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“Trem Fantasma” em solitária 

Em 2017, quando escalei a via Locomotiva 269 na Pedra do Túnel, do seu cume visualizei um projeto: escalar a via “Trem Fantasma” (5o, VIIa, E3, D2, 350m) em solitária. Foi uma ideia idiota alimentada pelo calor e emoção da hora, mas isso ficou na mente, guardada numa caixa onde ficam as ideias que de lá nunca deveriam sair.

O tempo passou e vire e mexe quando abria a “caixa proibida” aquela ideia surgia para me perturbar.

Escalar em solitária é, antes de mais, nada um jogo mental. Por isso, o primeiro passo sempre é se preparar mentalmente e ir apenas quando estiver com a “cabeça boa.

Ao longo da última semana comecei a me mentir confiante e fui construindo a ideia mentalmente. Nessa fase, o mais difícil é dominar o teu cérebro que constantemente tenta te sabotar criando mil desculpas para não ir.

Eu já tinha repetido essa via com a Afeto em agosto de 2008. Foi a minha primeira tradicional no Espírito Santo, mas eu não tenho muitas lembranças desse dia. Lembro que desescalei quase 50m porque entramos num lugar errado e que guiei uma aderência branca sem agarras. Infelizmente não fiz uma descrição detalhada da escalada no blog… o que poderia ter me ajudado muito nessa empreitada.

Pedra do Mosteiro em Ibiraçu.

A escalada

Sai de casa por volta das 8h20 da manhã de sábado. Como a parede fica voltada para leste, as melhores condições são à tarde, quando a via fica na sombra. Segundo o meu relato incompleto, diz que fizemos a via em 4h30. Ou seja, numa tarde, mas quando se escala sozinho, o ritmo é outro e sabia que iria levar mais tempo. Por isso teria que iniciar a escalada ainda pela manhã se eu quisesse chegar no cume com luz.

Por volta das 9h30 estacionei o carro ao lado do trilho de trem e fiquei procrastinando mais um pouco, na esperança de algumas nuvens esparsas se unirem para fazer uma sombra pra mim. O termômetro do carro marcava 30o graus Celsius e o dia prometia ser quente e abafado. Uma pequena brisa ajudava a disfarçar o calor. A previsão do tempo sugeria uma virada do tempo para o dia seguinte, com a chegada de uma frente fria avançando ainda no sábado, mas por hora nada de vento gelado.

Assim que me enganei que estava mais nublado, resolvi adiantar a caminhada. A aproximação é relativamente curta, mas tem um trecho final de mata suja que costuma dar muito trabalho. Não é à toa que algumas cordadas nem acham o início da via.

Dica: olhando a pedra de longe, tem três saias de vegetação na mata suja. A via começa à esquerda da segunda saia da direita para esquerda, a partir da cerca que separa a área suja do pasto limpo. Inclusive a dica é subir pelo pasto limpo e depois entrar à esquerda na mata suja. Levar facão!

Na base da via fiz mais um descanso à espera de um milagre das nuvens. Quando me enganei novamente de que estava nublando, iniciei a escalada. Isso deve ter sido por volta das 11h15.

Eu tinha planejado fazer as 3 primeiras enfiadas ao Sol e depois pegar as outras cinco na sombra. Assim adiantaria a parte fácil e reservaria as melhores condições para as enfiadas mais difíceis.

Embora a 1a enfiada fosse fácil (IV SUP) foi uma escalada difícil. Sol, calor, ansiedade e cansaço… Um misto de emoções que atrapalhou a minha concentração.

Pausa na P1.

Já na segunda, tirando o calor, fui conseguindo colocar a cabeça nos eixos e consegui fluir um pouco mais. A P2 é, sem dúvida, a parada mais desconfortável de toda via. Fica no meio da parede num trecho vertical. Por isso tratei de sair quanto antes, pois a P3 parecia mais promissora.

Saída da 3a enfiada.

Cheguei na P3 por volta das 12h30. A parada já estava na sombra e finalmente pude sair do Sol!!! A essa altura estava tão extenuado do calor que pensei em descer.

Resolvi fazer um descanso cronometrado de 20 minutos sem fazer nada para me recompor. Na escalada solitária não existe ficar sem fazer nada, pois sempre terá alguma coisa para fazer. Por isso é uma escalada sem descanso, mas precisava respirar um pouco. Tentei comer alguma coisa, bebi com parcimônia o pouco de água que tinha levado e tirei um cochilo falso.

A partir da 4a enfiada a via começa de verdade. Dali até o cume todas as enfiadas são mais exigentes e verticais.

Na saída da 4a enfiada há um crux de VI numa placa vertical com potencial de “carimbar” o platô. Quando se escala em solitária não tem como pedir para o Silent Partner deixar curta a corda. Como o sistema funciona por aceleração, como um cinto de segurança de carro, não há garantias de que o mecanismo acione no tempo desejado.

A 4a enfiada leva à base do que é descrito como a “enfiada da aderência”. Essa é a única enfiada que tenho alguma lembrança da escalada de 2008. Justamente por causa disso, sei que naquela ocasião eu peguei as enfiadas ímpares e o Afeto as pares. Cheguei na aderência crux meio desleixado e entrei meio de qualquer jeito. No segundo passo entrei numa “sinuca de bico” e tive que desescalar 2 movimentos. Desescalar foi mais difícil do que fazer o crux depois… 

Saída da 5a enfiada.

Cheguei na base da 6a enfiada. A próxima seria o crux da via. Em 2008 lembro que o Afeto pediu para guiar essa porque na 1a investida ele tinha caído. Um detalhe que gostaria de ter esquecido das lembranças. O crux de 7a da 6a enfiada é basicamente um boulder onde o difícil é subir o pé na mão. Para quem está acostumado a escalar no Morro do Moreno, o lance é bem tranquilo.

Passar o primeiro 7a ajudou a revigorar o ânimo, mas não ajudou a diminuir a sede. A essa altura, eu já tinha consciência de que havia errado feio no planejamento da água. Eu tinha levado 2L de água para passar o dia.

Descansei novamente na P6 que fica num platô confortável. A 7a enfiada é conhecida como a “enfiada do teto” por ter uma virada num pequeno teto. Por outro lado, essa é a enfiada que tem mais grampos na via, praticamente o dobro em relação ao resto. Nove grampos em 40m era um luxo! Quase padrão Céüse! A enfiada é bem de boa, um V de agarras abundantes. O teto é o crux da enfiada. Mais assusta do que parece.

Na virada do teto da 7a enfiada.

A P7 é disparada a mais confortável! Cheguei ali às 16h30. Eu sabia que em 1h o Sol iria começar a se por. Se descesse dali, chegaria no carro com luz, se fosse até o fim, certamente desceria no escuro. Tratei de decorar bem a caminhada de volta e toquei para última enfiada.

A última enfiada é a “cereja do bolo” da via. Conquistada em artificial e liberada posteriormente, é graduada em 7a. O crux é mais leitura do que força. A dica é ir pela esquerda e voltar para direita para costurar. Para mim o crux foi sacar essa costura. Depois a enfiada facilita, quando começam a surgir pequenos buracos perfeitos estilo Céüse. É uma das coisas mais impressionante que já via numa via. Parece que os buracos foram cavados porque formam uma sequência perfeita que leva ao fim. Se a via passasse 2m para o lado não teria esses buracos e o “buraco estaria mais abaixo”. O croqui descreve um lance exposto nesse trecho, mas com esses buracos é até divertido e o esticão fica bem tranquilo.

Cheguei na vegetação final às 16h45, após 5h30 de escalada e comecei a procurar a parada. Caminhei de um lado ao outro e nada. Achei o livro de cume e assinei sem ter costurado a parada. O tempo corria, o Sol já estava mais fraco e em pouco tempo escureceria. Procurei mais um pouco e nada. Resolvi subir mais para montar um rapel nos galhos e descer até o último grampo. Assim que comecei a descer achei a parada!!!!

Livro de cume original. Conquista de 1999.

Dica: a parada fica à esquerda de um diedro, acima do livro de cume. 

Iniciei a descida por volta das 17h.

Sempre que posso descer caminhando, prefiro essa opção devido aos riscos envolvidos no rapel, principalmente quando se está sozinho, cansado e no escuro, mas dessa vez não tive escolha.

Desci sem pressa e com atenção redobrada. Cheguei na base por volta das 18h para encarar a mata fechada novamente.

Uma parada para agradecer pela escalada.

Segue o croqui atualizado. No livro Escalada Capixaba tem esse croqui também, mas carece de informações e a metragem não está correta. Na croquiteca da ACE tem o croqui original da conquista, mas também está incompleto.

Por fim, é preciso registar a minha admiração a coragem dos conquistadores Zé Márcio e Renato que abriram essa via em 1999 a base de martelo e muita disposição. Mesmo sendo uma via antiga, é sem dúvida, uma via bem atual que ainda exige muita coragem e técnica atualmente.

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