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Via das Gargantas, repetição

Se eu tivesse que escolher a montanha mais impressionante do Espírito Santo, essa montanha seria os Três Pontões de Afonso Cláudio, não só pela beleza, seu valor histórico no montanhismo nacional e capixaba, mas também por toda relação que criei ao longo dos anos.

Amanhecer nos Três Pontões.

Conheci pela primeira vez, meio que sem querer, em 2009 quando fiz um rolê pelo Estado para desbravar o interior, pois havia acabado de me mudar para o Espírito Santo. Mas foi somente em 2014 com Afeto, Zé Márcio e o Amaral que pisei pela primeira vez no cume da Principal e do Tubarão.

No seguinte, voltei com Robindo, Afeto e DuNada para concluir a conquista da Boca da Serpente, uma das conquistas mais memoráveis e incríveis que já fiz. 

Nesse mesmo ano, voltei novamente, mas dessa vez com Gillan para repetir a clássica Inferno na Torre no Dedinho. Nessa repetição, visualizei uma incrível fissura frontal de dedo na Agulha Principal. Semanas depois voltei com Robinho e o Sertã para conquistar essa fissura, batizada de Garganta Seca.

Logo em seguida, no mesmo ano, voltei novamente a Garganta Seca, dessa vez com o Gillan para fazer a extensão da via que levasse ao seu cume, nascendo assim a Garganta Profunda, a segunda via que leva ao cume da montanha, depois da via da Conquista.

No ano seguinte, em 2016, voltei com Eric para tentar liberar todas as enfiadas da Garganta Profunda, mas acabamos não conseguindo.

Essa pendência acabou ficando no campo da procrastinação e o tempo foi passando até eu perceber quer essa ano já estávamos em 2023!

Sete anos se passaram desde aquela missão com Eric. Parece que foi ontem. Na época, eu tinha trinta e poucos anos e já sou quarentão atualmente. Essa semana, enquanto arquitetava o plano de voltar a via com Chuck, ficava pensando sobre isso. Será que consigo dar conta do recado? Ou será que vou tirar de letra a via? Muitas dúvidas, e apenas uma certeza! Eu precisava voltar lá!

Em 2020, eu acho, o Guizzardi repetiu a via com Gillan e liberaram a enfiada que estava faltando, então eu já sabia que era possível escalar em livre na íntegra.

Mesmo tendo dúvida sobre meu condicionamento, precisava inventar uma moda para me desafiar, assim nasceu a ideia de emendar das duas primeiras enfiadas da Garganta Seca, totalizando 50m de escalada em fenda, por vezes até negativa. Para mim, escalar essas duas enfiadas em um único tiro sempre foi a linha mais natural, mas é uma escalada desafiante. Primeiro, teria que levar mais móvel do que o padrão. Assim, separei dois jogos e meio de friends e um jogo de nut. Além disso, teria o problema do atrito. Então imaginei que uma corda dupla ajudaria a reduzir o peso, mas, mesmo assim, seria preciso usar fitas longas e proteger mais espaçadamente a primeira enfiada.

Para o Chuck, essa seria a primeira vez na Principal dos Três Pontões e também a segunda vez na montanha. A primeira e única vez dele foi no Dedinho com o Amaral pouco antes dele partir.

A escalada

Assim como em 2016, usamos a mesma estratégia: bate-volta de Vitória, num único tiro. 

Os quatros cumes.

Saímos de Vitória, às 4h30 e chegamos no cafezal às 7h. Tomamos um café no carro, separamos os equipos e iniciamos a caminhada às 8h pela aproximação da face sudeste.

Café no cafezal
Caminhada

Tivemos um pouco de dificuldade no costão inicial de 150m porque a pedra estava úmida, o que acabou atrasando a nossa aproximação, mas às 8h30 já estávamos na base e às 8h45 o Chuck começou puxando a corda pelas enfiadas iniciais da via Inferno na Torre até a base do Dedinho.

Chuck na saída da chaminé.

Uma coisa que chamou a nossa atenção logo na saída foi que encontramos marca de magnésio em algumas agarras. Isso é um coisa muito rara por aqui, pelo visto alguém andou por lá nesses dias. 

Depois que a via Inferno na Torre entrou na lista das 50 Clássicas do Brasil, a montanha ganhou bastante movimento. Arrisco me a escrever que é uma das vias tradicionais mais repetidas do Estado.

Chegamos no colo entre o Dedinho e a Principal por volta das 10h20, após duas horas de escalada. Aproveitamos o conforto do platô e fizemos uma longa pausa para beber uma água e comer uns petiscos, pois dali para cima iriamos precisar de todas as energias. Pensando nisso, abandonamos alguns pesos extras, como água, comida extra e os tênis, tudo para ficar um pouco mais leve.

Às 10h45 entrei na fenda com a meta de emendar as duas enfiadas. Olhei para cima e confesso que deu vontade de desistir da ideia e escalar como gente normal. Mas quando lembrei do peso que trouxe para cima e da possibilidade de não saber quando iria voltar novamente, foquei na escalada e tratei de deixar a preguiça de lado.

O rack!

A estratégia no início da enfiada foi proteger o mínimo necessário para cortar o atrito. Cheguei relativamente bem na P1 e me senti confiante para seguir o projeto e toquei para emendar a segunda enfiada. O crux da saída saiu fácil, então sabia que dali para cima era só manter o ritmo e tocar sem fazer besteira.

A medida que ia ganhando altura, o atrito começou a incomodar. Além disso, no trecho final, o tijolamente foi outro problema a ser gerenciado, mas no fim deu tudo certo e bati na P2 após 45 minutos de escalada.

Na enfiada da fenda.

O Chuck subiu de segundo com uma mochila mais leve e entendeu o significado do nome da via “Garganta Seca”, na prática! Acho que essa via é mais vertiginosa que a Inferno na Torre porque por esse ângulo, dá para ver os dois lados do abismo sempre que olha para baixo.

Chuck no final da enfiada.

A P2 da Gargante Seca é uma parada suspensa e desconfortável. Pelo fato de a via ficar na sombra o dia interior e canalizar um vento gelado, passei um pouco de frio enquanto dava segue para o Chuck.

No conforto da parada.

Dali para cima, o plano era seguir revezando, mas o Chuck contou uma história bem triste de que havia ido dormir tarde, que havia acordado cedo, que estava se sentindo muito cansando e tal…

P2 da Garganta Seca.

Como sou fominha, nem me importei muito e segui tocando feliz da vida as enfiadas seguintes, dessa vez pela Garganta Profunda. O trecho final tem aproximadamente 60m e é toda em fixa com lances de agarrência em cristais sólidos. O problema desse trecho é a sujeira, que, na verdade, não é sujeira. Na verdade, são plantas, musgos, líquens e bromélias. A impressão que se tem é que você está escalando num jardim vertical. É muito bonito, mas dá um pouco de trabalho para achar as agarras e principalmente as chapeletas.

Por fim, cheguei na enfiada que eu havia caído na tentativa de 2016. A essa altura o Chuck já tinha abandonado de vez a ideia de revezar as enfiadas, então, nem precisei pedir para guiar essa, pois queria resolver essa pendência. 

O boulder saiu com um pouco de leitura, mas os meus problemas estavam, literalmente, longe de acabar por aqui. Não consegui achar a 4a chapeleta da enfiada. Procurei muito até desistir e pular o lance. Depois, quando o Chuck subiu de segundo, falou que a chapeleta estava escondida atrás de uma bromélia que cresceu depois da conquista.

Chegamos cume às 15h, após quase 6h de escalada. Nem me lembrava mais que esse cume era tão legal. Tivemos a sorte de pegar um dia bonito sem nuvens, que nos permitiu ter uma vista privilegiada de toda região.

Cume!!!

Assinamos o livro de cume e logo descobrimos que 20 dias atrás uma dupla havia chegado no cume pela via da conquista e 2 anos atrás, uma dupla de São Paulo havia repetido a via das Gargantas.

Urna do cume
Livro de cume.
Lendo o livro de cume.

Às 15h30 iniciamos a longa descida e após cinco longos rapéis chegamos na base e às 17h já estávamos no carro para pegar um belíssimo por do sol para fechar a escalada com chave de ouro!  

Aquele trato nos cordeletes.
Três Pontões ao entardecer.
Por do sol.

Agradecimentos ao Chuck por topar a maratona frenética e por ter me deixado guiar as enfiadas finais.

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As vias esportivas mais duras do Espírito Santo

Em 2020, durante a pandemia, escrevi um post sobre as vias mais difíceis do Espírito Santo.

Com o fim da pandemia, começou o que muitos chamam de “novo normal”. E parece que na escalada o “novo normal” são as vias de dois dígitos, pois a lista sofreu inúmeras atualizações.

Como recentemente tivemos algumas repetições interessantes que não ficaram registrados no blog, resolvi escrever novamente sobre o assunto.

No mês passado, o escalador Alex Mendes equipou e mandou a extensão da via Brincadeira de Criança (Amarelos), acrescentando um V9 depois do 9c, e assim nasceu a Sem Brincadeira, segundo 11a do Estado.

Dias depois, o escalador Felipe Alves mandou a 1a repetição da via Centenário (10c), no Setor Vale Perdido em Calogi, via equipada pelo Alex Mendes.

E no último final de semana, tivemos a ascensão mais rápida da via Avalanche (9c) no Calogi pelo escalador Eric Teles de Friburgo (RJ) que mandou a via na 2a entrada.

Segue a lista atualizada!

NOMEGRAULOCALEQUIPADORESFAANOREPETIÇÕES
1Sem Brincadeira11aAmarelosAlex MendesAlex Mendes2023
2Limite do Amanhã11aCalogiAlex MendesAlex Mendes2021
3Centenário10cCalogiAlex MendesAlex Mendes2021Felipe Alves
4Ressurreição10bMorro do MorenoCaio Afeto, Breno KusterAlex Mendes2023
5Karma10bSoídoAlex MendesAlex Mendes2022
6Thor10aMorro do MorenoCaio AfetoCaio Afeto2017Alex Mendes, Felipe Alves
7Transatlântico10aCalogiDiogo Rebit, Felipe AlvesFelipe Alves2013Naoki Arima, Alex Mendes
8Evolução da Espécie10aUlianaAlex Mendes, Naoki Arima, DanteAlex Mendes2021
9Avalanche9cCalogiCaio Afeto, Naoki ArimaNaoki Arima2011Felipe Alvares, Felipe Alves, Caio Afeto, Alex Mendes, Eric Teles
10Brincadeira de Criança9cAmareloCoelhoFelipe Alves Alex Mendes
Calogi. Foto: Alexandra.
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Stairway to Heaven, o retorno

Sem exagero, por cinco anos, sempre que saia para correr, ficava pensando no projeto Stairway to Heaven, na Pedra do Holandês em Itaguaçu. Ficava pensando em estratégia, planos e imaginando como seria a próxima enfiada. Mas sempre sentia um frio na barriga e ficava procrastinando a volta. Em 2021, tentei uma investida com o Iury, mas nem chegamos a tirar os pés do chão devido à chuva matutina. Em 2022, fiquei me falseando para não voltar. Esse ano parecia estar seguindo o mesmo caminho, então tratei de encarar a bronca mais uma vez. Uma hora é preciso parar de sonhar e partir”.

Comecei essa via em 2018, em solitária. Achei a linha após a conquista da via “Tempestade Solar” nessa mesma parede, também conquistada em solitária. O projeto segue uma linha muito singular: começa num sistema de fendas de um totem, depois segue em travessia de uns 100m até conectar num segundo sistema de diedros para finalizar por um costão, totalizando aproximadamente 600m de escalada (?).

Face leste e nordeste da Pedra do Holandês

Na primeira investida conquistei quatro enfiadas até chegar no cume do primeiro totem. Na hora de fazer a travessia para esquerda arrepiei e desci.

Por todo esse tempo, a imagem da travessia assolou o meu imaginário. Ficava pensando na complexidade logística para conquistar uma via dessas. Passava horas estudando as fotos que tirei da pedra para traçar uma estratégia, mas nunca chegava numa conclusão, assim como nunca conseguia definir uma boa linha.

A ideia de voltar à Escadaria para o Paraíso reacendeu depois que voltei de Águia Branca. Assim, ao longo da semana, começamos a traçar uma estratégia para dois dias. No começo, a ideia era fazer cume, mas ao longo da semana, as metas foram recalibradas. Chegar no final da travessia começou a parecer mais sensato. A ideia era dormir na parede para ganhar tempo, mas na 5a feira, o Luca quis entrar na barca. Em três, e com a experiência do Luca, o bivaque não me pareceu prudente. Então surgiu a ideia de fixar a via. Eu não gosto de conquistar fixando corda, mais por uma questão de estilo. Curto mais o estilo alpino, onde você vai subindo sem voltar ao solo.

Concluímos a melhor estratégia seria subir levando algumas cordas, repetir as 4 primeiras enfiadas, conquistar a primeira travessia e depois abrir uma linha de rapel até o chão. Assim, além de facilitar a logística, já teríamos uma linha de descida da via definida. Uma vez que é praticamente impossível rapelar pela via da P5 para baixo.

A grande dúvida, nessa parte, estava na quantidade de cordas fixas que teríamos que levar. Considerei 4, o mínimo necessário para pelo menos rapelar da P5 para baixo, considerando uma corda extra de segurança. Além disso, no nosso cenário otimista, poderíamos conquistar mais 3 enfiadas nesse dia, totalizando mais 3 enfiadas fixas. Assim chegamos ao número mágico de 7 cordas!!! Se cada corda de 60m pesa em média 4kg, teríamos que levar 28kg só de corda.

Florada do café.

Primeiro dia de escalada

O sábado começou cedo. Por volta das 8h da manhã já estava me equipando para começar os trabalhos. A estratégia era eu subir guiando, com a segue do Iury. Assim que chegava na parada eu puxava 2 cordas e fixava para o Iury subir com mais duas cordas. Por fim, o Luca subiria com mais duas cordas e um haulbag

Quando o Iury ficou sabendo que voltaríamos para essa via, logo tratou de aliciar o Luca para o trabalho pesado, pois sabia que seria sofrimento puro subir com haulbag. E o Luca, muito novinho e cheio de disposição, caiu no conto do vigário.

Assim que cheguei na P1 (8h20), olhei para o grande diedro da próxima enfiada e vi que estava molhado. Aquilo foi um baque para mim. Cinco anos depois, será que seriamos obrigados a descer logo na P1? Mais tarde, fiquei sabendo que 2 dias antes tinha chovido 50mm na região. Sem muita opção resolvi pelo menos tentar. A fenda estava molhada, mas tinha uns pedaços mais secos, então resolvi ir pisando só nas partes secas. Além disso, ficava constantemente lembrando que conquistei essa enfiada em solitária. Então não seria agora que iria arrepiar na própria via.

Escalar uma fenda molhada nunca é muito agradável, mas lentamente fui progredindo, afinal de conta, era um IV segundo o conquistador. A medida que ia subindo, fui me acostumando com o molhado e ganhando confiança, mas logo fui notando que as peças do meu rack estavam esvaziando rapidamente. Mesmo levando 2 jogos, a situação não estava tão confortável. Considerei pedir para segurar e descer para recolher mais peças, mas meu orgulho em desencadenar a enfiada não me deixou. Na conquista tinha muito menos peças e mandei, então eu não poderia desistir. Orgulho é uma coisa f#oda!

Cheguei na parada (9h10) com a moral baixa, mas não tínhamos tempo para lamentações, o dia seria longo e árduo. Assim que o Iury chegou na parada comecei a 3a enfiada (9h50) para ganhar tempo. O Luca subia com aquele haulbag pesado de forma bem desengonçada. Jumarear é uma arte que precisa ser dominada, mas ele ainda estava longe de pegar do ritmo. Para compensar a falta de jeito, ele usava a força para subir. Tentamos passar umas dicas, mas quando se tem força de sobra, a técnica acaba ficando de lado.

Cheguei na P3 (10h20) e quando comecei a 4a enfiada olhei para baixo e vi que o Luca não estava bem. Por um momento achei que ele pudesse desmaiar. Ou na melhor das hipóteses, pedir para sair, ou descer. Demos alguns gritos de incentivo, mas nem olhava para nós. Seguia de cabeça baixa.

Cheguei na P4 (11h30) após me perder na própria via. Confundi o esticão final e sai longe da parada, mas logo resolvi o problema com uma travessia estranha. O Luca já não era mais ninguém. O Iury, como bom mestre do menino, teve que pegar o haulbag e subir a 4a enfiada, senão o menino teria um teto-preto.

Chegamos na P4 após algumas horas de intenso trabalho. Mesmo eu não carregando o haulbag estava cansando. Menosprezei as primeiras enfiadas e não estava esperando encontrar tantas dificuldades. Certamente estava inspirado no dia que conquistei essas enfiadas. Às vezes, tenho medo das minhas vias…

Saída da 4a enfiada.

Chegar na P4 foi como voltar no tempo. Fiquei olhando para o início da grande travessia com admiração e medo. Como eu já tinha estudado por horas e dias a fio nos últimos 5 anos, sabia que teria que escalar praticamente na horizontal até encontrar uma laca pequena e depois seguir até chegar em algo parecia ser uma laca que me levaria a um platô.

Iniciei a conquista com a meta de bater a 1a chapa apenas na laca, mas tive que bater 1 chapa antes. Logo em seguida cheguei na laca. Pela foto, a laca parecia ter 1m de altura, mas tinha uns 3m. Precisei escalar pela laca torcendo para não cair e bater uma chapa no topo. Dali, vi a laca da esquerda que me levaria ao platô. Por sorte, era fendada, mas um pouco fina para proteger. Certamente não seguraria uma queda grande, mas se não caísse seria bem tranquilo.

Venci rapidamente a laca fina e cheguei no platô onde estabeleci a P5 (13h50).

A enfiada ficou praticamente uma horizontal de uns 50m. Ou seja, um verdadeiro pesadelo para o segundo. Levamos um bom tempo para transferir todas as cordas, mais os equipos e os dois até a P5.

Quando nos reunimos na P5 estava claro que todos estávamos bem cansados.

Iury na P5.

Mesmo tendo estudado anos a fio a travessia, tinha muita dúvida quanto a linha a seguir na próxima enfiada. Poderia seguir em diagonal por uma placa vertical batendo chapa após chapa por uns 80m até chegar no início do sistema de fendas da esquerda, ou subir pelo diedro sujo para cima e depois fazer uma travessia para esquerda por uma laca invertida.

Aprendemos na escola que a soma dos catetos é maior que a hipotenusa, então a ideia de seguir pela hipotenusa me atraia, mas por outro lado teria que bater muitas chapas, coisa que não estava muito disposto a fazer.

Aprendi que quando estamos cansados, tomamos decisões ruins, então achei por bem encerrar o dia por ali e concentrar em abrir a linha de rapel. Para baixo, um abismo vertiginoso de uns 150 a 200m nos aguardava.

Abrir uma linha de rapel fora da via é uma coisa muito séria, pois precisamos garantir uma linha que não dê problema. Se durante o rapel uma corda prende, praticamente não tem como recuperá-la, deixando a cordada em sérios apuros. Também tinha certa dúvida quanto a distância da P5 até o chão. Sabia que seria entre 150 e 200m.

Desci fixando as nossas cordas, estabelecendo três rapéis de 40m, 50m e 60m. Com isso chegamos no chão com 150m cravados de corda. 

Descendo pelas cordas fixas.

Voltamos ao terreiro de café onde montamos o nosso acampamento e tratamos de descansar um pouco, pois o dia seguinte seria pesado novamente.

Ao longo do dia, o tempo foi mudando progressivamente. Sabia que uma frente fria estava entrando, podendo trazer chuva para o Estado. Por isso, tratei de montar um bivaque descente para uma eventualidade.

Jantamos e por volta das 19h todos nós já estávamos recolhidos nos seus recintos.

Durante a noite, ouvi alguns pingos no teto do meu toldo.  Na hora imaginei o pior. Lembrei de uma investida que fiz com o Afeto na Pedra Rachada nos Cinco Pontões, onde choveu de madrugada e tivemos que subir pelas cordas fixas molhadas no dia seguinte. Mas os pingos ficaram apenas na ameaça e a noite seguiu tranquila.

Acampamento na base da montanha.
Hora da janta.

Segundo dia

O domingo amanheceu sem nuvens. Um péssimo prognóstico para quem iria enfrentar uma longa jornada pela face leste da montanha. Inclusive, a outra via que abri nessa montanha, batizada de Tempestade Solar explica por si só o perrengue que passei na montanha.

Acordamos às 6h e às 7h já estávamos caminhando pela mata em direção às cordas. Para começar o dia teríamos 150m de corda fixa nos aguardando.

Após um dia inteiro fazendo ascensão por corda, no dia seguinte, o Luca já estava mais afinado, conseguindo subir pelas fixas, imprimindo um bom ritmo. Diz o Iury que estava jumareando mais rápido que ele.

Chegamos na P5 novamente e após pensar muito na próxima enfiada, decidi pegar o caminho mais longo, o caminho dos catetos. Assim, me lancei no diedro acima para finalmente escalar para cima um pouco. O diedro estava bem sujo, então tive que ir limpando um pouco até ganhar um platô confortável logo acima. Do platô, a visão para cima não era nada animador. A fenda acabou e a próxima fenda da travessia estava na casa do chapéu.

Mesmo tendo subido apenas 10m achei por bem fazer uma parada no  platô para facilitar a bomba que me aguardava. Assim, todos nós passamos para P6, logo acima.

O início da próxima enfiada parecia uma parede lisa sem agarra, cheia de pequenas saliências. Mas era uma daquelas paredes que você precisa ficar olhando por um longo tempo para começar a ver agarras desconectadas e depois imaginar uma linha de conexão. O trecho “liso” consumiu 6 chapas, totalizando uns 16m até chegar na laca invertida que nos jogaria para o lado novamente. Por sorte, a laca aceitava peças pequenas e por mais sorte ainda, dessa vez levei alguns micro-friends que me salvaram a vencer o trecho. 

No início da 7a enfiada.
Conquistando a estética 7a enfiada. Foto: Luca.
Hora de cantar o piton!
Luca chegando na P7.

Da P7 dei uma espiada para continuação da travessia e vi que tinha ainda uns 30m de placa vertical em cristais até chegar nas fendas. Olhei para baixo e vi a expressão dos meninos para que eu dissesse que iriamos encerrar o dia por ali mesmo. Olhei para parada desconfortável da P7 e conclui que estava na hora de baixar enquanto tínhamos força. Ainda teríamos muito trabalho pela frente para descer com as cordas fixas.

Assim encerramos os nossos trabalhos de conquista ao meio-dia de domingo e iniciamos o longo caminho de volta recolhendo as cordas fixas.

Às 14h estávamos no chão e devagarinho fomos descendo pela trilha, isso sem antes sermos atacados por vespas da trilha. Para ficar esperto!

A investida ficou bem aquém do esperado. Queria ter subido mais uns 100m, mas fizemos bons progressos na via. Provalvemente se tivessemos errado menos na estratégia das cordas, poderiamos ter subido um pouco mais, mas não foi de todo mal.

Acho que o só o fato de ter voltado para via depois de 5 anos ajudou a afastar o fantasma e criar outros…

Fragmento de Mata Atlântica.

Meus sinceros agradecimentos ao Iury e Luca por terem se esforçado até o limite para viabilizar esse projeto hercúleo!  Espero que esqueçam logo para poder voltar novamente!

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Pelo Jardim dos Cristais

O céu estava nublado, por vezes sentia um pingo de chuva no rosto; tentava ignorar que era chuva, mas o céu escuro entregava. Havia um ar de urgência no ar, parecia que a qualquer momento poderíamos ser surpreendido por uma chuva. Mas estávamos felizes e aliviados, pois tínhamos, Iury e eu, acabado de finalizar mais uma via. Para mim, tinha um gosto de vingança, pois em 2018, Rodrigo e eu havíamos tentando abrir uma via na mesma pedra, mas pela outra face, sem sucesso. Sabíamos que o cume da montanha não era virgem, pois, de longe, dava para ver que um morador mais ousado poderia vencer um trepa mato no colo da montanha para ganhar o cume.

Mesmo não sendo os pioneiros, a montanha não tinha nome, então coube a nós batizar a montanha: Pedra Reta! Pedra Reta porque essa montanha fica ao lado da Pedra Torta em Águia Branca. Um pouco de lógica e quase nada de criatividade.

Semanas atrás, quando estive com Chuck na região e abrimos a “Fissura do Milagre” na Pedra Torta, havia visualizado essa linha, mas na ocasião acabamos indo no totem porque a pedra estava molhada.

Complexo de montanhas da região de Águia Branca. No primeiro plano, a Pedra Reta, ao lado da Pedra Torta.

A linha parecia bem promissora, talvez um pouco curta demais para os padrões locais. Aqui, o pessoal não dá muita atenção para pedras com menos de 200m de extensão. Mas a linha era fendada, da base até o topo, por um sistema de fendas interconectado por trechos mais lisos. Isso, já é uma coisa rara por aqui. Acho que conto nos dedos, de uma mão, quantas vias dessas têm no Estado.

O Iury já tinha me cantando a pedra: Japa, você só está escalando com o Chuck! Você está me traindo! Então, aproveitando que o Chuck está se recuperando, marquei a investida com ele no mesmo esquema de sempre.

Mas tínhamos um problema: o clima. A temporada desse ano está sendo instável e o prognóstico não estava bom para o final de semana. Choveu na 5a e havia previsão de chuva para domingo. Sábado seria o dia ideal, mas havia chance de chuva e a pedra não estar bem seca de 5a feira. Mas escalar é isso mesmo. É enfrentar o incerto!

Como a linha parecia pequena, sai sem pressa de Vitória no sábado, peguei o Iury em Colatina e partimos para Águia Branca. Batemos direto numa casa que fica aos pés da pedra para explicar nossas intenções. Estava um pouco preocupado com essa parte, pois não andamos tendo sorte nesses lados, mas deu tudo certo e fomos muito bem recebidos.

A aproximação foi tranquila, menos para o Iury que queria abrir a CPI das mochilas, pois suspeitava do peso desigual das cargas.

Chegamos na base por volta das 10h 30 e logo achamos a fissura que havíamos visto de longe. Por sorte, ela começava perto do chão, mas estava um pouco suja, coisa normal por aqui.

Começando a conquista.

Subi com sacanut na boca e fui escalando e limpando a fenda sempre que precisava colocar uma peça. Por sorte, a fenda era larga o suficiente para os dedos e a conquista fluiu bem.

Na saída da 1a enfiada.

Icei o haulbag e o Iury subiu limpando a enfiada logo em seguida.

Iury chegando na P1.

Pela ordem natural das coisas, deveríamos seguir pelo trepa mato com lacas para ganhar o platô que estava mais acima, mas sabia que se eu pulasse duas fendas para direita, encontraria uma fissura frontal perfeita. Assim, toquei pela face até a fissura. Naturalmente a fissura estava suja. Mais uma vez fui subindo com sacanut na boca e progredindo. Logo, descobri que a chuva na semana deixou a fenda úmida. E quando limpava, deixava tudo barrento e escorregadio. Para piorar mais ainda, a fissura foi ficando cada vez mais fina até ficar completamente cega. Aguentei o máximo que pude até fritar os meus neurônios e jogar a toalha. Ou melhor, parar em dois pés medíocres e pedir para preparar a furadeira. Como achava que a enfiada seria toda em móvel, subi sem a furadeira e agora, naquelas condições precárias, tive que puxar a furadeira na baba. Pedi para o Iury preparar a furadeira com urgência e comecei a puxar a mochila. De repente, a mochila prendeu numa árvore e não quis mais sair. A situação não estava boa para o meu lado. A última peça era um #.4 no barro e depois dois nuts pequenos. Seria um voo bonito.

De repente, a mochila se soltou e consegui trazer a mim. Com a mochila, veio também o Elvis. Foquei a concentração na respiração e tentei manter a calma enquanto fazia o furo. Cair com a furadeira na mão nunca é uma opção.

Nut em fenda suja.

A enfiada seguinte parecia ser mais tranquila, um grande diedro em arco nos levava a um platô onde seria a próxima parada. Venci o arco sem dificuldades, cheguei um pequeno platô cortado por um belo veio de pegmatico com quartzos e micas do tamanho da minha mão. Instintivamente fui ver se não achava uma gema, mas o logo a atenção se voltou à escalada.

O Iury ficou impressionado com esse veio que também foi aproveitado como agarra de mão para ganhar o último lance, antes do platô. Inspirado nesses cristais e nas belas plantas do entorno, achamos o nome para via: Jardim dos Cristais!

A enfiada seguinte era, de longe, a mais preocupante, pois nesse trecho, a pedra ganhava inclinação e não sabia se seria possível passar em livre, mas por sorte, tínhamos à frente duas opções para vencer o headwall. Uma oposição larga à esquerda e uma fenda frontal de mão à direita. O lance era curto, uns 5m, mas era o suficiente para garantir a nossa diversão.

Saída da 4a enfiada.
4a enfiada.

Entaladas potentes e boas agarras nos levaram ao platô de cima que era notavelmente confortável. Acima, um grande diedro largo nos aguardava e anunciava que a escalada estava chegando perto do topo.

A saída do diedro parecia complicada, fenda larga de meio corpo sem apoio para os pés. Lembrou um pouco a saída da via “Carnaval” em Itatiaia (RJ). Como levei apenas um #5, a proteção ficou precária, mas após tomar umas quedas me senti mais confiante. Mesmo assim, não consegui fazer a saída e acabei passando o lance em A0 após bater uma chapa mais acima. Talvez se eu tivesse levado os dois #6 desse para subir sem as chapas, mas quem tem dois #6 para repetir a via?

Chegamos no cume por volta das 16h, após 4h de conquista, com o tempo virando. Comemos o resto das coisas que tínhamos e tratamos de descer logo, antes que chovesse e/ou escurecesse.

Foto no cume.
Vista do cume.

Mesmo sabendo que iria chover no domingo, quis ficar pela região para descansar um pouco e não pegar a estrada à noite. Assim, depois dali, partimos para o Camping Cantinho do Céu. Lá, ainda encontramos os escaladores Lacami e Tina de Lages (SC) que estão fazendo um rolê pela região. 

Durante a madrugada, a chuva chegou com força na região e amanheceu chuvoso. Dessa vez, a previsão do tempo acertou 100% e não tínhamos muito que fazer senão tomar um café da manhã despretensioso e jogar muita conversa fora.

Sei que essa via não terá muitas repetições, mas diria que é uma escalada muito agradável. Acho que deve ser uma das poucas vias quase inteiramente em móvel de Águia Branca, então é uma excelente opção para sair um pouco do estilo repetitivo de aderência que predomina na região.

Por fim, agradecimento ao Iury por mais uma empreitada; Ao Lacami e Tina pelas conversas fora; E ao Fabinho pelo suporte de sempre!

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Cotovelo Free

Dizem que a vida é um sopro. 

Em abril de 2019 fui com o Eric para Parede dos Sonhos, em Itarana, tentar liberar a variante “Dor de Cotovelo”. Na ocasião, a liberação não saiu, então prometi a mim mesmo que voltaria quanto antes para resolver a pendência, mas a vida é um sopro…

Os sonhos da Parede dos Sonhos.

O tempo passou num sopro, quando me dei por conta, já tinham se passado quatro anos. Então, estava na hora de voltar aquela aresta vertiginosa e liberar a enfiada.

Parede dos Sonhos.

Assim, no último domingo, aproveitando as boas condições do inverno, voltei com o Chuck para resolver essa pendência.

O Chuck ainda não conhecia a Parede dos Sonhos. A via não é o melhor cartão de visita para quem está chegando pela primeira vez, mas com certeza, é a linha mais espetacular da parede!

Como fazia quatro anos que não pisávamos por lá, estava com dúvida em relação à aproximação final. Tem um longo trecho de estrada de chão bem precária que só permite acesso com veículos 4×4. Por sorte, quando chegamos lá e perguntamos numa casa as condições da estrada, a senhora falou que a estrada estava boa porque passaram máquina! Por sorte, o pessoal está trabalhando, em frente a pedra, com maquinário pesado e por isso tiveram que arrumar boa parte da estrada. Agora está quase dando para ir de carro normal.

Com isso, tínhamos passando o primeiro crux. O segundo crux seriam os carrapatos! Em tempo de febre maculosa, esses aracnídeos são um problema para quem frequenta o mato e a Parede dos Sonhos sempre teve fama de ter muito carrapato no pasto. Pensando nisso, dessa vez, na noite anterior, tomei um banho com sabonete Sanasar para ficar fedorento. Na aproximação fui com uma calça. Assim que cheguei na base, troquei de calça e passei o dia com uma calça “limpa”. E quando voltei para casa, tomei outro banho com Sanasar. Aparentemente essa estratégia deu certo.

Preparando os equipos.

A escalada fluiu sem pressa. Tentamos subir o mais leve possível porque sabíamos que a via iria nos exigir bastante. Dispensamos as botas no início da via e levamos apenas 2L de água para nós dois.

O Chuck abriu os trabalhos guiando as duas primeiras enfiadas da Xixi Molhado que levam à base da “Dor de Cotovelo”.

Uma pausa para tirar um pouco de espinho.

Ai, peguei a ponta da corda e toquei a enfiada crux da via, uma aresta de 40m com proteção móvel no início e depois uma longa sequência técnica pela aresta aérea. A aresta não possui nenhum lance difícil em particular, a dificuldade está na constância, pois não há descanso. Outro aspecto que me cansou foi ter que escolher os cristais certos, tanto para os pés, quanto para as mãos, pois nem todos os cristais são resistentes. Para mim, acho que esse foi o crux da enfiada, pois na investida anterior, há 4 anos, cai justamente porque um cristal quebrou. E dessa vez não queria cair pelo mesmo motivo, porque vai saber quando conseguirei voltar novamente.

Acho que um dos grandes desafios das grandes paredes é exatamente essa questão logística. Nas esportivas, se você cai, pode voltar na próxima semana. Nas paredes, isso nem sempre é possível. Além disso, você precisa ter alguém disposto a ir junto, o que nem sempre é muito fácil, ainda mais nessas vias.

Aresta da Vivendo o Sonho.

Na conquista, a enfiada foi liberada com corda de cima pelo Rodrigo e Eric que deram 7a, mas acho que esse grau está sub-graduado. Eu daria no mínimo 7b ou 7c, principalmente se a pessoa entrar sacando e sem marca de magnésio.

Independente do grau, a enfiada é espetacular. Sem dúvida, a enfiada mais linda da Parede dos Sonhos e talvez até de Itarana.

Passado o lance, tocamos a via pela “Vivendo o Sonho” para fazer o cume e finalizar a escalada em grande estilo. Esse trecho da “Vivendo o Sonho” tem duas enfiadas que são incríveis: a enfiada da laca que é no mínimo assustador e a enfiada da fissura frontal que é estrelar!

Famosa laca assustadora da aresta.
Momento pra que isso?

Chegamos no cume por volta das 16h, após 5h 30 de escalada. Quatro anos atrás, Eric e eu realizamos a mesma escalada em 4h 30. Será que estamos ficando velhos?

E por fim, importante deixar registrado a hospitalidade e o agradecimento ao prof. Cesar Vicente de Itarana que nos recebeu em casa após a escalada para um café com sanduíche regado a boa prosa.

Valeu demais Chuck!

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Pedra Alegre, 2a investida

Na semana passada, Chuck e eu realizamos a 1a investida na face leste da Pedra Alegre em Itarana

No último final de semana voltamos novamente à pedra e dessa vez, passamos dois dias na montanha para dar continuidade a conquista.

O nosso objetivo na primeira investida foi chegar na base do grande totem, mas acabamos descendo faltando uns 100m. Agora, a missão seria bater na base do totem e tocar mais algumas enfiadas para cima.

Sabia que ainda não teria como fazer cume nessa investida, pois a primeira investida nos ensinou que estamos mexendo com coisa grande. Talvez uma das maiores e mais complexas até então. 

Pedra Alegre (esq.) e Pedra da Onça (dir.)

Estranhamente, nessa conquista não sinto “a sede da montanha”. Em geral, vou com gana de querer ganhar a montanha rápido. Ataques rápidos, precisos e com poucas investidas. Mas dessa dez, não sei o porquê, não tenho essa pressa. Agora, desejo que a conquista não acabe para sempre ter a desculpa de estar nesta montanha. Talvez seja porque eu tenha a real noção da preciosidade que estamos lidando. Não é todo dia (nem todo ano) que achamos uma linha assim.

Pedra Alegre. Foto: Chuck.

A meta para o sábado, primeiro dia, foi subir até a P5, estabelecer um bivaque num platô “meia boca” que encontramos na semana passada e seguir a conquista até chegar na base do totem e descer até o bivaque deixando corda fixa.

Como estávamos subindo para ficar dois dias tivemos que levar mais material, o que acabou nos custando tempo e esforço extra. Tínhamos 3 volumes: uma mochila com a furadeira, um haulbag com coisas leves e uma leiteira de 35L chumbada de ferragem e água.

Coisas que vão para cima! Menos a picareta e o machado. Foto: Chuck

Para passar dois dias na montanha levamos 12L de água, mais 32 proteções fixas e 3 jogos de móvel, incluindo dois Camalot #6, além de duas cordas de 60m, uma dinâmica e uma estática.

Nada mole vida.

Repetimos as primeiras enfiadas sem grandes dificuldades e levamos todo material até a P5 em pouco mais de 3h de escalada. Basicamente um guiava a enfiada com uma mochila e o segundo subia pela fixa com o haulbag, enquanto o guia içava a leiteira usando um sistema de redução. É um método bem prática, mas cansativo por natureza.

Chuck na saída da 2a enfiada.
Subindo pela corda fixa e içando a leiteira.

Descansamos um pouco na P5, largamos o peso extra e partimos para dar continuidade à conquista. Repeti os 30m da 6a enfiada e depois conquistei a 7a enfiada, totalmente em chapas. A escalada segue um estilo bem-parecido: escalada de agarrência em cristais sólidos e sempre puxando em diagonal para contornar a pedra. Basicamente iniciamos a conquista pela face sul e tínhamos que ir contornando até a face leste para ficar alinhando com o totem. Havia a possibilidade de entrar pela face leste, mas nesse caso teríamos que encarar uma aproximação mais longa e subir um rampão com bastante vegetação. A linha que optamos, entra bem na borda, por um trecho mais limpo e livre de vegetação.

Da P7 parecia que a base do totem estava logo ali! Coisa de 50m ou 60m. E mesmo assim não tínhamos ângulo para ver a fenda. Essa incerteza consumiu a nossa mente durante a semana, pois era muito importante que tivesse uma fenda ali, ou qualquer coisa que permitisse dar continuidade à conquista, pois o trecho do totem é a mais vertical da pedra. Se não tivesse a fenda e tivéssemos que subir pela face, a conquista demandaria muito tempo, e talvez fosse melhor abandonar a via. 

Chuck quis tocar a 8a enfiada. Caiu no “conto das ondinhas”. Aquelas coisas que olhando parece fácil, mas na hora do vamos ver fica complicada! Eu particularmente não gosto dessas “ondinhas” porque transmite uma falsa sensação de segurança, pois em caso de queda, mesmo sendo uma queda curta, há grandes chances de bater num platô e se machucar. Já as paredes mais lisas são mais difíceis de conquistar, mas são mais seguras em caso de queda.

O Chuck seguiu a cartilha da conquista, tocando em diagonal à direita até chegar na base de uma parede vertical que parecia intransponível. Esse era o meu maior medo nessa primeira parte, encontrar uma muralha dessas e ter que conquistar em artificial. Nada contra subir em artificial, mas queria que a via fosse 100% em livre! O Chuck passou a ponta e fui ver a encrenca. Achei uma passagem pela direita, mas aquilo, não podia cair devido a um platô que tinha embaixo. Mesmo batendo a chapa o mais alto possível, em caso de queda, a elasticidade da corda me levaria ao platô. Escolhi dois cristais e subi o pé alto para virar o lance e de repente, o cristal da esquerda quebrou e eu estava no ar. No reflexo consegui segurar a corda de baixo da costura e travei a queda antes do Chuck retesar por completo. O coração veio na boca, pois sabia que ali não era um bom lugar para torcer um pé.

Usei o resto do cristal que sobrou e consegui fazer a virada e vencer o trecho mais difícil. Bati uma chapa e logo em seguida mais uma para descobrir que já não tinha mais nenhuma no rack. Como subimos fixando corda, conquistei a enfiada sem retinida, então não tinha mais como puxar material. De onde eu estava ainda faltavam uns 5m para chegar num platô e mais uns 10m em diagonal à esquerda para chegar na base do totem. Parecia que quando mais desejávamos o totem, mas distante ele ficava. Mas dali, pela primeira vez consegui ver o totem pelo lado que permite ver a fenda.

P7!

Eu já sabia que ali tinha uma fenda, mas o que não sabia era o tamanho da fenda. Imaginava que seria uma fenda larga, tipo para Camalot #4, mas quando vi com mais atenção constatei que era um pouco mais larga. Talvez conseguisse entrar dentro da fenda! Apertado, mas daria! Não sei se fiquei feliz, mas posso dizer que fiquei aliviado, pois independente da largura, sabia que daria para seguir a conquista por ali. Presumi que daria para proteger com um Camalot #6, mas tínhamos apenas dois para uma fenda que tinha mais de 100m de extensão.

Enfim, o totem!

Pelo tardar do horário, resolvemos descer e deixar a encrenca para o dia seguinte.

Voltamos ao platô e logo descobrimos que o mesmo era bem estreito e irregular. Além disso, descobrimos a duras penas que o melhor lugar era um formigueiro.

Curtimos o por do Sol que estava incrível e logo em seguida preparamos a janta: comida liofilizado e frango termoprocessada sem sal! De sobremesa uma goma de gelatina e depois cama!

Entardecer no bivaque da P5.

O céu estava incrivelmente estrelado. Depois, ainda consegui terminar de ler um livro curtinho que tinha começado: Crepúsculo do Mundo de Werner Herzog que fala sobre o último soldado japonês que se rendeu da Segunda Guerra Mundial. Ler no escuro, ouvindo o som dos bichos e vendo as luzes do vilarejo à frente ajudou na ambientação da leitura.

Domingo

No dia seguinte, acordei às 4h30 e iniciei os preparativos para o dia. A noite não foi muito confortável. Descobri que o meu colchão inflável era não inflável. 

Vimos o nascer do Sol e fomos tomar um café da manhã despretensioso. Depois, nos atracamos nas cordas fixas para subir até a P7 e finalizar a oitava enfiada.

Amanhecer na Pedra Alegre com vista para Pedra da Onça.
Bivaque. Foto: Chuck
Vista para Praça Oito de Itarana.
Chuck subindo pela corda fixa.

A próxima enfiada seria a hora da verdade! Finalmente iriamos entrar no totem! Nossa, quanto anos esperei por isso? A primeira vez que tinha visto essa linha foi há uns 9 anos. Desde então, sempre que passava ali ficava pensando nessa fenda e agora estava prestes a sentir o poder da fenda!

Mas antes, era preciso vencer outra travessia e mais uma ondinha para entrar no trecho de trepa mato. O trepa mato foi como qualquer outro trepa mato… E logo cheguei na base da fenda, que, na verdade, era uma chaminé estreita de meio corpo. Olhei para cima e vi que seguia a perder de vista. Coloquei o ombro direito para dentro, de frente para o vale, e pensei comigo mesmo: Pelos próximos 100m vou ficar exatamente nessa posição! Depois, lembrei da 2a enfiada da Chaminé Brasília que também é uma fenda mais estreita, mas acho que essa é mais ainda. Por ser bem estreita, dá muita segurança, além disso, fui achando boas colocações para os móveis grandes, #5 e #6. Nessa enfiada, bati uma única chapa no final da chaminé, quando fiquei sem peças. Toquei uns 30m por essa chaminé estreita com bastante dificuldade até chegar numa grande árvore seca. De longe, essa árvore sempre fora uma referência. Na verdade, chamávamos a árvore fosse um arbusto, mas quando cheguei perto vi que a árvore era gigante.

Na 9a enfiada. Foto: Chuck.

Ao Chuck coube a ingrata tarefa de subir pela corda fixa limpando a enfiada com haulbag nas costas. A pior coisa do mundo é guiar uma chaminé! E a segunda pior coisa do mundo é subir uma chaminé de segundo levando uma mochila! Só quem já fez isso um dia para saber o que é fazer força!

Nona enfiada.

A árvore marca o meio da chaminé e para cima, a fenda seguia limpa e aparentemente mais larga. Pensei comigo mesmo que a próxima seria fácil. A chaminé era estreita, mas parecia que dava um pouco mais de mobilidade, permitindo imprimir um pouco mais de velocidade. Mas logo descobri que em vez de alargar, ela estreitava mais ainda. Além disso, a essa altura estava muito mais cansado. No trecho final tive que bater três chapas na parte mais estreita. Talvez desse para subir com menos proteções, mas como estava mais cansado, acabei protegendo melhor. No final, ainda consegui dar uma bom gás até chegar no fim da chaminé.

10a enfiada da P9.
Encerrando as atividades! Foto: Chuck.

Dali para cima, um belo diedro de dedo e mão nos aguardava, mas a essa altura a minha energia tinha acabado e não tinha mais condições de seguir. Perguntei ao Chuck, se ele queria tocar a próxima e concluímos que seria mais prudente baixar. Devido à complexidade da linha, a descida também demanda muito esforço. Tínhamos 10 rapéis pela frente levando muito material de conquista, então resolvemos aproveitar o resto da energia e a luz para baixar em segurança.

Da P10 descemos até a P5 onde fizemos uma longa pausa e dali mais cinco rapéis, levando todo material, nos levou ao chão em segurança.

Varal para descer com a leiteira.
Traçado da via em conquista.
Croqui parcial da via.

Segundo nossas estimativas, faltam ainda uns 180m até o cume. Pelo menos as próximas enfiadas serão em fenda de mão (eu acho) e logo acima parece que há uma fenda frontal de uns 60m nos aguardando. Depois mais uns 30m de uma fenda misteriosa e mais uns 9om de “pra que isso”.

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Alegre Pedra

Se há duas semanas, Chuck e eu passamos o maior aperto para conseguir o acesso à Pedra Torta em Águia Branca, dessa vez, em Itarana, a história foi bem diferente!

Quando chegamos numa pedra nova, já está sendo praxe levantar o drone para fazer um reconhecimento da pedra, dos acessos e tirar umas fotos. E foi exatamente isso que fizemos no último sábado na base da Pedra Alegre em Itarana.

O som característico do drone logo chamou a atenção dos ouvidos aguçados da dona Claudineia que foi para rua conferir o que estava acontecendo e acabou nos encontrando. Curiosa, quis saber o que estávamos fazendo com o drone na área e prontamente explicamos as nossas intenções. Logo, ela se lembrou da história de uns meninos que estiveram na região uns anos atrás (2013) para tentar escalar a mesma pedra. Ela estava falando do Baldin, Sandro e Robinho que iniciaram uma conquista nesta mesma pedra pelo sistema de chaminé mais óbvio.

Aproveitando que ela já estava ali, solicitamos passagem e prontamente nos liberou e logo foi mostrando o melhor caminho para acessar a base da pedra.

Considerando a última experiência, aquilo foi música para os nossos ouvidos.

A Pedra Alegre de Itarana é quase um símbolo da região, ela só não é mais famosa do que Pedra da Onça que anualmente é palco de uma procissão e pela famosa história da água-marinha que foi encontrada na base da pedra. Mas de todas as pedras da região, a Pedra Alegre é, sem dúvida, a pedra mais imponente e intimidadora da cidade. 

Tanto é que, desde a primeira vez que conheci a potencialidade de Itarana, em 2013, sempre olhei para pedra com muita admiração e respeito. Por duas vezes, uma vez com Gillan e outra com Eric, chegamos a estacionar o carro na base e refugamos diante da bronca.

Como a linha mais óbvio já tinha sido iniciada, sobrou apenas um gigantesco totem de uns 300m na face leste, ou teria que encarar a face lisa e vertical. Mas sempre que analisava a linha ficava na dúvida quanto a parte inicial, já que o totem está suspenso a uns 200m do chão. Assim, para acessar o totem seria preciso encarar uma grande “saia” com um final bem duvidoso quanto a possibilidade de passar em livre.

Confesso que não tive planos para entrar nessa parede em 2023. Era um daqueles sonhos distantes que guardamos num canto da mente e tomamos o cuidado de não ficar atiçando, mas a última conquista na Pedra Torto, estranhamente, reativou o projeto.

Na 5a feira, o Chuck perguntou o que estava pensando para o final de semana e falei que queria dar um pulo em Itarana para ver uma pedra. Ele nem perguntou onde, nem o que, apenas disse que iria! Falei para ele que poderia pensar bem se realmente gostaria de ir, pois seria uma grande empreitada. Tempos depois, ele voltou a tocar no assunto e disse que iria! Como ando mal de parceria para esse tipo de empreitada, nem insisti muito.

O inverno segue chuvoso por aqui. Mais uma vez, a chegada de uma frente fria coincidiu com o final de semana e ficamos envoltos naquela apreensão de: será que vai chover? Será que estará tudo molhado como na semana retrasada?

No sábado pela manhã, o cenário não estava muito promissor. De Vitória até Santa Teresa, tudo estava bem molhado da chuva da noite passada. Mas assim que descemos a Serra do Limoeiro, como um passe de mágica, estava tudo seco! Na verdade, não tinha nem chovido na região!

Sabíamos que não teria como vencer uma muralha de granito de 600m numa investida única de um dia. Assim estabelecemos uma meta intermediária: chegar na base do totem. A depender do ângulo que se vê a pedra e da coragem do caboclo, parecia que dava para subir solando de mochila até uns 50m antes do totem, onde fica a parte mais vertical. Então achei que chegar na base do totem fosse relativamente fácil e rápido.

Eu estava tão certo disso que na noite anterior, resolvi levar apenas 24 chapas para essa primeira empreitada, convicto de que ainda iria sobrar chapa e voltar para casa cedo.

Realizamos a aproximação conforme a dica da Claudineia, seguimos pela estrada de chão e depois por uma picada que nos levou até encostar na pedra. Seguimos “costeando” a pedra e assim que vimos a primeiro oportunidade resolvemos subir por ali, rumo à base do totem.

Separando o material.

Sensato, o Chuck achou que eu estava desnorteado e ficou um pouco relutante em sair subindo de tênis essa parte inicial, mas foi voto vencido “por um a um” e não teve muita escolha senão calçar a sapatilha e me seguir.

Subi 30m e logo descobri que os meus cálculos estavam errados. Não teria como sair solando esse costão. Teríamos que nos encordar e seguir a escalada conquistando. Parecia que se vencêssemos um curto trecho de uns 20m, logo a pedra voltaria a perder inclinação e poderíamos seguir em solo novamente.

Estabeleci uma parada livre (sem nada) num platô onde consegui chegar em solo e logo o Chuck assumiu a ponta da corda.

Ele tocou duas chapas e logo teve que fazer um desvio à esquerda porque a parede começou a complicar. Dali para cima, já não conseguia mais ver a escalada dele, mas comecei a notar que estava demorando mais do que o esperado. De repente, um barulho de furadeira, mais uma chapa. Mais alguns instantes e outro furo.

Início da 2a enfiada.

A medida que o tempo ia passando, a minha mente ia desconstruindo tudo que eu tinha imaginado sobre essa primeira parte e aos poucos fui entendendo que a parede era de fato bem inclinada.

Fui perceber isso quando cheguei na P2, olhei para baixo e vi o quanto tínhamos “subido para cima”! E quando peguei a ponta da corda para abrir a 3a enfiada comecei a entender também porque o Chuck tinha demorando tanto para passar os lances.

Estiquei quase 60m de corda até chegar num grande diedro sujo com bastante vegetação no entorno. Pela quantidade de vegetação, sabia que estávamos chegando perto do totem, mas quando olhei para cima, vi que estávamos muito à esquerda, talvez uns 60m ou mais. Ou seja, além de subir, tínhamos que rodar bem para direita para alinhar com o lado direito do totem.

Conquistando a 3a enfiada. Economizando chapa porque levamos poucas…

Novamente o Chuck pegou a ponta da corda para abrir a 4a enfiada que dessa vez saiu mais fácil, graças a inclinação da pedra que estava menos nervosa e por algumas fendas e fissuras que permitiram usar material móvel.

Alinhamos a P4 num ponto que fosse ideal para o rapel, mas ela não ficou boa para seguir a próxima enfiada que seria uma grande travessia à direita para alinhar com o lado direito do totem.

Confesso que fiquei bem baratinado nessa parte. Em parte estava um pouco cansando e também não conseguia escolher um bom caminho, pois a pedra tem uma série de ondulações nessa parte que me deixaram com bastante dúvida quanto a qual sequência seguir. Acabei puxando uma grande horizontal de 60m para conseguir alinhar com a base do totem, mas ainda estava distante. Por alto, ainda precisaria subir mais uns 60m para finalmente chegar na base do totem.

Headwall nos aguardando!

A essa altura, o nosso estoque de chapeletas estava próximo de zero. Tínhamos que reservar pelo menos duas para colocar na P1 que na conquista ficou sem, mas que seria necessário para o rapel.

Assim, ao final da grande horizontal encerramos a nossa primeira investida sem ter atingido a meta estabelecida.

Entardecer na região de Itarana.

Durante a retirada, observei que se quebrássemos a enfiada da horizontal em dois num platô, daria para fazer uma linha mais atraente, desde que batêssemos uma chapa extra. Assim, pensando na próxima investida, resolvemos alterar a linha da 6a enfiada. Com isso conseguimos evitar uma horizontal exposta e de quebra alinhamos a linha de hauling.

Traçado da via.

Depois disso, na descida ainda batemos a P1 e por volta das 17h, ainda com luz, chegamos no carro sem grandes problemas.

Imponente Pedra Alegre ao entardecer.

Cronologia: 8h chegada em Itarana; 9h20, início da escalada; 11h40, início da conquista da terceira enfiada; 13h40, chegada na 4a enfiada; 14h40, 5a enfiada (6a enfiada). 17h, Chegada na base da via.

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O milagre

Senta que vem história!

Na semana passada, enquanto fuçava uns croquis, achei uma via bem interessante que nunca tinha dado atenção em Água Branca: Menina da Roça, uma conquista dos escaladores cariocas de peso de 2007, provavelmente sem repetição até hoje.

Achei o grau de dificuldade interessante e fui atrás de mais informações no intuito de repetir a via. Como a via possui grampo simples nas paradas, resolvi consultar um dos conquistadores, o Miguel Monteza, para saber se poderia, pelo menos, duplicar as paradas para não precisar descer em grampo simples. A partir de uma troca de e-mails, consegui a liberação para fazer essa melhoria e fui ver a previsão do tempo para o final de semana.

As previsões não eram das melhores, pois uma frente fria estava a caminho do Espírito Santo e iria chegar com força na noite de sábado. Para o sábado, a previsão estava boa, mas com muito calor e o “Chuck” que iria comigo, tinha compromisso nesse dia. No domingo, a temperatura estava perfeita. Havia a possibilidade de chuva no sábado a noite, mas coisa de 10mm em algumas regiões de Águia Branca. Em geral, as frentes frias de inverno chegam com pouca chuva no Espírito Santo, então sabia que poderia dar certo, desde que não fosse em ano de El Ninõ.

Partimos no sábado às 4h30 de Vitória. Pelo caminho muitas poças de água indicando que a chuva foi intensa durante a madrugada, mas o céu estava sem nuvens, prometendo um belo domingo. Na altura de Colatina, mergulhamos numa neblina surreal. Por vezes, a visibilidade estava na ordem de 10m. Atenção redobrada ao volante! A densa neblina nos acompanhou até a entrada de Pancas. Mau presságio.

Assim que passamos por Governador Lindemberg vimos muita lama e areia na pista, indicando que choveu muito mais do que os 10mm previsto. Ali ficou claro para nós que a nossa escalada estaria comprometida, pois sabíamos que as pedras também estariam encharcadas.

Como já tínhamos rodado 180km, não custava rodar mais 20km para ter certeza do inevitável.

Como a via fica na beira da estrada conseguimos avaliar dali mesmo que não teríamos a mínima chance de escalar a via naquelas condições. Assim, partimos para o plano B. 

Plano B

Em 2018, andei pela região com Rodrigo e na ocasião vi que na ponta da Pedra Torta, havia um pequeno totem fendado que poderia dar alguma coisa. Provavelmente não daria cume em livre porque o totem vai apenas até o primeiro quarto da parede. Para cima, a parede segue vertical e sem agarras.

Detalhe do Totem da Pedra Torta.

Rodeamos a pedra e escolhemos uma casa para solicitar passagem. Na primeira casa, a moça disse que teria que falar com o vizinho. No vizinho, o senhor disse: não vou autorizar! Explicou que a pedra era sagrada, que tinha gado e tudo mais. Respeitamos a decisão, agradecemos a atenção e fomos embora.

Confesso que fiquei bem chateado com a situação. Sei que é um direito do proprietário escolher quem pode e quem não pode entrar nas terras, mas sempre é difícil quando isso acontece. Aliás, isso é uma coisa bem incomum por esses lados. Em geral, as pessoas são sempre bem receptivas e acolhedoras, mas vez ou outro acontece algo assim.

Tentamos uma 3a casa, a mesma por onde entramos em 2018, mas o dono já tinha mudado e o atual informou que a base da pedra não estava nos terrenos dele, mas sugeriu uma 4a casa.

Seguimos a peregrinação e fomos até a 4a casa, onde encontramos o proprietário e explicamos as nossas intenções. Ele explicou que o ponto, onde queríamos ir, ficava no vizinho do lado. Àquela altura estava totalmente incrédulo com a situação. Por uns 10m não era possível acessar a pedra. E ele disse:

– Por mim, vocês podem passar pelo meu pasto, mas a pedra fica no terreno da minha irmã e acho mais correto conversar com ela.

Explicou que a irmã morava em Governador Lindemberg (15km), perto de um posto de gasolina, mas que a essa hora estaria na igreja.

Sem muita opção rodamos até a cidade a procura da proprietária. No meio do caminho perguntei para o Chuck:

Chuck, esqueci o nome da pessoa, você lembra?

Vixe, esqueci também!

Agora estávamos indo até a cidade a procura de uma pessoa que não lembrávamos o nome… Chegamos na cidade e fomos atrás da igreja. Achamos a igreja e abordamos uma pessoa na entrada e perguntamos se ele conhecia uma senhora que tinha uma casa na base da Pedra Torta! E ele falou!

– Acho que sei, espera um pouco!

Coisa de cidade pequena! Bingo, em minutos apareceu uma senhora e nós explicamos as nossas intenções. E ao final ela disse:

– Vocês vão ter que falar com meu marido que está em casa!

Sabe quando você acha que não é pra ser?

Fomos com ela até a casa, mas acabamos não encontrando o marido, então ela disse:

Como ele não está aqui, então eu autorizo a passagem de vocês!

Eu não sei se fiquei feliz, na verdade, fiquei apreensivo. Fiquei pensando: será que depois de tudo isso, a pedra ainda vai ser boa? Pois só nessa brincadeira gastamos mais de 2h rodando e conversando com as pessoas. Entretanto, isso faz parte do montanhismo. Se você quiser escalar montanhas, precisa, antes de mais nada, respeitar os moradores locais e sempre pedir passagem, mesmo que não seja conquista. Isso é lei!

Voltamos à pedra e fomos até a casa do meeiro para explicar que conseguimos a autorização para, finalmente, colocar as mochilas nas costas e partir para conquista.

A aproximação foi relativamente rápida. Tirando o pasto alto molhado com carrapatos e o ganho de elevação, o resto foi tranquilo!

Chegamos na base do totem e vimos que o mesmo tinha uns 10m de largura por uns 60m de altura, quase um pilar mal escorado prestes a desmoronar.

No lado esquerdo do totem vimos um belo diedro aberto fendado que subia majestosamente até sumir de vista. Pareceu um início bem promissor, mas tinha um detalhe: estava úmido!

Na base do grande diedro.

A essa altura, isso era o menor dos problemas, depois de tudo que passamos, não seria uma pedra úmida que faria nos desistir.

Tirando o trecho úmido da saída, o diedro era perfeito! Entalamento de dedo, mão, double… Fiz a festa em quase 20m de escalada! Ao final, o diedro ficou sujo e tive que passar para fenda da direita até ganhar um pequeno platô, onde estabeleci a P1 e chamei o Chuck.

Chuck limpando a 1a enfiada.

Dali para cima, o totem seguia e parecia que eu estava diante de um menu de restaurante de fenda. Eu tinha 3 opões de fenda a escolha.

Fiz uma travessia à direita novamente para ganhar uma bela fissura frontal de dedo e subi até o ponto que eu teria que escolher uma das 3 fendas. Tentei o mais óbvio, pelo meio, mas a fissura ficou dura e eu não tinha levado meus micro-friend, então tive que desistir. Fui para fenda da esquerda, mas descobri que era uma fenda de meio corpo numa laca fina. Fiquei com medo da laca e fui para última opção, a fenda da direita. 

Mais uma travessia entre fendas e cheguei num pilar vazado que formava um diedro de mão que ia progressivamente diminuindo até sumir.

Sem muita opção, subi pelo diedro rezando para que o pilar aguentasse o meu peso. Tirando isso, a fenda era perfeita com bons entalamentos e bem aéreo.

Base do grande pilar da direita.
Na segunda enfiada.

Subi até a fenda sumir. Logo acima vi que tinha um platô onde poderia estabelecer a P2. Bati uma chapa para ganhar o platô, mas logo descobri que tudo era instável demais.

Ai o Chuck sugeriu que eu fosse pela fenda da esquerda, a continuação da fenda do meio. 

Pensei: fala isso porque não é ele que está na ponta da corda! Olha essa fenda, mal cabe o dedo!

Fiz mais uma travessia e voltei à fenda do meio que seguia fina, mas com algumas agarras suspeitas por fora.

Toquei pela fissura frontal até chegar num outro platô onde estabeleci a P2.

Chamei o Chuck que subiu limpando a enfiada. Dali para cima, a fenda seguia mais uns 5m por uma rocha bem instável e depois entraria no headwall. Eu acho que daria pra ganhar mais uns metros em chapa, mas como a ideia era escalar a fenda, resolvemos encerrar a via por ali mesmo.

Croqui da via.

Como ainda tínhamos um tempo, perguntei para o Chuck se eu poderia tentar a cadena da segunda enfiada, pois na conquista tive que parar para bater uma chapa.

Assim, descemos até a P1 e entrei para liberar a 2a enfiada sacando as peças.

Confesso que me senti aqueles escaladores “pros” que escalam liberando as enfiadas.

Logo na saída da enfiada, uma agarra de pé quebrou e voei na parada. Assim, como o Chuck brincou comigo, mandei a via na 3a entrada…

Liberada a via, descemos sob um vento gélido que jogava a corda para fora da via e após 2 rapéis estávamos na base da via em segurança.

Entardecer na região de Pedra Torta.

Pensando em tudo que aconteceu e pensando na via que acabamos abrindo, acho que valeu todo esforço. Sem dúvida é uma das melhores vias em móvel que temos por aqui. Eu colocaria a via, batizada de “Fissura dos Milagres” por tudo que aconteceu, no mesmo patamar da “Super Trunfo”, outra via clássica em móvel que transcorre por uma bela fissura de dedo.

Obrigado ao Chuck que entrou nessa furada e foi até o fim. Graças a insistência dele abrimos mais uma gema da escalada Capixaba!

Para ler mais sobre a via, clique aqui!

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“O que for pra ser, será!”(Repetição)

No último domingo fiz a primeira (?) repetição da via “O que for pra ser, será” (D3, 3o, V, E2, 480m) na Pedra da Tartaruga (Pancas) em estilo solitário.

Essa via, localizada logo na entrada, no lado direito do Vale de São Luis, um vale paralelo ao Vale do Palmital, foi conquistada pelos escaladores cariocas Pedro Bugim e Laura Petroni em setembro de 2020. O relato da conquista pode ser lido aqui!

Amanhecer em Pancas.

Essa via já tinha entrado no meu radar faz um bom tempo. Parecia ser uma via ideal para escalar em solitária por uma série de fatores. Além disso, já tinha escalado uma via do casal com Iury, a Cavalo Velho e gostado bastante do “serviço”. Para quem não sabe, a dupla tem várias vias conquistadas na região de Pancas. Veja o blog deles para saber mais sobre as outras vias.

Pedra da Tartaruga.

A escalada

Para escalar a via, adotei o que o meu amigo Murilo chamaria de “hero plan“. Bate volta de Vitória em dia de volta de feriado prolongado.

Sai de Vitória às 4h 30 de domingo para tirar o máximo de proveito do frescor da manhã. Às 7h já estava conversando do com o Sr. José Maria, proprietário das terras para solicitar passagem. Fiz a aproximação de uns 10 minutos pelo cafezal e rapidamente achei o início da via, marcado pela primeira chapeleta num grande rampão. A manhã estava um pouco úmida e com bastante nuvens, deixando a pedra com um aspecto liso, nada muito agradável para quem estava planejando esticar até a P4 sem auto seguro.

Pedra da Tartaruga de onde fica o carro.

Por volta das 7h30 iniciei a escalada. No início, a pedra é bem esfarelenta, mas logo acima, a pedra fica mais firme e a escalada flui bem melhor. Em 15 minutos cheguei na P4, garantindo uma boa economia de tempo que seria fundamental no final.

No início da via.

A partir dali, a via toca numa diagonal à esquerda por um grande veio de rocha. No croqui está descrito como “cristaleira”, mas, na verdade, está longe de ser uma cristaleira, muito pelo contrário, é um veio liso.

Aula de geologia: veio é uma designação genérica para chamar uma rocha de dimensão pequena que corta uma rocha mais antiga e que possui composição diferente da rocha “hospedeira”. Alguns veios podem formar cristaleiras, o que chamamos geneticamente de pegmatito. Por outro lado, alguns veios podem ser formados por rochas de textura mais fina que a hospedeira. Para esse tipo de veio, usamos o termo aplito, como na 5a enfiada.

Organizando o rack na P4.

A via segue exatamente pelo veio de aplito, ou seja, exatamente pela parte mais lisa da rocha, deixando a escalada mais interessante. Se é que vocês conseguem me entender!

Já na 6a enfiada, a via abandona o veio que tende à esquerda e puxa uma grande diagonal à direita para tentar endireitar a via. Mas a cereja do bolo é a 7a enfiada. Descrita como: um IV grau constante.

Esticando a corda na 7a enfiada.

Uma das motivações para escalar essa via foi calibrar a graduação com o pessoal do Rio. Classicamente, o grau daqui é mais soft em relação ao Rio, em geral, uma letra. O mesmo acontece para o grau de exposição. Os conquistadores deram E2 para via, mas eu facilmente daria E3, principalmente porque há potencial de queda em platô em alguns lances. O crux da via tem um fator de queda 2 em platô. Embora V seja relativamente fácil, nada impede de uma agarra quebrar.

Após escalar uns 20m entendi o que era o tal IV grau constante. É uma coisa que não é difícil, mas também não é fácil. Não tem agarras boas, nem platôs onde você pode descansar os pés. Você apenas escala e fica pensando: por que não pegaram aquelas chapas das primeiras enfiadas e colocaram aqui? Por quê?

Já a última enfiada é uma burocracia para ganhar a linha de vegetação. A via não acaba no cume da montanha, mas sim na linha de vegetação com uma vista espetacular da região. Aliás, outra motivação para repetir a via foi a vista. Lá no blog tem umas fotos da Laura escalando com vista para Pedra do Camelo que é incrível.

Esticando a última enfiada.

Cheguei no final da via às 10h20, após 3h de escalada. Aproveitei para descansar um pouco e contemplar a vista que é de tirar o fôlego!

Fim!

O rapel foi tranquilo, mas bem cansativo. O único ponto de atenção onde errei feio foi o rapel da P6 para uma parada intermediária que fica no meio da 5a enfiada. Passei pelo lado errado de uma árvore que tem no meio do rapel e tive que voltar uns 20m de prussik para direcional o rapel corretamente.

Às 11h20 bati no chão novamente e fui direto no bar pegar um refrigerante! Tem um bar onde se deixa o carro!!!

À tarde fiquei dando rolê pela região procurando sarna para coçar e ainda deu tempo para passar no Fabinho para dar um abraço e de quebra encontrar o Fred “Ibiraçu” e seus amigos de Juiz de Fora que estavam pela região aproveitando o feriado.

Macacos no Camping do Fabinho.

Já a volta foi um longo jogo de paciência… Levei mais tempo para voltar de carro do que para escalar a via…

Dronando pela região da Pedra da Agulha.
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Caranguejo Rock n Roll, 1a repetição

No último feriado de Corpus Christi, Rodrigo e eu realizamos a 1a repetição da via “Caranguejo Rock’n Roll” em Itarana.

Essa via foi conquista por mim e “Chuck” em outubro do ano passado, já bem no final da temporada. Por isso, a 1a repetição acabou demorando um pouco.

Para ler mais sobre a 1a investida da conquista clique aqui e aqui para ler a 2a.

O objetivo principal dessa repetição foi, além de repetir, tentar liberar as duas enfiadas que ainda estavam pendentes (7a e 8a).

A escalada

Saímos de Vitoria por volta das 5h30 da manhã e chegamos na base da via às 8h30. Por conta do feriado, pegamos mais trânsito do que a média. Além disso, penamos mais na aproximação por conta do mato alto. No início da temporada o mato sempre fica mais alto.

Iniciamos a escalada às 9h com Rodrigo na ponta da corda até a P4.

Rodrigo na saída da 3a enfiada.

A 4a enfiada tinha sido graduada em VI, mas o Rodrigo achou que V SUP fosse mais coerente e a enfiada foi decotada. Com isso, a próxima enfiada, a 5a, graduada em VI SUP, também desceu um grau, VI. De fato, dessa vez achei bem mais fácil passar o lance.

Rodrigo na 5a enfiada.

Na 6a enfiada o Rodrigo assumiu a ponta novamente e tocou a enfiada mista de 30m. Devido às chuvas, o mato voltou a crescer e a fenda estava bem suja.

A 7a enfiada é, sem dúvida, o crux da via. A enfiada não foi liberada na conquista e ficou faltando livrar um lance de uns 2m, já bem no final, trecho do A0.

Entrei na gama de liberar na 1a entrada, mas logo descobri, ou lembrei, que na conquista passei uns lances em artificial, o que me custou alguns gritos extras. Depois disso acabei caindo num lance de aderência, fora do crux, porque um pé quebrou. Mesmo não valendo mais nada fui para isolar o crux final, mas não consegui passar em livre e roubei a passada.

Rocha duvidosa
Cristal maldito!
Queda!

Enquanto o Rodrigo vinha de 2a nessa enfiada, notei que a chapeleta do crux estava solta. Provavelmente quando cai, a chapa deu uma soltada. A medida que ele vinha subindo, com o movimento da corda, a porca ia soltando aos poucos. Tentei recolher a corda sem fazer muito alarde, mas não consegui, a certa altura, a porca se soltou e se perdeu parede abaixo. A chapeleta ficou na costura e o crux ficou desprotegido para o Rodrigo.

Não sei se alguém vai voltar nessa via, mas importante deixar avisado que o crux está sem a chapa. Quem for lá precisa levar uma arruela, porca e chapeleta de inox! Além de uma chave 14 ou 15. Parabolt de 3/8.

A enfiada seguinte, a 8a, é a cereja do bolo da via. Uma enfiada de uns 25m toda em móvel por uma fenda em arco. Segundo o Rodrigo, é o Great Roof Capixaba! Essa enfiada também não tinha sido liberada na conquista, então catei as peças e fui na missão! Dessa vez a enfiada saiu bem de boa. Acho que V SUP seja bem coerente. A dificuldade da enfiada está mais em colocar as peças no trecho horizontal, onde o guia poderá ter dificuldade para ver a colocação se escalar de invertida. O beta é escalar com os pés bem baixo e ir entalando os dedos, assim tem maior controle nas colocações, mas é preciso ter as manhas dos entalamentos de dedo.

Estudando a 8a enfiada.

A última enfiada foi um protocolo e por volta das 14h, após 5h de escalada batemos no cume.

Dali baixamos e às 16h já estávamos no carro novamente.

Por 2m, a via não foi totalmente liberada. Continuo pensando em como resolver esse lance. Pensei em quebrar a 7a enfiada em 2 para facilitar o lance do boulder, há dois platôs bem confortáveis antes da travessia. Também pensei em mudar o traçado, buscando uma linha melhor, mas tudo isso vai requerer mais uma investida.

Por ora, estou assimilando o aprendizado e pensando numa estratégia futura. Além disso, terei que dissuadir alguém para me acompanhar. O Rodrigo já disse que não voltará lá tão cedo, hahahahah!

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