tahoe em direção leste.
Lake Tahoe
Em Lake Tahoe, passamos o dia no setor Lover’s Leap onde escalamos a famosa via Line (5.9). Uma fenda continua da base até o topo de uns 100m. Lover’s Leap sempre nutriu o meu imaginário pelo filme documental Master of Stone, onde o escalador Dan Osman faz um speed solo com direito a um bote duplo “hollywoodiano” no meio. Mesmo não escalando essa via, a visita valeu a pena. Sem dúvida um lugar para voltar com calma, pois há muita escalada de qualidade com acesso fácil.
Pine Creek
Dali, seguimos de van, que de tempo em tempo, precisava de uma pausa para resfriar o disco do freio para descer a Sierra Nevada e cair no deserto.
Descemos até Bishop, passando por Mono Lake e Mammoth Lake, sempre zanzando sem destino e planejamento. Viajar ao vento, sem destino e uma linha de chegada foi ótimo. Permitiu pensar muito mais nas coisas importantes do presente sem a ansiedade do futuro.
Nesse lado do Sierra Nevada, o Otaviano me apresentou o Pine Creek, um pico de escalada perto de Bishop que lembrou um pouco Arenales na versão sem caminhada. Ali, ele me aplicou direto na via Sheila (VI), um diedro perfeito de mão de uns 40m toda protegida em móvel. Sheila foi a materialização do sonho da via Pig (V) no Behne em Ivoti – RS. Sempre que escalávamos essa via ficávamos falando quão legal deveria ser escalar um diedro de mão eternamente. E Sheila é justamente a versão infinita da Pig!
De Pine Creek seguimos zanzando rumo ao Vale de Yosemite pelo Tioga Pass. Para mim, esse passo é uma das estradas mais cênicas dos Estados Unidos. Já passei duas vezes por lá e nunca me dessensibilizo.
Vale
Chegamos ao Vale após uma semana rodando pela região e logo encontramos o Daniel no Camp 4, juntamente com o Claudiney (PR) e o Nick (BRA).
No dia seguinte a nossa chegada, o tempo deu uma virada e passei os dois dias seguintes fazendo boulder com a galera local no Camp 4. Na trip de 2014 tivemos pouco tempo para fazer boulder no Vale, então esse tempo ruim calhou esse anseio. Os boulders no Vale não são fáceis. Requer um processo de entendimento e aprendizado, mas foi uma experiência muito bacana.
Após a chuva partimos para uma tarde de cragging pelo Vale, outra coisa que não fiz na primeira vinda que queria muito ter feito. Fomos ao Setor Reed Pinnacle’s onde escalamos dois clássicos do setor. Aquecemos num 5.10b, Stone Groove, que parecia fácil, mas não era. Depois fomos num 5.10c clássico do setor, Lunatic Fringe. Fendona de 40m de lamber os beiços, com um crux de placa no final que só passei porque sou “cria do granito capixaba”.
Esse dia foi muito importante para levantar minha moral, pois estava com muita dúvida sobre o meu desempenho e a tarde ajudou a calibrar onde eu estava no “contexto Yosemite”. Aqui, o fato de você escalar nono grau de chapa, não quer dizer nada.
Big wall
A princípio nós não havíamos combinado nenhuma escalada grande. Tínhamos apenas uma vaga ideia de fazer um big wall. Na temporada passada, o Dani havia tentado, sem sucesso, a The Nose no El Cap. O Montes também havia tentado a mesma via, porém numa outra ocasião. Então a The Nose seria a opção mais natural, mas o “narigudo” tem um grande problema: a fama, o crowd. Entrar na The Nose exige, além de experiência, uma boa dose de sorte para contornar todos os problemas de tráfego. Um fator que fica fora do nosso controle.
Pensamos na Freerider, via ao lado, mas o efeito solo do Honnold também deixou a via em evidência e consequentemente com muito tráfego.
A terceira opção mais acessível seria a via Lurking Fear, descrita no guia de escalada como o big wall mais fácil do El Cap.
Embora fácil e mais curta, Lurking tem dois problemas: a aproximação, uma das mais longas do El Cap, 1h30 a 2h com peso; e o topout onde é preciso içar o bag por uma longa rampa.
Tirando isso, a via tem 19 enfiadas, grau máximo em artificial de C2+ e lance em livre de 4o grau. Caso opte escalá-la em livre na íntegra, o grau máximo é um 9c/10a. Pessoas normais escalam em 4 dias. Já imortais fazem em um dia, ou até mesmo combinam com outras vias na mesma puxada.
No fim, acabamos escolhendo a Lurking por ter menos tráfego. Agora, pelas novas regras do parque, é preciso emitir uma permissão de big wall junto aos guardas, o que permite ver quantas pessoas estão na via, teoricamente.
Usamos a estratégia padrão, um dia para porteio de material mais água, fixar as 3 primeiras enfiadas e entrar com tudo na parede no dia seguinte para mais 3 dias, duas noites.
Separar equipamento já está no meu sangue, faço isso todo final de semana, mas nunca separei tanto material em uma única tacada. A lista era enorme e o fato de fazer tudo meio no improviso do camping deixou tudo mais complicado.
Basicamente levamos 3 jogos de móvel até o #3, dois #4 e um #5 (tks Nick). Dois jogos de nut offset, 15 costuras, cliff de agarra, cam hooks, Aliens, RP’s e um jogo de Camalot offset. Além do básico de sempre, mosquetões, fitas, cordeletes, cadeirinha e sapatilha… Separamos 3 cordas, uma para guiar, uma para içar e uma tagline. Optamos por levar uma dinâmica para içar em vez de uma estática, pois em caso de dano na corda principal ainda teríamos uma segunda corda. Dica do Nick!
De água, levamos 8 galões, algo como 30L. Ou 2L de água por pessoa dia.
De comida levamos comida liofilizada para janta e barrinha de cereal e cereais para o dia. Além de café, pão e repositor eletrolítico.
Como estávamos em 3, foi preciso levar um portaledge, pois os platôs acomodam apenas duas pessoas.
Tudo isso foi empacotado em dois haulbags que totalizaram 110kg (pesamos com uma balança de mão).
Não preciso nem dizer que o porteio foi o crux da escalada. Levamos 2h para fazer a aproximação, com direito a escalaminhada por corda fixa e ganho de elevação na ordem de 200m.
No mesmo dia do porteio, para adiantar o serviço, cada um guiou uma enfiada para deixar a via equipada até a P3. As duas primeiras enfiadas são um misto de artificial fixo com passada de cliff em agarras.
Ali começamos a entender que a via não seria tão fácil quanto imaginávamos. No nosso imaginário faríamos esse trecho em french free, mas não teve jeito. Como ninguém escala 8c Yosemite, tivemos que calçar o estribo da humanidade e subir em artificial.
A 1a enfiada ficou com o Montes que escalou rápido o primeiro trecho, mas no artificial levou um bom tempo negociando as passadas.
A 2a ficou com Dani que seguiu o bolt leader. Como ele e mais baixo que um americano médio, sofreu para buscar os lances.
A 3a enfiada ficou para mim. Seria o primeiro crux da via, lance de C2+, progressão em laca expansiva e um pêndulo com back cleaning para chegar na P3.
As passadas não foram difíceis, mas foi um banho de humildade para respeitar os conquistadores.
Na nossa repetição tínhamos 3 equipamentos que foram, a meu ver, essenciais, mas que os conquistadores não tinham a disposição na época: Totem Cam, em especial o preto. Tínhamos 3! Essa peça é fantástica!!! Peça coringa nos pitons scars e fendas finas; também levamos um par de Cam Hook, outra peça relativamente moderna que foi outro coringa. A rapidez e a consistência das colocações pouparam muito tempo onde, ao contrário, teríamos que ficar colocando micro nut e testando com peso. O terceiro equipamento foi o estribo estilo Yates! Usamos um da BD, mas o espírito é o mesmo. Em conjunto com as autos reguláveis da Petzl foi um grande adianto.
Da P3, descemos fixando duas cordas de 60m e dali baixamos para o Camp 4. Essa descida foi muito importante para nós porque permitiu fazer mais alguns ajustes finos de logística.
No dia seguinte partimos do C4 com a missão de levar os bags para a P3 e descer até a base da via para o bivaque.
O hauling inicial foi terrível! O conjunto estava muito pesado! Tive que usar um sistema de redução 3:1 para conseguir tirar o peso do chão. Para piorar, a parada vertical não tinha uma única saliência para apoiar os pés.
Puxei os bags até o primeiro rapel, depois o Montes puxou até a P3 e descemos.
O bivaque na base foi um misto de paz, ansiedade e expectativa. Noite mal dormida, vendo o céu estrelando e imaginando como seriam os próximos dias.
Até onde vimos, a via estava vazia. E nada indicava que alguém estava por entrar na via. Só havia uma dupla fazendo manutenção na via da esquerda e outra dupla na direita numa outra via. Ou seja, era nós contra nós mesmo!
A noite foi mal dormida. Às 4h estávamos em pé e logo nos atracamos nas cordas fixas a luz das lanternas, pois a agenda do dia estava bem cheia.
Assim que amanheceu dei sequência a escalada que agora seria em blocos para otimizar as transições.
Basicamente escalamos usando essa sequência: um ia guiando e assim que estabelecia a parada, fixava a corda. Pela tagline puxava a segunda corda do haul e também fixava na parada. O segundo subia pela corda fixa do haul e assim que chegava na parada montava o sistema de hauling. O terceiro liberava os bags e seguia pela corda do guia, limpando a enfiada e ajudando, caso necessário, a desprender os bags. Assim que todos, incluindo os bags chegavam na próxima base repetíamos o processo.
Basicamente usamos esse esquema em 99% dos casos. Só em um ou outro ponto fizemos alguma variação.
Toquei a 4a, 5a e a 6a enfiada, totalizando uns 100m. A navegação foi fácil porque basicamente via seguia o mesmo sistema de fendas. A dificuldade estava na seleção das peças, já que a fenda era quase sempre do mesmo tamanho. Tentei imprimir um bom ritmo, testando pouco as colocações para ganhar tempo e assumindo o risco de tomar um voo.
O sistema de progressão em artificial é uma coisa bem natural para mim, pois aprendi desde muito cedo lendo o livro Big Walls de John Long e John Middendorf (1994) durante a aula. Além disso, durante o longo voo de São Paulo até Los Angeles reli o eBook Higher Education de Andy Kirckpatrick (2018), onde pude dar uma reciclada nas técnicas mais modernas e relembrar outros detalhes.
O método de progressão seguia basicamente o seguinte sistema: escolhia uma peça, colocava na fenda e clipava um estribo com autorregulavem já presa nele. Progredia pelo estribo sem regular a auto e assim que chegava no ponto mais alto clipava o fifi no lugar mais alto do sistema, geralmente na própria peça. Olhava o lance seguinte, colocava a peça e clipava o outro estribo com a auto. Transferia o peso para o estribo superior, soltava o fifi e decidia se sacava a peça de baixo para usar mais acima, ou deixava para servir de proteção.
O processo era, por vezes, monótono, mas era divertido escolher as peças e fazer colocações criativas.
Assim que terminei o meu bloco, fui para o serviço sujo enquanto o Dani assumia o turmo dele.
Uma bela e fácil travessia à direita nos levou a outro sistema de fenda, dessa vez mais larga.
Na 8a enfiada, já com o sol se pondo no horizonte, o Dani pegou a enfiada mais exposta da via. Uma fenda larga de Camalot 4 a 5. Se tivéssemos mais um Camalot 4 e um 5, teria certamente sido muito mais tranquilo, mas com apenas um #5, o Dani deu uma boa fritada.
Assim que o Dani completou o turno dele, o Montes assumiu a ponta da corda com uma missão bem difícil pela frente: tocar mais duas enfiadas para fazer um pêndulo para fora da via até o ponto de bivaque indicado no croqui.
Enquanto ele guiava a 9a enfiada, fomos ultrapassados por uma dupla de escaladores locais que estavam fazendo The Nose e Lurking Fear em 24h. Devido ao cansaço, a dificuldade da enfiada e a falta de iluminação, os dois acabaram demorando bastante na ultrapassagem, o que nos deixou em maus lençóis. A 10a enfiada era um C2+, outro crux da via, mas a essa altura do campeonato, não tínhamos mais condições de tocar mais uma enfiada.
Assim resolvemos montar o ledge na 9a enfiada, num pequeno totem inclinado que mal servia para sentar, dormir então, sem chance. Com apenas um ledge, o jeito foi nos amontoar em três.
Fizemos a janta no ledge e logo nos preparamos para dormir. Estávamos tão cansados que montamos o ledge meia boca.
Assim que me deitei, não dormi, desmaiei de cansaço. Algumas horas depois, acordei sentindo um desconforto na perna. Olhei em volta e notei que fui escorregando no ledge. Também notei que o meu lado estava mais baixo que antes. Tentei me ajeitar para cima quando de repente, o lado oposto subiu repentinamente e num piscar de olhos, o ledge virou e fui jogado para baixo com o Montes caído por cima de mim e o Dani por cima do Montes.
Todo mundo acordou em pânico sem entender bem o que estava acontecendo. Tentei me mover, mas como os meus dois pés estavam dentro do saco de dormir, fiquei impotente. Tentei puxar a auto regulável, mas ela ficou acavalada e não travava com o peso.
Esperei o Dani sair, depois o Montes, para finalmente conseguir me mexer. Enquanto isso, fiquei virado para baixo olhando o vazio negro abaixo de mim.
Refeito do susto, peguei uma rede que havíamos levado de emergência e rapelei uns 5m até encontrar duas fendas paralelas. Entubei um #5 num lado e um #1 no outro e estendi a rede num pequeno diedro que permitiu me deixar afastado da pedra. Sem dúvida, a experiência de montar rede nas paredes do Espírito Santo me ajudou a resolver esse problema com bastante rapidez.
Uns 15 minutos depois do ocorrido todos nos já estávamos deitamos novamente. O Montes e o Dani no ledge e eu na rede mais abaixo.
No dia seguinte acordei no susto. O dia já estava claro e os dois, mais acima, já estavam preparando o café. Sem dúvida, o dia e a noite anterior foram bem pesadas, pois costumo acordar antes do amanhecer.
Tentamos agilizar o café e a desmontagem do bivaque, mas a nossa moral estava baixa. O incidente do ledge abalou a moral, mas decidimos seguir escalando.
Peguei o primeiro bloco da manhã para tentar ganhar tempo, pois com problemas da noite anterior o nosso cronograma ficou bem comprometido, pois nesse dia teríamos que chegar na 14a ou 17a enfiada onde há bons platôs.
Toquei até a 12a, fazendo mais um bloco de 3 enfiadas. Durante a 10a enfiada, mais uma vez fomos ultrapassados por uma dupla escalando em speed. Mais uma vez fomos ultrapassados num lugar complicado, o que acabou nos atrasando um pouco.
A 12a enfiada foi outra travessia, dessa vez à esquerda que nos levou para dentro do El Cap, com isso conseguimos nos esconder um pouco do sol que estava castigante.
A partir dali, a pedra parecia dar uma trégua e finalmente me senti mais confortável, mais em casa. O Dani tocou o bloco seguinte com a missão de chegar antes do anoitecer na P14, local do nosso bivaque.
O Dani chegou com as últimas luzes do dia na P14 e restou a mim e ao Montes limpar a enfiada. A escalada em si não era difícil, mas o hauling se mostrou bem trabalhoso.
Chegamos por volta das 18h na P14 e finalmente pudemos fazer um merecido descanso e montar o portaledge decentemente.
Mais uma vez jantamos comida liofilizada e logo fomos nos retirar aos aposentos. Dessa vez, o Montes dormiu no platô. Dani e eu no ledge que montamos logo acima do platô.
Voltar a dormir no ledge depois da última experiência não foi fácil, mas logo fui vencido pelo sono e desmaiei.
No dia seguinte acordamos antes do amanhecer. Ainda no escuro tomamos um café da manhã relaxante e, ao mesmo tempo, ansioso, pois teríamos outro dia longo pela frente. Da P14 teríamos que ir até a P19 e tocar até o cume do El Cap para bivacar! Ou seja, tínhamos muito granito pela frente.
Tocar cinco enfiadas num dia seria muito fácil e tranquilo se não fossem os bags e o hauling que consumiam muito tempo e energia.
Dessa vez o Montes começou puxando o dia tocando por um diedro que parecia escalável. E assim o fez, escalando quando dava e artificializando os trechos mais difíceis.
A 15a e a 16a enfiada seguem por um grande diedro, a sombra da pedra e protegido do sol. Tirando o hauling foi uma escalada agradável.
A 17a nos levou ao famoso platô do Thanksgiving. Uma enorme gruta comprida que nos jogou novamente à direita, para o lado mais exposto ao sol.
Fazer o porteio pelo platô foi bem trabalhoso, pois não tinha como içar e tudo precisou ser no braço. Além disso, havia trechos mais expostos e com potencial de queda de pedra. Jogar qualquer coisa para baixo no El Cap é extremamente perigoso porque sempre tem gente embaixo.
Coube ao Dani tocar as últimas duas enfiadas. Para mim sobrou o ingrato trabalho de içar os bags no pior trecho da via. Esse trecho é tão ingrato que muitas cordadas descem do platô sem fazer as duas enfiadas finais, mais o costão até o cume.
Mais uma vez tivemos que lutar contra o tempo para conseguir chegar no cume antes do anoitecer.
A 19a enfiada foi a mais dura em termos de hauling devido à inclinação da pedra e consequentemente do atrito. Naquela hora desejei muito que tivéssemos as leiteiras que usamos no Espírito Santo e não aqueles sacos que pareciam de velcro.
Tirando essa parte, a nossa chegada na P19 foi épica e emocionante. Para coroar a escalada, o sol que sempre nos castigava nos últimos dias deu um verdadeiro espetáculo de luzes que fez nos esquecer um pouco o cansaço.
Na P19 empacotamos o que deu e fomos nos arrastando até o verdadeiro cume do El Cap.
Levar tudo para cima foi muito cansativo, mas por volta das 20h estávamos reunindo sob um grande pé de pinheiro retorcido para o nosso bivaque final.
A janta foi novamente a base de comida liofilizada. Mesmo levando 8 galões de água, ainda tínhamos uma quantidade bem razoável para pernoitar. A nossa sorte foi que no primeiro dia, ainda na base da via, encontramos água numa pequena nascente. Segundo o guia de escalada, essa nascente só fica ativa durante a primavera com o degelo, mas esse ano, devido à primavera atípica, havia água ainda em outubro. Outro fator que nos salvou foi a posição da via em relação ao sol. Em geral, a via recebe sol somente à tarde, o que permitiu consumir menos água, principalmente pela manhã.
A noite foi bem animada e divertida. Mesmo cada um tendo uma história diferente de escalada, havíamos realizado um grande sonho, que, por vezes, parecia muito distante e impossível.
A sensação de estar no topo do El Cap saindo por uma via como Lurking Fear pela primeira vez foi algo indescritível. Os longos momentos de hauling permitiram pensar em muitas coisas, pessoas e sobre o privilégio de estar vivendo toda essa experiência.
Não demoramos muito para nos recolher aos sacos de dormir, pois sabíamos que no dia seguinte seriamos agraciados por um dos espetáculos mais belos do parque, o nascer do sol com o Half Dome de primeira plano.
Mesmo cansado dos dias de escalada, botei um despertador para não perder esse espetáculo desde o início.
Assim, às 6h da manhã, ainda no escuro, já estava em pé para ver de camarote o espetáculo do sol. Por sorte amanheceu com algumas nuvens, indicando uma virada de tempo à frente. As nuvens deram um ar mais dramático para o espetáculo do nascer do sol.
Só sei que na próxima 1h30, tirei muitas fotos.
Depois tomamos um café da manhã despretensioso e separamos a carga para jornada final da grande aventura, a descida do El Capitan até o fundo do vale.
A descida foi bem cansativa, devido ao peso, ao cansaço e a dificuldade da trilha que incluiu 4 rapéis, totalizando uma perda de elevação de aproximadamente 1000m.
Chegamos no fundo do vale por volta das 14h. Dali fomos direto ao lodge comer um hambúrguer e comemorar a escalada.
Matthes Crest
Depois do El Cap, descansamos um pouco e logo começamos a planejar a próxima escalada. Para mim essa seria a última escalada da trip. Por mim ficaria de boa no Camp 4 vivendo a vibe do lugar e fazendo boulder com pessoas aleatórias que iam aparecendo. Aliás, essa foi uma das coisas mais legais que fiz várias vezes ao longo da estadia. Pegava dois crashs, thanks Nick novamente, e saia perambulando entre os blocos até achar alguma coisa. Logo, alguém se juntava e em pouco tempo havia uma meia dúzia de pessoas de diferentes lugares do mundo dividindo betas e tomando espanco nos famosos V2 glassy do Camp 4.
O Dani lançou a ideia de fazer a Matthes Crest em Tuolumme Meadows. A ideia era interessante, por ser um estilo de escalada bem diferente em um terreno de altitude (3400m). Não tenho muita facilidade com altitude, sofro bastante acima dos 3000m. Então sabia que seria ralação. Meu corpo ainda estava cansado dos dias anteriores, mas era a oportunidade da vida.
Assim, na 5a feira, dia das crianças, nas vésperas do meu retorno, acordamos às 4h, Dani, Claudiney e Fábio para empreitada.
Rodamos do Vale até Tuolumme por quase 1h30 e assim que chegamos no início da trilha quase virei picolé! Sem dúvida a temperatura estava abaixo de zero. Logo, o Dani puxou um ritmo frenético para vencer o primeiro ganho de elevação. A trilha segue basicamente parte do John Muir Trail com ganho de elevação na ordem de 450m vencido em 3h de caminhada (10km).
Chegamos na base a crista por volta das 9h da manhã. Não preciso nem dizer que cheguei morto na base.
O Dani e o Fábio abriram o trabalho puxando o primeiro trecho da crista que consistiu em subir por uma aresta de IV grau até a crista da pedra. Depois, a escalada seguiu caminhando por essa crista usando, ou não, a corda para proteção. A escalada em si foi bem fácil. Fiz toda ela com tênis de aproximação e usando algumas peças para proteção, pois estava subindo em simultâneo com Claudiney, mais um brasileiro, de Londrina, que esteve pelo vale nessa temporada.
Mesmo a escalada sendo fácil, a falta de ar deixou a escalada mais comprometedora. Os reflexos ficaram mais lentos e as arrancadas não aconteciam na velocidade desejada.
Em pouco mais de 2h chegamos no ponto mais alto da crista, onde há um livro de cume. Dali para frente a crista segue, mas a maioria do pessoal desce dali em 3 rapéis de 30m.
Em 2014 escalei o Cathedral Peak com Murilo, Ze e Sandro. Foi o nosso batismo em Yosemite. E agora, quase 10 anos depois, voltar novamente a essa região para fazer a última escalada da trip foi uma espécie de fechamento de um grande ciclo.
Sem dúvida essa trip exigirá um longo processo digestivo de tudo que vivenciei nas últimas três semanas.
Confesso que o relato está bem ralo em relação a toda experiência vivida, ainda continuo tentando assimilar as coisas, ao mesmo tempo que preciso voltar à rotina do dia a dia de trabalho. Não está sendo fácil.
Nas linhas finais faz se necessário agradecer o Otaviano pelas longas discussões políticas, ideológicas, filosóficas durante a primeira semana. E é claro por me aplicar nas gemas da Sierra Nevada. Agradecimento ao Dani por ter me convidado a voltar para esse lugar ímpar da escalada mundial e pela oportunidade de escalar o El Cap! Agradecimento ao Nick, pelas conversas, jantas, materiais emprestados e dicas quentes. Ao Claudiney por compartilhar a ponta da corda e o camping. Ao Fábio pelos momentos de conversa ao redor da fogueira. Ao Bonga e sua esposa que estiveram conosco no Camp 4. Aliás, o Bonga falou uma das coisas mais legais sobre definição de sorte: sorte é estar preparado para as oportunidades que surgem diante de ti! Agradecimento também aos brasileiros expatriados Bruno (Itália) e Murilo (Inglaterra) que também marcaram presença nessa temporada de outono.
2 respostas em “Yosemite 2023”
Seu fofo ?
Valeu demais!!!!!
Obrigado por topar essa parceria!!!!
Tu é o cara!!!!!
Dani Casas