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King line Capixaba

O termo “King line” na escalada se refere a “uma via grande, difícil e acima de tudo estética”, termo esse, cunhado pelo famoso escalador americano Chis Sharma no filme homônimo.

Para quem gosta de conquistar vias, a busca pelo King Line é, sem dúvida, um dos motores que nos levam a desbravar as montanhas. Ao longo desses 15 anos no Espírito Santo sempre fui em busca do King Line. Segundo minhas contas, foram quase 250 vias conquistadas em terras capixabas e sempre que achava que tivesse encontrado o King line, parecia que faltava alguma coisa para ser o “Rei”! E essa “quase perfeição” era uma espécie de motivação que me fazia, e me faz, sempre buscar a próxima montanha, a próxima via, na esperança de encontrar a linha perfeita em todos os sentidos.

Totem Schmith

No mês passado, quando Iury e eu achamos o Totem Schmith e abrimos a via “Pote de Ouro” parecia que, mais uma vez, tinha “batido na trave. A via ficou incrível, mas ainda faltavam alguns elementos para ser um King Line. Duas semanas depois voltamos ao totem e começamos a Santo Graal, uma variante da “Pote de Ouro que mirava o cume do maciço principal. Durante a descida, comecei a vislumbrar uma possível combinação entre as duas vias que poderia ser o King Line que tanto almejava. Mas para realmente ser um King Line faltava saber como seria o último trecho antes do cume. Trecho esse que ainda não tínhamos conquistado nessa empreitada.

A janela

No início da semana, vi que uma boa “janela” estaria a caminho do Espírito Santo para o final de semana. Na 5a feira, a janela se confirmou, uma frente fria chegaria no estado no sábado, baixando a temperatura e trazendo muito vento para região. E o melhor de tudo, com bastante nebulosidade e sem possibilidade de chuva.

Estratégia

O próximo passo foi estabelecer a melhor estratégia para atacar a montanha. Poderíamos tentar um ataque leve e rápido, mas considerei a estratégia muito arriscada, pois não sabíamos o que nos esperava na parte final; A segunda possibilidade seria atacar em dois dias, onde no primeiro dia iriamos fixar corda até a última enfiada conquistada e no dia seguinte faríamos o ataque final, mas particularmente não sou muito fã desse tipo de abordagem; E a terceira opção seria escalar em “estilo alpino”, subindo com tudo sem baixar, numa investida de dois dias. Essa seria uma estratégia mais pesada, mas menos cansativa sob certos aspectos. Assim decidimos subir para dormir no cume do totem e fazer o ataque final no dia seguinte.

A escalada

Como até o cume do totem são “só” 115m, saímos sem pressa no sábado. Sai de casa às 6h da manhã e às 8h estava passando por Colatina para pegar o Iury e seguir até a localidade de Três Pontões de Pancas. Chegamos ao estacionamento do cafezal por volta das 9h 30 e iniciamos o pesado porteio do material até a base da via. Normalmente levamos uns 20 minutos do carro até a base, mas dessa vez, devido ao peso, levamos o dobro do tempo e só iniciamos a escalada por volta das 10h30.

Aproximação.
Caminhada de 40 min. até a base.

Iniciamos a escalada pela Santo Graal até a P1. Assim que cheguei na P1, fixei a corda para o Iury subir limpando com um haulbag nas costas enquanto eu içava a “leiteira”, o nosso segundo “bag“, com um sistema de redução.

Saída da Santo Graal.

Na segunda enfiada, toquei a fissura de dedo e depois abri uma variante para pegar outra fissura de dedo que me levaria a P2 da “Pote de Ouro”, esticando mais 35m de corda numa enfiada espetacular de V grau! O King Line estava se formando!

Pausa na P2.

Na enfiada seguinte, em vez de seguir pela “Pote de Ouro”, pela esquerda, abrimos uma variante à direita para buscar outra fissura frontal de dedo da Santo Graal para, mais a cima, voltar novamente à via “Pote de Ouro” e pegar a fenda de mão até a P3. Essa variação evita um trecho de fenda larga com bastante vegetação.

Terceira enfiada.
Entrando na fenda frontal da 3a enfiada.
Içando a leiteira.
Iury limpando a 3a enfiada.

Chegamos mortos no cume do totem por volta das 14h 30, após 4h de escalada e muita ralação para içar todo material.

Bivaque

Como chegamos antes do planejado, resolvemos fazer uma longa pausa antes de seguir com os trabalhos. Depois, aproveitando a luz do dia, montamos o nosso bivaque. Eu instalei dois bolts removíveis para rede que ficou imprensando entre a pedra e um pequeno diedro; E o Iury fez uma terraplanagem no chão para conseguir se deitar no pequeno espaço.

Nosso bivaque.

Assim que terminamos a “arrumação da casa” partimos para última missão do dia. Equipar a próxima enfiada conquistada da Santo Graal. Sob condições perfeitas, muito vento e frio, fui com muita “querência” para tentar liberar a enfiada seguinte. A enfiada começa em uma bela oposição toda protegida em móvel e depois segue por mais 8 chapas numa parede quase vertical em uma bela sequência de buracos rasos que lembrou muito as escaladas de Céüse (FR). Sem sombra de dúvida, uma das melhores enfiadas de parede que já provei.

Com a cabeça feita da missão do primeiro dia, ficamos no platô esperando o Sol se por no horizonte enquanto esperávamos o vento cessar um pouco para poder ascender o fogareiro e preparar a janta: macarrão instantâneo com bacon!

Às 18h o vento seguia incessante. Como a parede fica voltada para sudeste, pegamos todo poder da frente fria de “peito aberto”, sem nenhuma proteção.

Sem muita opção resolvemos preparar a janta na ventania, pois a fome estava maior do que a força do vento.

Por volta das 19h já estávamos entocados dentro dos sacos de dormir porque o frio estava incomodando. Para deixar tudo mais dramático, numa fenda que fica ao lado do platô, os morcegos ficaram “batendo altos papos” madrugada à dentro e atrapalhando o nosso sono.

Mesmo indo dormir cedo, um bivaque sempre será um bivaque e não conseguimos dormir plenamente. Por sorte, por volta da meia-noite o vento cessou e o céu ficou completamente nublado.

Ataque final

Às 5h da manhã, ainda no escuro, já estávamos em pé para começar o ataque final. Tomamos um café da manhã reforçado e nos “atracamos” na corda fixa para dar continuidade à conquista.

Amanhecer no platô.

Eu já sabia que a enfiada seguinte seria a mais dura, pois a parede parecia mais lisa e com menos buracos.

Logo na saída da enfiada seguinte consegui ganhar bastante terreno até chegar no primeiro crux, onde o mais difícil foi bater a chapa. Depois ganhei um pequeno platô descaído onde bati mais uma chapa. Dali para cima a visão era bem desanimadora, pois a parede seguia bem vertical e sem agarras. Por um momento achei que só daria para passar em artificial. Aí seria aquele detalhe do King Line que sempre acaba deixando a via quase perfeita. Fiquei pensando: poxa, a escalada estava perfeita até aqui e logo agora vai estragar tudo com um furo de cliff? Sem muita escolha, resolvi puxar a enfiada para esquerda para artificializar o lance seguinte. De repente, à direita, vi um buraco perdido e pensei: e se conseguisse pular naquele buraco? Poderia sair pela direita sem artificializar. Desisti de sair pela esquerda e fui tentar a sorte no buraco da direita. Não precisei dar o pulo, mas um pequeno lance delicado me levou ao buraco e bingo! Consegui sequenciar o lance sem artificializar. O sonho do King Line seguia em pé.

Saída da 7a enfiada.
Voando na 7a enfiada.

Bati uma parada logo acima num platô confortável após esticar uns 30m de corda. Esperei o Iury limpar a enfiada enquanto estudava o lance seguinte. A próxima enfiada parecia mais de boa. Já era possível ver bastante vegetação na parede que sempre sugere agarras e cume perto.

Estiquei uma corda cheia de 60m abrindo uma enfiada bem típica de Pancas: costão com agarras em cristal em terreno pouco inclinado. Bati três chapas nos primeiro 30m para ajudar na orientação e depois toquei buscando uma árvore que se destaca no cume. Infelizmente a corda acabou esticando antes de conseguir chegar na árvore e tive que estabelecer a parada um pouco antes da árvore.

Gritei para o Iury avisando que tinha chegado no cume. Logo em seguida, ele subiu escalando a última enfiada para completar a conquista às 9h30 da manhã!

Como é bom chegar no cume cedo da manhã. Tínhamos o dia inteiro para baixar da montanha com toda tralha, sem a menor pressa. 

Comemoramos a conquista e logo em seguida iniciamos a descida levando todo material para baixo. Por volta do meio-dia estávamos de volta no carro para, enfim, comemorar a conquista e ter a certeza de que abrimos uma King Line!

Cume!!!!

Sempre serei bem suspeito para falar das próprias conquistas, mas para mim essa é, sem dúvida, uma das melhores vias do Espírito Santo. Pode não ser a melhor via, mas é a via mais espetacular que eu já abri ao longo de mais de 27 anos de escalada! Isso tenho certeza.

Mais uma vez preciso agradecer ao Iury que participou de todas as investidas, desde a descoberta até a última. A ponta da corda pode até ser quente, mas o trabalho de apoio é essencial e fundamental para garantir o sucesso de uma conquista desse porte!

Traçado das vias.

Segue abaixo o croqui do que considero a King Line que é uma combinação das duas vias no trecho do totem:

Comentários

Uma resposta em “King line Capixaba”

Eu que agradeço Japa, essa foi incrível mesmo, tmj, muito orgulho de ter participado de algo tão especial.

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