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Criança chora, mãe não vê!

Costumamos falar, com uma boa pitada de inveja, que na Europa, você pode passar a vida inteira escalando sem repetir nenhuma via.

Esses dias pensei: se lá é assim, aqui no Espírito Santo podemos passar a vida inteira conquistando vias que ainda vai ter pedra para próxima geração! É provável que, antes, o sujeito fique sem dinheiro para chapeleta do que pedra para abrir via!

Moro aqui há 15 anos e ainda não conheço direito toda potencialidade do Estado. Tem regiões que nunca fui e outras conheço muito superficialmente. Uma dessas regiões fica entre as cidades de Colatina e Santa Teresa que fica a menos de 2h de Vitória.

Recentemente o escalador de Aracruz, André “Tesourinho” me convidou para conquistar uma linha que ele tinha visto nessa região durante suas andanças de bike.

O esquema do Tesourinho de ficar me convidando para conquistar já é manjado para mim: se ele acha uma parede legal e agradável, ele pega um amigo, outro, e vai lá conquistá-la; agora, se ele achar uma “bronca”, que é “bomba”, ele me chama!

E essa pedra era exatamente isso! Uma parede de uns 150m a 200m, fendada, com bastante vegetação e vertical com força! Uma bomba!

Quando ele me mandou a foto da pedra, na hora saquei que seria roubada.

Mas!

Eu tenho alguns princípios:

Se hoje sou o “escalador da capital”, quando comecei a escalar, eu era o “escalador do interior”. Nessa época de “vacas magras”, tive muita ajuda de escaladores mais experientes e da “cidade” que nunca negaram ajuda. Sou muito grato até hoje por isso. E como na vida “tudo que vai volta”, hoje entendo que chegou a minha vez de ser o “escalador da capital” e ajudar um pouco a escalada do interior.

A parede que o Tesourinho achou fica uns 7km adiante da Parede Polese numa região de beleza cênica ímpar. A parede fica no alto de uma serra (Bela Vista) e é um grande totem em diagonal à direita que forma um típico diedro por “desplacamento” do granito. O diedro em si parecia bem sujo e muito largo, mas no dorso visualizamos algumas linhas que sugeriam ser fendas. Foi apostando nessa ficha que montamos a nossa estratégia para atacar a parede.

Parede Bela Vista.

De início, o Tesourinho quis montar uma expedição de 5 conquistadores para investida, mas como a data acabou caindo no domingo de Dia das mães, acabou sobrando só Tesourinho e eu! Pelo visto, a mãe dos outros 3 salvaram, mais uma vez, os filhos de se meterem numa enrascada.

Começamos o dia fazendo o protocolo obrigatório de quem conquista vias. Procurar os donos das terras, explicar nossas intenções e solicitar autorização.

Uma coisa engraçada que me lembro é que o Tesourinho, durante a prosa, falou para dona das terras:

– Se tudo der certo, em breve, outras pessoas virão escalar essa pedra. Talvez umas 2 a 3 vezes ao ano!

E eu pensei comigo mesmo. Que mentira! Nunca mais vai ouvir falar de ninguém… Ninguém repete essas vias!

Depois, fizemos a aproximação pelo lado da montanha, por uma mata alta que nos levou a um pasto sujo, onde demos uma carona para alguns carrapatos.

Chegamos na base por volta das 8h da manhã e logo traçamos a linha pretendida. O objetivo era vencer a saia inicial, entrar no diedro e passar para o dorso assim que estivéssemos na altura das fendas.

Separando a carga. Os velhos levam mais peso…
Aproximação… Dando uma carona para os carrapatos.

A minha primeira impressão foi: cacete de parede inclinada!

Depois: parece tudo tão instável!

Dito e feito, subi uns 5m e uma agarra acima de qualquer suspeita saiu na minha mão! Por sorte estava bem estável e não passou de um susto, mas serviu de alerta para o que viria pela frente.

Começando os trabalhos. Foto: André.

Nos meus planos, iria tocar a primeira enfiada com 2 chapas fixas, mas logo a coisa começou a desandar e no fim, a enfiada ficou com 6 proteções fixas, alguns móveis estranhos e nem estiquei uma corda inteira. Segundo meus cálculos, levei 2h para conquistar os primeiros 20m da via. Tudo isso porque a rocha era muito podre. Provavelmente estávamos passando por uma área desmoronada recentemente no tempo geológico, por isso ainda havia muita pedra solta. Limpar o mínimo necessário para ficar seguro, mas, ao mesmo tempo, não tirar tudo para não ficar sem agarra foi o meu trabalho.

Para cima e avante!
Travessia do teto.

Montei a parada num lugar meia-boca. Já montei paradas melhores, mas o atrito estava me matando. Chamei o Tesourinho que subiu pelas cordas fixas, enquanto içava o haulbag que vinha livre tamanha inclinação.

Tesourinho limpando a 1a enfiada.

A enfiada seguinte dava desgosto. Era um misto de fenda, terra e cipó. Tentei sair para o dorso para sair da vegetação, mas descobri que a fenda ainda estava muito longe e o dorso sem agarras para ir pela face. Sem muita opção voltei para o diedro e comecei o jungle fight. Entalamentos de #4 em diedro pendente, sujeira, cipó que agarrava em todas as peças, queda em #3 e tudo isso para avançar 12m.

Saída da 2a enfiada.

Parecia uma eternidade, mas a essa altura o atrito estava me matando novamente e praticamente não conseguia mais avançar. O Tesourinho observou que dali eu poderia sair para o dorso e buscar a fenda, então resolvi estabelecer a P2 ali, numa ponta de laca envolta de rocha oca.

Com muita dificuldade achei uma rocha mais consistente onde fiz um furo. A broca entrou como num sabão! Equalizei com mais 3 peças e chamei o Tesourinho.

Tesourinho limpando a 2a enfiada.

Dali o Tesourinho viu uma possibilidade para ganhar o dorso novamente, vencendo uma agarra na aresta e virando para outro lado. Mas a missão de fazer isso, na prática, acabou sobrando para mim, claro. Palpiteiro!

Uma dominada na agarra em cliff me permitiu bater uma chapa e ganhar o dorso. Aquilo me deu uma enorme sensação de alívio. Alívio de sair dos matos. E inclusive de ter uma vista esplêndida do vale. Não é à toa que chamam a localidade de Boa Vista. Olhando para cima, nem tudo eram flores, a fenda ainda estava longe. O que estávamos vendo era uma fissura descontínua, mas logo fomos vendo que uma fissura descontínua “linkava” numa outra e depois numa outra até perder de vista.

Em algum lugar da 3a enfiada.

A fissura era a casa dos #.4 e #.5, mas não conseguia progredir em livre devido à sujeira e inclinação. Tive que ir em A1 limpando, o que se mostrou bem cansativo de demorado.

Aquela altura sabíamos que não iríamos bater no cume. Já eram por volta das 14h e nem estávamos na metade da parede.

Sempre que a fissura sumia, aparecia um trecho de parede lisa para ganhar outra fenda. Em livre, sem dúvida, essas passagens serão os cruxs da enfiada. Em 20m há três lances desses que estão protegidos com chapeleta. Sem ter escalado, imagino que a enfiada será um 7o grau. Com uma dúvida numa das passagens que poderá ser mais dura. Não tem como negar que a enfiada lembra muito a Serenity Crack em Yosemite. Talvez numa versão mini, mas a graduação parece bem semelhante, 5.10, ou VI (BRA).

Depois da primeira passagem, a minha bateria arriou. Desci e pedi para o Tesourinho subir. Ele subiu, bateu uma chapa e arriou. Subi novamente, ganhei uns 5m, bati uma chapa numa outra transição e logo em seguida bati outra chapa.

Nessa hora vi a cagada que estava fazendo. Tinha batido duas chapas a menos de 1m de distância, num lance que um #.1 poderia resolver. Ali acendeu a luz avisando que estava na hora de baixar e voltar outra hora com a cabeça e o corpo mais descansado.

Batemos em retirada e chegamos no carro por volta das 17h, ainda com luz e fomos direto num bar matar uma Coca-Cola, pois, mesmo sendo outono, e sob influência de uma frente-fria, o Sol nos castigou com força o dia inteiro.

Batendo em retirada. Foto: André.

Mesmo com tudo isso, saímos de lá prometendo que em breve voltaríamos para finalizar a conquista e quem sabe, voltar para realizar ascensão integral em livre.

Pelo menos assim estaremos cumprindo com a palavra de que a parede será frequentada de duas a três vezes ao ano. Pelo menos no primeiro ano!

Sorriso amarelo.

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